Nascida em Tânger, Marrocos, Maryam Touzani é um dos principais nomes do cinema feito em seu país. Ela primeiro chamou a atenção de todo o mundo ao aparecer, sob o comando do marido, o cineasta Nabil Ayouch, como uma das protagonistas – e responsável também pelo roteiro – de Primavera em Casablanca (2017), que foi exibido nos festivais de Haifa, Istanbul e Toronto, entre outros. Dois anos se passaram, e agora ela dá seu primeiro passo como realizadora com o drama Adam (2019), que estreou na Mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, e que lhe rendeu reconhecimentos nos festivais de Chicago, Durban, El Gouna e Filadélfia, por exemplo. Aproveitando a oportunidade, fizemos uma conexão Brasil-Marrocos para conversar com a diretora e descobrir um pouco mais sobre esse premiado projeto. Confira!
Olá, Maryam. Tudo bem? Adam é o seu primeiro longa como diretora, mas você já havia feito curtas e escrito outros roteiros, todos com um forte viés feminino. Esse é um compromisso do seu cinema?
Não necessariamente. Não chega a ser um compromisso, posso te dizer. Não me interesso a contar apenas histórias de mulheres, afinal de contas. O que aconteceu é que essas histórias em particular me tocaram de uma forma ou de outra. Mudaram a minha vida, enfim. Por isso, precisava encontrar um meio de expressá-las. A primeira era sobre uma garota e o relacionamento dela com o pai. O segundo era sobre uma menina obrigada a se resignar a um lugar de submissão em nome da família. Essas eram histórias que me tocaram, mas não apenas por serem mulheres como protagonistas, mas pelos desafios e sacrifícios que esses personagens enfrentavam. Mas, claro, por ser mulher, esse tipo de conto acaba me atraindo. Vejo os esforços das mulheres ao meu redor, e sou tocada por elas.
Como surgiu a história dessas duas mulheres, as protagonistas de Adam?
A história de Adam parte de uma experiência muito pessoal. Tudo começou quando precisei sair do meu país para estudar na Universidade de Londres. Ao voltar para Marrocos, meus pais tinham abrigado uma menina, que estava já com sete meses de gravidez. E eles assim fizeram pois ela não tinha para onde ir, poderia até ser presa se a encontrassem pela rua daquele jeito. Estava jogada, não tinha como voltar para os pais, estava bem perdida. E foi a minha família que lhe deu abrigo. No momento em que ela deu à luz, senti tudo aquilo pelo qual ela estava passando. Não tinha pensado o quanto essa experiência havia me tocado, no entanto, até eu própria ter o meu primeiro filho. Me dei conta de ter assumido essa consciência. Esse dilema de não poder ter seu filho, mas não por não querer, mas porque a sociedade a obriga. Tudo o que ela tinha que sacrificar, tendo que fingir que não se importava com a criança que estava por nascer. Era uma luta contra o instinto materno dela mesma. Tudo isso me motivou a contar essa história. Durante a minha gravidez comecei a escrever a respeito, pois pensava nessa garota o tempo todo. Não sabia, na época, que daria em um filme, mas, aos poucos, tudo veio até mim e acabou fazendo sentido. Foi uma experiência muito pessoal.
Adam foi o primeiro homem. No entanto, esse é um filme quase sem personagens masculinos. Qual a importância desse título?
Para mim, Adam – ou Adão, como é aí no Brasil – remete ao começo. É a gênese. Levanta vários debates, sobre questionar esses papeis dos homens e das mulheres. Todos, ao crescerem, vem de uma mulher, afinal. Essa é uma visão que nos permite alterar nossa perspectiva. Antes de ser um homem, você veio do útero de uma mulher. Está dentro de todos nós. E também tem essa expressão, em árabe, que quando se diz “o filho de Adam”, você está se referindo a todos os seres humanos. Somos todos nós. Nada mais importa.
Como foi a recepção de Adam quando chegou aos cinemas de Marrocos?
