Apaixonado por Adoniran Barbosa. Assim se descreve o diretor e roteirista Pedro Serrano, quem tem dedicado o início da sua carreira cinematográfica a resgatar o espírito e a identidade do grande sambista paulista. Nascido no dia primeiro de fevereiro de 1987, em São Paulo, capital, o cineasta formado pela ESPM deu seus primeiros passos pela sétima arte em um exercício, ainda durante a faculdade, que se transformou no curta Luto em Luta (2012), nascido a partir de uma experiência muito pessoal – a perda de um amigo muito querido em um acidente de trânsito. Logo em seguida, no entanto, voltou seu olhar à obra do cantor, e nasceu, assim, o curta Dá Licença de Contar (2015), premiado nos festivais de Gramado e de Bilbao, entre outros. O interesse continuou, e com o sucesso dessa empreitada inicial, restou a ele se debruçar sobre a história do compositor de clássicos do cancioneiro nacional, como “Saudosa Maloca” e “Trem das Onze”. O resultado é o documentário Adoniran: Meu Nome é João Rubinato, que chega agora aos cinemas em uma versão inédita, com mais cenas além daquelas exibidas há mais de um ano no festival É Tudo Verdade. Aproveitando a oportunidade, o Papo de Cinema conversou com exclusividade com o realizador. Confira!
Por quê Adoniran Barbosa, ou, melhor dizendo, João Rubinato?
É uma pergunta difícil de responder, mas vamos lá. A verdade é que, além de fã, do Adoniran, ou do João Rubinato, como paulistano, é algo que eu poderia contar. Um cineasta de São Paulo, em busca de uma história para levar às telas, se estiver atento, vai se deparar, uma hora ou outra, com o que Adoniran escreveu e cantou. Tanto as histórias das suas músicas, como a dele própria, falavam também do meu lugar, de algo que sempre observei. Era um assunto que poderia falar com propriedade, e que nunca havia sido contado por ninguém. Mesmo hoje, tanto tempo após a morte dele, permanece inédito. Você sabe, o documentário veio de um curta, e o curta nasceu por achar as músicas dele muito visuais. A minha primeira atração foi pela obra, e dessa vontade em retratá-la como ficção. Naturalmente, através do aprofundamento de pesquisa, comecei a fazer o documentário. Uma coisa levou a outra.
Qual a diferença entre Adoniran Barbosa e João Rubinato? Como você descobriu essas duas facetas de um mesmo homem?
Acho que o João Rubinato era um batalhador, um cara que nunca teve uma vida profissional fácil. Ele criou diversos personagens ao longo da vida. Os do rádio, inclusive, foram os que trouxeram maior glamour, quando trabalhou como radio-ator, mais até que como Adoniran. A história do porque ele adotar esse nome é conhecida, tá no filme. Foi a forma que encontrou para se assumir como artista. O Adoniran Barbosa sempre foi visto pelo público e pela crítica, pelas gravadoras, como uma figura brincalhona, engraçada. E pegando carona na figura do palhaço triste, o João Rubinato trazia esse lado interior, não só por todas as dificuldades, mas por ser um traço marcante, de fato. Essa foi uma mágoa que nem no fim da vida ele deixou de ter. Além disso, quando era o João Rubinato, para os íntimos, conseguia ser uma figura mais profunda, astuta, perspicaz, atenta às mazelas sociais, ligado nas sacadas do cotidiano. Era um cara muito inteligente. Algo, no entanto, que não fazia questão de demonstrar como Adoniran.
Como foi o trabalho de pesquisa?
Desde o início optei por fazer um documentário com uma linguagem bem tradicional. Achava que o Adoniran era um personagem forte o suficiente para cativar as pessoas. Não queria que o filme, através da edição, aparecesse mais do que o personagem. E tinha que ter a cara dele, fosse um longa que ele gostaria de ver, com aquela simplicidade das canções dele. As imagens de São Paulo? Essa foi a primeira pesquisa, ir atrás dessas cenas. Fomos falar com amigos, gente que pudesse ter esses registros da São Paulo dos anos 1940, 1950, e até com colegas de cinema mesmo.
Mas qualquer cena daquela época estava valendo? Como foi essa seleção?
Queria resgatar o começo da transformação da metrópole. Uma preocupação é que tivessem muitas imagens de figuras humanas, não adiantava ter apenas construções, queria pessoas também. Depois, consegui também retratos da cidade em filmes de época, produções da Vera Cruz, até nas atuações dele – Adoniran esteve em mais de uma dezena de filmes. Enfrentamos um período complicado com a Cinemateca Brasileira, pois não nos era permitido ter acesso a esse material. Uma verdadeira calamidade pública. Nem resposta nos davam. Consegui ir atrás desse material em parceiros. No acervo da TV Cultura, por exemplo, o Zé Maria, que é coordenador do arquivo, me deu liberdade total, e fiquei por lá muito tempo pesquisando. E a Cultura também tinha muitas reportagens, acervo riquíssimo de coisas com ele, e jornalístico. Por aí segue. Compramos coisa da Globo, Bandeirantes, Record… ninguém cedia, tivemos que adquirir tudo. Isso que era um filme sem verba! Foi uma loucura. O período de pesquisa de imagens levou de 6 a 8 meses, mas o total chegou a um ano. Para finalizar, tivemos acesso ao acervo pessoal do Adoniran, que depois gerou uma exibição. Foi uma fonte de pesquisa riquíssima.
