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Em 2014, numa comunidade pobre em Nápoles, Davide foi assassinado pela polícia, que confundiu o garoto de dezesseis anos com um fugitivo. Mais tarde, imagens de segurança comprovaram que o jovem não tinha qualquer ligação com o crime. O diretor e produtor Agostino Ferrente decidiu fazer um filme sobre o caso, longe do tom das reportagens policiais. Nasceu então Selfie (2019), documentário que se destaca dentro da programação da 8 1/2 Festa do Cinema Italiano, realizada este ano em versão online e gratuita.

O cineasta encontrou dois garotos de dezesseis anos, Alessandro e Pietro, amigos de Davide e moradores do mesmo bairro do rapaz morto. Entregou câmeras de celular aos jovens, e pediu que filmassem a sua própria realidade: os amigos, as ruas da cidade, a vida dentro de casa. Depois, intercalou estas selfies com imagens frias das câmeras de segurança dos comércios locais. O resultado é uma fascinante desconstrução do fetiche da criminalidade, além de um belo filme sobre a amizade, pelo olhar de um diretor tão inteligente quanto ético na abordagem de uma comunidade estigmatizada. Confira a nossa crítica. Selfie fica disponível gratuitamente até o último dia do festival, 10 de setembro. Confira a nossa entrevista exclusiva com o cineasta:

 

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Agostino Ferrente. Foto: Divulgação

 

De onde vem o interesse por este pequeno bairro napolitano em particular?
Mesmo sendo da Apúlia, eu venho de uma realidade parecida. Quando soube do assassinato de Davide, fiquei muito impressionado porque, quando era garoto, também andava de motocicleta sem capacete, como ele. Nas periferias de qualquer lugar do mundo, a polícia age com igual truculência. Nos Estados Unidos, quando os policiais veem um jovem negro correndo, não pensam que é um garoto atrasado para pegar o trem, e sim um ladrão que acabou de assaltar alguma loja. No caso da Itália, os jovens negros habitam sobretudo nas periferias, como em Nápoles, em regiões de forte evasão escolar.
De um ponto de vista social, fiquei surpreso ao perceber que a morte de Davide foi anunciada imediatamente como a morte de um criminoso, antes mesmo das investigações. Mesmo que ele fosse um criminoso, não justificaria matá-lo, apenas prendê-lo. Se ele de fato tivesse cometido algo, que fizessem então um processo e o julgassem de acordo. Não cabe aos policiais julgarem o garoto ali na hora. No final, Davide não era nenhum bandido. Ele tinha apenas 16 anos – e como um adolescente pode ser um criminoso? A família de Davide explica que o jovem foi morto duas vezes: a primeira, pelos policiais, e a segunda, quando assassinaram a reputação dele. Ainda teria tido uma terceira morte: a sentença da justiça [que não puniu os policiais].

Quando os policiais veem um jovem negro correndo, não pensam que é um garoto atrasado
para pegar o trem, e sim um ladrão que acabou de assaltar alguma loja.

Mas eu também tinha uma motivação narrativa, que diz respeito à metalinguagem. É claro que a técnica precisa estar a serviço da história, ela precisa se adequar ao que decido contar. Meu filme anterior foi em Nápoles – aliás, faz muitos anos que filmo os arredores de Nápoles. Os bairros de periferia, que são os bairros-dormitório, se tornaram os novos clichês quando se fala em criminalidade e truculência policial. Isso aumentou com a série Gomorra (2014 – ). Os programas de televisão gostam deste visual, quando se desenha claramente um imaginário da periferia. Mostram a Camorra e a delinquência por meio do espetáculo da violência. Ao invés de filmar a periferia de Nápoles, pensei então em filmar o olho de quem a vê. Este imaginário popular da marginalidade já está fortemente disseminado, mas agora podemos ver quem olha esta realidade. Ao enquadrar o olho dos moradores, podemos descobrir algo novo.
Quando acontecem estes assassinatos, é comum chamarem os psicólogos, sociólogos e outros especialistas, mas quase nunca se chama as pessoas diretamente afetadas pelo caso. Pensei então que seria melhor contar esta história pelo ponto de vista daqueles diretamente interessados. Neste caso, o ponto de vista não tem apenas um significado discursivo, ele também indica um posicionamento concreto, material. Fiz então duas apostas, e agora posso falar nelas porque deram certo, mas morria de medo de darem errado: eu queria unir os olhares subjetivo e objetivo dentro do mesmo plano. Assim, criaria uma imersão sem usar efeitos especiais. Nos filmes policiais, quando um suspeito é levado para a sala de interrogatório, sempre existe um vidro: a pessoa apenas vê o próprio reflexo, mas existem várias pessoas atrás do vidro, que conseguem vê-lo. Com o uso do telefone celular, o garoto consegue ver o que está na tela, ao mesmo tempo em que é refletido por esse espelho.

É muito interessante pensar em como contar a realidade
numa época em que a realidade conta a si mesma.

