Na maioria das sociedades, meninos e meninas são criados de maneiras totalmente diferentes. Enquanto as garotas são educadas para serem delicadas e dóceis, brincando com bonecas e forninhos de plástico rosa, meninos são encorajados a serem violentos e conquistadores, com suas armas de plástico e a erotização desde a infância. Quantos garotos não escutam perguntas do tipo “E aí, quantas namoradinhas você têm?”, antes mesmo de manifestarem qualquer desejo pelo sexo oposto (ou pelo mesmo sexo)?
A construção binária de gêneros é o tema de Normal (2019), documentário dirigido pela italiana Adele Tulli, e disponível online na 8 1/2 Festa do Cinema Italiano até o dia 10 de setembro. Sem qualquer depoimento ou narração, o filme apresenta cenas que escancaram a construção artificial do gênero, desde a infância até a fase adulta. Que expectativas são criadas sobre a adolescência de meninos e meninas? Quais pressões são exercidas sobre o corpo e a sexualidade de cada um deles? O Papo de Cinema conversou em exclusividade com a diretora sobre o projeto, destaque do Festival de Berlim:
Em que medida acredita que a construção de gênero seja biológica e/ou social?
A questão do filme é refletir sobre o quanto desta configuração é socialmente construída, ao invés de inata. A educação para o gênero se torna uma espécie de performance que aprendemos a desempenhar na infância, e reproduzimos ao longo da adolescência. Nós repetimos ideias, gestos, atitudes e até uma linguagem corporal que corresponda de certo modo às expectativas da sociedade e de instituições como a família, a escola e a mídia. Não acredito que seja possível efetuar uma distinção na compreensão do gênero entre biológico ou social – isso representaria uma divisão binária, como aquela que pretendemos combater. Mas a ideia do projeto era representar o quanto das nossas identidades de gênero corresponde a uma performance diária.
As construções da imagem masculina e feminina mudam muito de país para país, ou de época em época. O quanto deste retrato corresponde especificamente à Itália do século XXI?
Acredito que a divisão binária de gêneros seja um fenômeno global. A maneira como esta divisão se manifesta pode mudar entre países, assumindo várias formas. Mesmo assim, o fato de alguém ser criado como homem ou mulher traz expectativas predeterminadas em todos os países. No filme, eu obviamente traço um panorama da Itália atual, com as dinâmicas e estereótipos específicos à sociedade italiana. No entanto, a reflexão mais ampla sobre o modo como os gêneros são aprendidos e reproduzidos, como podem ser opressores e claustrofóbicos na construção identitária, ressoa com qualquer pessoa, de qualquer país. Quando apresentei o filme em países muito diferentes, percebia que as pessoas se identificavam com a necessidade de corresponder a certas regras sociais. Todos precisam se adequar a um padrão considerado “normal” em sua respectiva sociedade, acatando-o e moldando-se a ele.
Como acredita que a divisão binária de gêneros tem evoluído nas últimas gerações? Temos criado espaço para identidades fluidas?
Acredito que sim. Basta considerarmos, por exemplos, as três últimas gerações. Quando penso na minha avó, na minha mãe e em mim mesma, percebo uma grande transformação dentro da Itália, mas acredito se tratar de um movimento muito mais amplo. Quase todos os países apresentam mudanças na maneira como homens e mulheres se comportam em sociedade. Até pouco tempo atrás, as mulheres eram quase exclusivamente relegadas ao ambiente doméstico. Em termos de direitos civis, as questões de direito ao aborto e direito ao reconhecimento à identidade de gênero têm apresentado um progresso evidente. Mesmo assim, também se torna óbvio que, quanto mais progredimos, mais forte é a onda de resistência a estes avanços. Há movimentos reacionários muito intensos neste momento. As coisas mudaram, mas ainda resta um longo caminho a percorrer. Ainda estamos distantes de chegar ao estágio no qual não importe mais o gênero que lhe é imposto na infância.
Por que escolheu não incorporar qualquer narração ou entrevista ao documentário?