Acho que houve um momento em que as pessoas se interessaram pelo filme, porque viram nele uma oportunidade de debate. A nossa história permite levantar questões muito interessantes, tanto para homens, quanto para mulheres. Estamos discutindo aborto, sexo antes do casamento, diversos tabus. É muita coisa, e claro, nem todo mundo está pronto para essa discussão. Mas o país está passando por um momento de grandes transformações. Sob esse aspecto, posso afirmar que nosso trabalho foi um gatilho para a mudança. É importante para o artista poder contribuir com o debate das ruas, com o que está acontecendo na sociedade como um todo.
Você é também atriz, tendo atuado em Primavera em Casablanca. É mais fácil dirigir atores já tendo a experiência da atuação?
Acho que sim. Não posso dizer, no entanto, que foi um processo consciente, do tipo, primeiro foi atuar, e depois dirigir. Tudo acabou acontecendo meio que naturalmente. Primavera em Casablanca foi uma experiência muito bonita, mas também muito especial – afinal, era o meu marido que estava me dirigindo, não tinha como dizer não para ele (risos). Mas, para mim, é algo muito difícil todo o processo da atuação. Por me esforçar tanto para conseguir me colocar naquele lugar diante da câmera, imagino que possa também me ver na posição dos atores do filme que estou dirigindo. Me ajudou a me conectar com eles, entender o ponto de vista deles. Sou, na minha vida privada, uma pessoa muito tímida, não sou das mais expansivas, e a arte tem esse poder libertador. Tudo acaba contribuindo, de uma forma ou de outra.
Adam teve sua estreia no Festival de Cannes, e foi escolhido para representar o Marrocos no Oscar 2020. Você esperava por toda essa atenção e reconhecimento?
Não gosto muito de pensar tão à frente. Nunca fico imaginando o que irá acontecer a seguir. Ir para Cannes foi incrível, é um lugar muito bonito para se estar. Mas não tinha a menor ideia do que iria acontecer. Só o convite já havia sido uma grande vitória. Não me preocupo com o que os outros vão pensar, como irão reagir. A partir do filme pronto, ele está entregue, o processo, agora, se dá entre ele e quem o assiste, não tenho mais ingerência. Minha única preocupação é poder contar a história. Com Adam fomos a vários festivais, no mundo todo, e esses encontros são oportunidades incríveis de apresentar o filme, conversar, e propor mudanças. Às vezes cansa, mas sempre é positivo.
Você conhece o Brasil? E o que sabe do nosso cinema?
Pois então, estive uma vez no Brasil, e justamente durante o Festival de Cinema Francês, para o lançamento de Primavera em Casablanca (NE: confira aqui a nossa entrevista com Maryam Touzani sobre Primavera em Casablanca). Mas foi uma passagem muito rápida, conheci apenas duas cidades, São Paulo e Rio de Janeiro. Nossa, adoro o Brasil. O que mais me impressionou, no entanto, foi como, apesar de serem países tão distantes e diferentes em muitas coisas, há tanto em comum com Marrocos! Me senti em casa, posso dizer. Quero muito voltar, mas sem compromissos, apenas para aproveitar. Acho que eu e o Brasil merecemos (risos). Infelizmente, por outro lado, é muito raro um filme brasileiro chegar aos cinemas daqui. O último que assisti, imagino, foi A Vida Invisível (2019), pois estava na mesma mostra que nós lá em Cannes. E é um filme belíssimo, encantador. Muito poderoso, que me tocou de várias maneiras. Gostei muito.
O que espera dos espectadores brasileiros?
Se formos por esse lado, essa percepção que tive a respeito das similaridades entre Brasil e Marrocos, espero que as respostas por aí sejam parecidas com aquelas que tivemos aqui. Há tantas coisas que podemos nos conectar, marroquinos e brasileiros. Espero que esse filme provoque muitas reações, que gere debates, e que não passe em branco. Nossos esforços e lutas são muito próximos. São países diferentes, mas lutamos por coisas comuns. Estou bem curiosa, portanto. Acredito que possa ser uma ponte entre nós, e que essa identificação e conexão se fortaleça a partir de Adam.
(Entrevista feita por telefone em novembro de 2019)
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