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Maeve Jinkings fez um caminho inverso ao de boa parte dos intérpretes. A maioria deles se destaca nas telinhas e somente depois constrói uma carreira cinematográfica. Ela, transitando no sentido contrário, despontou nas telonas para, apenas mais tarde, ser apresentada ao grande público em horário nobre. Quem há de se esquecer de sua atuação brilhante em O Som ao Redor (2013) e de sua não menos luminar presença e Amor, Plástico e Barulho(2013)? Aliás, foi exatamente da parceria fértil com Renata Pinheiro, diretora deste, que surgiu o convite para a realização de Açúcar (2018), filme que teve sua première brasileira no Festival do Rio 2018 e que finalmente chega nesta quinta-feira, 30, ao circuito comercial por meio da Boulevard Filmes. A trama gira em torno do regresso da herdeira de um engenho em estado de decadência. Ela trava batalhas cotidianas com os moradores locais, ora reproduzindo as dinâmicas opressivas que demarcam perniciosamente aquele lugar, ora sendo ela própria vítima de uma ignorância que, mais cedo ou mais tarde, cobra seu preço. Conversamos com Maeve no Festival do Rio 2018 antes da segunda sessão de Açúcar para o público. O resultado deste Papo de Cinema exclusivo você confere agora!

 

Esse é o segundo filme em que você é dirigida pela Renata Pinheiro. Mas, Jaqueline e Betânia são personagens completamente diferentes…
Elas são efetivamente opostas. A Jaqueline, do Amor, Plástico e Barulho, é “para fora”, possui outra temperatura. Já a Betânia, do Açúcar, é toda contenção.

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Em que pontos a Betânia te conquistou, despertando o seu desejo de fazer o filme?
A Renata fez o convite na festa de encerramento do Amor, Plástico e Barulho. Ela contou a história, que inicialmente seria de um curta. Aliás, o filme foi tudo filmado no engenho de açúcar da família da Renata, lugar com com o qual ela tem muita intimidade. Não sei se você sabe, mas rodamos o Açúcar em 12 dias, sem ensaio ou preparador de elenco. Claro que isso foi possível porque tínhamos um diálogo prévio. Então, respondendo à sua pergunta, em primeiro lugar, o que me fez aceitar foi a proposta vinda de uma mulher com quem tive uma experiência arrebatadora, e que olha à alma das personagens femininas com complexidade. Isso por si só já me interessa.

Segundo, uma das coisas que mais me alimenta é quando o diretor, esse regente da orquestra, me permite entrar na sua subjetividade. Para ter uma imagem, é mais ou menos como naquele filme Quero ser John Malkovich (1999). Monto minha tenda no imaginário dessa figura, de várias formas, seja conversando sobre roteiro ou pedindo referências de músicas, filmes, fotografias, pinturas, enfim, do que inspira essa pessoa. E, terceiro, a narrativa desestabiliza a Betânia, a deixa desconfortável, a tira de um lugar conhecido e a joga no lugar novo. Existia a urgência, porque o engenho ia ser desmanchado logo depois, como de fato foi. O nosso ofício é muito doido, mas acho que a paixão o desejo fazem com que certas coisas sejam inevitáveis. Eu precisava contar essa história.

 

A Betânia volta para o engenho a fim de reivindicar um poder, evocando algo para além da família dela. Como foi para você se colocar nesse lugar de opressão?
Como atriz, me fascina compreender o comportamento humano. Isso me fez entrar nessa profissão. Tenho a chance de me debruçar sobre aquilo que não compreendo. Essa é uma resposta mais confortável para mim. Agora, saindo do meu lugar de conforto, sendo bastante honesta, também tenho meu lugar de opressora. Tive a oportunidade de lidar com meus preconceitos, com o desconfortável em mim. Não tem como fazer esse trabalho sem acessar tal espaço, lidar com sombras, com o que não gosto de mim, até com minha possível vilania. De certa forma, me conecto também com ela porque sou uma mulher burguesa, classe média, que em vários momentos da vida esteve de fato nesse lugar. Seria hipocrisia dizer que não. Mesmo atualmente, ainda que consciente, não estou livre de oprimir. Olhar para isso generosamente talvez seja a forma mais produtiva e honesta de correr menos riscos de cair nesse lugar. Preciso reconhecer que sou uma opressora potencial. Porque, sim, vivemos numa sociedade de classes. Sou ensinada desde cedo me comportar de determinada maneira. Compactuei com certas coisas não por ser uma filha da puta, mas por ser ignorante. Ainda sou ignorante em vários sentidos. Que sorte ter a oportunidade de mergulhar nesse grande caos. E Açúcar foi fruto de um processo doloroso, inclusive porque eu tinha que lidar com essas feridas.

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Maeve em “O Som ao Redor”

Qual foi o impacto de assistir ao filme pela primeira vez, com a plateia do Festival do Rio?
Estou muito feliz com o filme, Marcelo. A relação com o que a gente faz vai mudando muito. Como qualquer espectador, vou digerindo com o passar dos dias. Mas tenho orgulho do que fizemos. Já comecei a me fazer perguntas do tipo “onde estão os nossos pontos cegos?”, “o que não conseguimos enxergar?”, “o que teria sido importante abordar?”. As respostas vou encontrar ao rever o filme, ao conversar com as pessoas sobre ele.

 

Como foi, especialmente, a interação com a Dandara de Morais, visto que vocês vivem personagens praticamente antagônicas?
Já tínhamos trabalhado juntas no curta-metragem Loja de Répteis (2014). Inclusive, indiquei a Dandara para o Açúcar. Foi incrível trabalhar com ela. A Renata e o Sérgio Oliveira enfatizavam muito que os moradores locais tinham de ser altivos, porque decadente era o engenho e tudo que vinha a reboque dele. Betânia está tentando desesperadamente se agarrar a tudo para permanecer confortável. Não à toa o filme possui essa linguagem onírica, delirante. A protagonista insiste em viver num mundo que beira à fantasia. Ela não consegue olhar para a história e a origem dela. Acho bonito como a curva dramática vai se refletindo na mudança física, sobretudo quanto ao cabelo. Me vejo um pouco nisso. Atualmente tem muito orgulho do meu cabelo cacheado. Mas, lá atrás, na adolescência, esse período chatinho, tive momentos de alisar por vergonha. Meu pai é índio, o cabelo crespo vem da minha mãe. Ela usava crespão e eu alisava, indignada por não ter “puxado” o cabelo do meu pai, socialmente mais aceito.

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Maeve em “Amor, Plástico e Barulho”

E hoje você tem ferramentas para questionar o porquê de ter achado seu cabelo natural feio…
Exatamente. Certo dia, num debate sobre representação de gênero, uma amiga minha, que é militante negra, perguntou por que eu não me assumia negra. Aquilo foi um choque para mim. Me perguntei: “Eu, negra?”. Nunca tinha me visto dessa maneira. E ela apontou que eu pertencia a esse lugar. Mas, ainda isso é um pouco confuso para mim. Morro de medo de roubar o lugar de fala de alguém. Socialmente não sou “lida” como mulher negra. Portanto, não sofro o mesmo que meus amigos negros. Todavia, também nunca me vi como branca. Isso é um problema, pois permaneço num não lugar, por assim dizer. Se não me identifico com determinado grupo, como reivindico os direitos dele? Como o represento? Nesse sentido, Açúcar foi fascinante, porque, embora continue não sendo “lida” cotidianamente como mulher negra, agora consigo identificar melhor a minha porção negra, da qual tenho orgulho.

 

(Entrevista feita em 2018, presencialmente, durante o Festival do Rio)  

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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