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Aeroporto Central: THF :: “Se você não se indignar, acaba morrendo à margem”, diz Karim Aïnouz

Publicado por
Marcelo Müller

Antes de ser premiado no Festival de Cannes 2019 com A Vida Invisível (2019), o cineasta brasileiro Karim Aïnouz havia recebido láureas por seu filme anterior, Aeroporto Central: THF (2018), que saiu do Festival de Berlim com o troféu concedido pela Anistia Internacional. Se trata de um documentário majoritariamente observacional sobre os refugiados, especialmente sírios, alocados no antigo aeroporto de Tempelhof, uma das mais célebres construções do regime nazista. Um olhar bastante singular sobre a crise migratória, com especial atenção às singularidades dessa gente que vive em constante estado de suspensão longe de casa e simultaneamente apartada da sociedade local. O filme teve exibições especiais no Festival do Rio 2018 e estava programado para chegar às salas comerciais ainda no primeiro semestre de 2020. Todavia, por conta da pandemia do novo coronavírus, ele teve sua estratégia de lançamento alterada, atualmente constando no cardápio de empresas de VoD/streaming. Confira este Papo de Cinema exclusivo que tivemos com Karim Aïnouz sobre Aeroporto Central: THF.

Desde o começo sua intenção era fazer um documentário observacional?
Muito boa a pergunta. Falava para mim mesmo que era importante registrar as incongruências contidas na permanência de um monte de refugiados num aeroporto construído na época do nazismo. Porém, a ideia inicial nem era fazer um filme, mas apenas um registro histórico. Queria fornecer algo aos filhos dessas pessoas para o futuro. De certa maneira ali tem boa parte da História da Alemanha e uma ressignificação enorme. Esse foi o disparador. Mas e dramaturgicamente? Porque, tanto faz documentário ou ficção, é preciso engajar. Era necessário, então, contar o que se passava e fazer retratos de personagens. Num segundo momento, a ideia era realizar uma observação radical. Mas é bom a gente estar aberto à noção de que certas escolhas acontecem antes mesmo que nós as façamos.

 

Como assim?
Quando comecei a ver o material filmado, entendi que também se tratava de um filme de espera. As pessoas estão ali em suspensão. Essa questão da observação então me pareceu a forma mais correta de contar a história das esperas. Mas também me soava necessário que o filme fosse um documento sobre certo tempo. O cinema observacional radical, que eu amo, tem alguma frieza, exige uma paciência do espectador, algo muito difícil em 2018. Foi muito importante trazer a construção de personagens a partir, claro, de pessoas existentes, ou seja, ter o calor de um personagem dentro de uma paisagem de observação. Me parecia importante fazer um retrato que não fosse genérico.

Foto: Fabrizio Bensch

E pegando isso como gancho, a narração estava prevista ou também surgiu na observação do material filmado?
Quando começamos a montar, não havia narração. Então, percebi que aquela observação não era suficiente para contar as histórias. Meu lugar era o do privilégio, pois eu tinha a câmera. Ficava muito incomodado pelo fato deles não poderem contar a própria história, mas também não queria fazer algo demagógico, como dar câmera para eles. Então, ofereci um caderno para cada um. Aliás, a gente até tem um projeto de publicar isso em livro adiante. A partir desses escritos escolhemos a voz do Ibrahim, na verdade ela acabou o impondo como protagonista. Para mim foi um realmente um grande desafio fazer um documentário de observação. É possível, eu adoro, mas também, por outro lado, achava que apenas aquilo não dava conta de falar daquela tragédia humana.

 

De que maneira o fato de ser um estrangeiro residente em Berlim o colocou num lugar singular para falar dessa questão migratória?
Tem um negócio sobre qual não tenho falado muito. Meu pai é argelino, fez parte do movimento de libertação da Argélia nos anos 1960. Quando o país deixou para trás a democracia e começou a ser governado por uma junta militar, ele acabou indo embora, isso em 1974. Então, essa questão é muito próxima da minha vida privada. Isso foi um dos motivos que me fez querer fazer o filme. Claro que o fato de ser brasileiro e morar há muito tempo noutro país ajudou no processo de empatia. Diferentemente daqueles projetos que a gente fica uns três anos escrevendo, esse chegou até mim dizendo que precisava ser feito.

E como foi o processo de conseguir autorização para filmar naquele lugar?
Foi muito difícil. Passei seis meses indo lá praticamente toda semana. E parte dessa autorização, pelo menos eu acho, veio do fato de eu não ser dali também, de não ser um cidadão alemão de nascimento. E esse lugar de fala, acredito, abriu muito a minha possibilidade de relação com esses personagens que lá estavam.

 

O seu cinema é muito vinculado às minorias, não demograficamente falando, mas quanto à ocupação dos lugares de poder. Como você encaixa nessa ideia o Aeroporto Central THF?
Quando comecei a fazer o Madame Satã, em 1994 (filmamos somente em 2002), era movido pela raiva dos abismos social, racial e humano que existem nesse país. O cinema tem uma coisa maravilhosa. Você coloca numa mesma sala um bando de gente e projeta na telona algo com que todos vão ter de lidar. Em 2016, quando fiz O Céu de Suely, existiam pouquíssimos filmes protagonizados por mulheres. E eu era muito pautado por A Hora da Estrela (1985), uma das coisas mais lindas do cinema brasileiro. Para mim cinema também é isto: tirar da margem e colocar na ribalta. Derrubar paredes. Quanto ao Aeroporto Central: THF, ele veio também do meu incômodo com a representação das pessoas que chegavam à Europa fugidas da guerra. Acho muito bonito quando você fala isso das minorias não demográficas, exatamente porque ao nos referirmos às minorias, estamos na verdade nos reportando a grupos à margem do poder hegemônico. Então, estar atento cinematograficamente a tudo isso me parece um ato de justiça. Fazer um filme é um troço gigante, até ecologicamente desastroso, então ele tem de valer muito a pena.

Como é fazer cinema nestes tempo de radicalização, de ascensão da extrema-direita, de frequentes tentativas dos poderosos de tornar mais invisíveis ainda essas minorias?
Me interesso muito pela raiva. Acho que o Pier Paolo Pasolini falava também sobre isso. Raiva é diferente de Ódio, pois ela te dá uma sensação de movimento que é oriunda de indignação. Ódio é uma questão de abominar o outro. Não tenho raiva de ninguém, tenho raiva de um estado de coisas, da injustiça. Para mim não existe esquerda e direita, existe justiça e injustiça social. A raiva me mantém vivo. Ela me faz gritar e colocar de maneira mais inteira. Por outro lado, não se pode viver sem amor. Fui muito novo morar fora do Brasil, em Nova Iorque, onde fiz amizade com membros de uma comunidade negra. Eles eram incríveis, engraçados, mas muito raivosos, ninguém se metia a besta com eles. Aprendi muito com isso. É o discurso do Malcom X. Não devemos ter ódio, mas amor. Todavia, me parece imprescindível ter raiva de um estado das coisas, aquele que fere o outro. Importante nunca se esquecer de que fazer cinema é um privilégio enorme. É há um verdadeiro dever cívico no fazer cinema. Nesse momento em que a gente vê o Brasil tomado por preconceitos e afins, se você não se indignar, acaba morrendo à margem.

 

(Entrevista realizada em novembro de 2018, transcrita em 2020)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.