Este formato foi adotado durante o desenvolvimento do projeto. Quando comecei, fiz diversas entrevistas como parte do meu processo de pesquisa. Viajei por toda a Itália, usando um aplicativo de caronas com particulares. Assim, eu poderia viajar com diversos estranhos, e utilizei este dispositivo para ter uma série de conversas ao longo do trajeto. Discuti com meus passageiros o quanto da dinâmica de gênero lhes parecia imposta no dia a dia, e isso se refletiu em diversas histórias que coletei para o filme. Essas entrevistas foram muito importantes, mas decidi não incluir nenhuma delas no documentário. Percebi que não teria nenhum protagonista, nem pessoas apresentando histórias pessoais. Queria fazer um filme que não refletisse sobre nenhum indivíduo em particular, e sim sobre um sistema, ou seja, como a sociedade funciona e que estruturas a sustentam. Por isso, não poderia personalizar a reflexão de gênero. Optei então pela estrutura de mosaico, no qual nenhuma cena ou personagem retorna à história depois de ser apresentado. Nenhuma pessoa vista no filme retorna à história, então não há protagonistas. Praticamente não há diálogos, e não ouvimos qualquer opinião pessoal. Assim, aquelas pessoas poderiam ser qualquer um de nós. A dinâmica da coletividade se torna o verdadeiro protagonista, com suas cerimônias e coreografias sociais. Não importa quem elas sejam em suas vidas pessoais, por isso jamais entramos em detalhes.
Em termos de estrutura, o quanto desta narrativa estava prevista no roteiro, e o quanto nasceu no processo de edição?
Como eu não queria seguir o caminho de um protagonista, privilegiei a narrativa fragmentada. A única linha narrativa dizia respeito à minha relação com o espectador. Eu pretendia lançar diversas indagações, e solicitar que o público fosse ativo na leitura destes trechos e nas conexões entre as cenas. A ideia era tratar o tema como protagonista, ao invés das pessoas. Assim, não quisemos propor uma narrativa linear, e sim uma experiência imersiva dentro da qual o espectador fosse livre para estabelecer suas próprias relações, sendo desafiado por certas ideias. Ao mesmo tempo, não queria dar respostas fáceis, nem encerrar a discussão em poucas perguntas. Este foi o princípio da estrutura e da edição. Eu tinha múltiplas cenas que poderiam ser editadas de várias maneiras. Cada segmento poderia adquirir um sentido diferente caso fosse deslocado para outra parte da narrativa. Busquei as conexões mais frutíferas, e fiz diversas versões do filme junto da montadora Ilaria Fraioli, que foi uma grande colaboradora. O único preceito linear, digamos, se encontrou na progressão das fases da vida: começamos com a infância, depois seguimos pela adolescência e pela vida adulta. Sem isso, a estrutura teria sido dispersa demais, então a cronologia da vida nos serviu de guia narrativo.
Normal é um filme político repleto de humor e ironia visual. Qual é o papel da leveza dentro desta discussão?
A ironia pode ser uma ferramenta muito política. O aspecto satírico caminha junto da discussão política. Considero a ironia uma linguagem muito interessante, por que às vezes rimos de algo que nos desafia, mas diante do qual não sabemos como reagir. Ou seja, rimos de maneira um pouco amarga, e mesmo melancólica. Estes foram os tipos de ironia que eu buscava incorporar ao filme. Ao mesmo tempo, jamais quis rir daquelas pessoas, nem ridicularizá-las. O mais importante para mim era deixar claro que qualquer uma daquelas pessoas equivaleria a qualquer um de nós. Trata-se de uma narrativa de espelhamento, levando o espectador a refletir sobre a sua própria dinâmica, seus próprios estereótipos. Por mais que tenhamos consciência da divisão binária de gêneros, todos nascemos dentro deste sistema, não vivemos num vácuo cortado da sociedade. Logo, esta divisão afeta a todos. A intenção do filme era refletir de modo crítico, levando as pessoas a questionarem seus comportamentos diários, conscientemente ou inconscientemente, determinados por relações de gênero.