Como esse longa é complementar ao curta Dá Licença de Contar (2015)?
O curta vai passar junto ao longa em algumas sessões. São totalmente complementares. Esse curta foi uma das coisas que me possibilitou fazer o documentário sem nenhuma necessidade de trazer inovações de linguagem, ou sem medo de contar basicamente com depoimentos. Afinal, “a música tem que ser popular, senão o povo não canta”, não é mesmo? Essa é uma frase dele! O fato de ter feito o curta antes, e ele ser composto por uma viagem bem onírica pelas músicas, em uma época mágica de São Paulo que não existe mais, me influenciou em querer fazer esse retrato mais cru e tradicional. Um nasce do outro. Nesse sentido, se complementam, e quem for nas sessões com os dois, poderá ter uma visão holística do processo.
Depois destes dois, chega de Adoniran? Ou tem mais por aí?
Existe essa vontade de transformar o curta em longa, estamos trabalhando nisso. Já temos investimentos e parceiros, e seguimos captando recursos. Mas vai levar tempo para acontecer, inclusive em função do momento político atual. Até fundos que haviam sido prometidos, estão parados. O roteiro tá pronto, será com o mesmo elenco, todos estão muito entusiasmados com a possibilidade! Estamos torcendo para que o lançamento do documentário nos ajude nesse sentido.
Adoniran Barbosa é também o condutor do documentário. Imagino que tenha sido a parte mais difícil do processo.
Totalmente. Como foi um trabalho de pesquisa, primeiro entrevistei todo mundo. Muitas coisas foram contadas pelas pessoas, e depois apareciam no material de pesquisa. Sempre que tinha algo que o Adoniran contava, a prioridade era usar a voz dele. Ainda que as palavras possam parecer confusas, às vezes. Essa era a nossa regra básica. Deixamos de fora até explicações complementares, pois fazia parte dessa viagem que estávamos propondo. Tinha que entrar nessa viagem, pois era uma conversa com ele. Sempre que fosse possível, ele que iria falar. Até as polêmicas, que estão no filme, foram construídas em torno dos entrevistados. Por isso procurava não contradizer muito. Porque também pensei que, se ele não quis contar ou esclarecer, não seria eu a fazer isso.
Adoniran foi uma figura controversa. Como foi a tua relação com a família dele?
Tive grande liberdade, posso dizer. Do primeiro momento em que apresentei para a família, houve uma conversa a respeito de alguns temas, mas eles acabaram se convencendo a se liberar tudo. Não houve o caso de quererem preservar algumas imagens.
Algum caso em particular?
A relação dele com a filha, por exemplo, não queria censurar, poderíamos ter falado mais a respeito, mas ela só não queria participar. Tive que insistir muito para conseguir o depoimento dela, que falou das partes boas do relacionamento dos dois, mas também da distância que existia entre eles. Ela coloca até de uma maneira discreta e elegante como lida com o assunto, e por isso tivemos que respeitar.
Teve assuntos controversos ou temas que você preferiu evitar?
Confesso que alguns causos divertidos, que os companheiros dele contaram, optei por não trazer, porque acho que nos anos 2000 não caberiam mais. Foram poucos que decidi deixar, porque, afinal, retratavam a época, e acreditei que era necessário ter essa compreensão. Mas eram pontuais, e compreensíveis. Certas abordagens, no entanto, principalmente em relação às mulheres, por exemplo, optei por não colocar, mas não por censura, mas como decisão narrativa, mesmo.
E quanto ao trabalho alegadamente inédito dele?
Essa era outra polêmica. Teve um cara que falou de tal música, se era ou não dele. Quer dizer, esse assunto, volta e meia voltava, mas nunca era comprovado. Mas tem uma, que quis mesmo deixar de fora, sobre as músicas inéditas! Uma, do conjunto João Rubinato, se mostrou concreta. Mas outra, de um editor que, depois da morte do Adoniran, surgiu dizendo que teria músicas dele. Cheguei a ficar entusiasmado, mas, no meio do processo, tive absoluta certeza de que a história estava mal contada. Isso acabou ficando de fora, por tempo, mas também por achar que seria muita vaidade minha, sabe, “eu tenho a verdade”. Ninguém queria saber disso. E era um elemento estranho, insignificante. Melhor deixar do jeito que está.
(Entrevista feita em janeiro de 2020)
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