Queria fazer uma observação de caráter sociológico-antropológico: é muito interessante pensar em como contar a realidade numa época em que a realidade conta a si mesma. Antes, quando era noticiado algum crime, os jornalistas iam até o local, investigavam, escutavam vários lados envolvidos. Hoje, isso é contado pelas imagens de celular dos passantes e pelas filmagens amadoras – isso valeu inclusive para o 11 de setembro -, além das imagens de segurança. Agora são as nossas câmeras pessoais e caseiras que contam a História. O que os meninos filmam se assemelham a uma versão anoréxica, nervosa dessa realidade, enquanto as câmeras de segurança oferecem uma visão bulímica do real. É um Big Brother que vê tudo, mas não interage com nada, nem possui uma conexão emocional. A câmera de segurança transforma qualquer pessoa em potencial suspeito.

 

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Selfie

 

Que relação os dois garotos tinham com o cinema? Em que medida as imagens obtidas por ele foram condicionadas ou controladas por você?
A resposta à primeira pergunta é triste. Esses meninos são protagonistas de muitas histórias, filmes e livros, mas eles não consomem as histórias sobre eles mesmos. Eles alimentam o consumismo destas narrativas, sem poderem se amparar delas. Isso me deixa muito triste. Por isso, decidi fazer uma sessão do filme no bairro onde eles moram, a céu aberto e gratuitamente, perto do memorial ao Davide. Foi maravilhoso. Pela primeira vez, eles puderam ver a si próprios, sabendo que aquela era a realidade contada por eles mesmos.
Quanto ao meu controle, eu chamaria esta estrutura de dramaturgia da realidade. Posso brincar e dizer que Alessandro, Pietro e eu formamos um belo casal de três. Eles são protagonistas e diretores de câmera, mas não têm qualquer direcionamento, nem restrições da minha parte. Seria hipócrita se eu fizesse isso. Eles abandonaram a escola aos 13 anos, e têm dificuldade de falar italiano corretamente. Por isso, comunicam-se em dialeto. Eu apenas esconderia os problemas ao pressupor que eles têm capacidade de fazer o filme completamente sozinhos. Por isso, não podia nem dirigi-los, nem abandoná-los com a câmera. Como em todos os documentários de personagem, Alessandro e Pietro são coautores. A vida deles, o rosto deles e as histórias deles já constituem um patrimônio narrativo. Coube a mim apenas cozinhar os ingredientes preexistentes. A vida de cada pessoa dura 24 horas por dia. Espero que eles ainda tenham muitos dias pela frente.

O diretor sempre é o primeiro espectador de um filme, com o privilégio e a
responsabilidade de melhorar este work in progress.

A direção tem o dever de fazer uma síntese poética ao longo dos 80 minutos que duram o filme. Para ser sintético, em termos narrativos, eu criei situações. Eu selecionava contextos, mas as escolhas ali, na hora, do que filmar e como filmar, pertenciam a eles. Ao mesmo tempo, tudo o que eles contam é verdadeiro. Passo muito tempo trabalhando com a câmera desligada, enquanto construo uma relação com os personagens, antes de começar a filmar. Se a mãe e o pai brigam diante de um filho, eles não se controlam nem medem as palavras, porque se trata de alguém da família. Mas quando existe alguém estranho por perto, as pessoas se censuram, evitam certos gestos e palavras. Queria me tornar um membro da família, nesse caso, para que eles não precisassem ocultar nada quando eu estivesse por perto. Quando os protagonistas me disseram que não se importavam com a minha presença, isso foi um grande elogio, porque significava que meu trabalho estava funcionando.
O diretor sempre é o primeiro espectador de um filme, com o privilégio e a responsabilidade de melhorar este work in progress. Eu me apaixono por certos aspectos dessas pessoas, mas sei que preciso contá-los para que o público também se apaixone por elas. Então eu me converto em veículo e discurso para tornar estes aspectos visíveis. É como se eu fosse um cabeleireiro. Se eu corto o cabelo de alguém, não mudo a pessoa. Ela continua a mesma, apenas fica mais bela.

 

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Selfie

 

Como a estética da selfie se combinou com a estética do cinema?
Eu pedi aos garotos para filmarem na horizontal, ao invés da vertical. A selfie valoriza o aspecto narcisista, ela se concentra nos rostos, mas eu pedi que eles se colocassem no canto dos enquadramentos, e nunca esquecessem de filmar o entorno. Assim, temos também o ponto de vista da estrada, das ruas. Podemos dizer que esta é uma selfie que não te faz ver o que está logo em frente, mas o que existe por trás. De certa forma, o projeto conta o contexto da tragédia do Davide, e também sugere que aquilo poderia acontecer a Alessandro, Pietro e qualquer outro garoto ali. Queria fazer um filme sobre o presente, e não sobre o passado.

Existem reportagens ótimas, mas certamente não é isso que eu queria fazer.

Existem reportagens ótimas, mas certamente não é isso que eu queria fazer. Não queria entrevistar só os amigos e familiares dele, perguntando se era um rapaz bacana, comportado etc. Quis contar a história de dois meninos de 16 anos, para sugerir como seria a vida de Davide hoje se ele não tivesse sido assassinado. O celular foi um instrumento muito útil: como ele já fazia parte da vida cotidiana dos garotos, isso diminuiu a ansiedade. Se eu chegasse com uma câmera de cinema ali, acredito que eles tentariam me entregar uma atuação em estilo Gomorra.
Vários diretores já fizeram filmes ótimos com celulares, como Steven Soderbergh, mas eles criaram um subgênero do cinema. Eu não queria apenas fazer um filme de celular, só queria dar a possibilidade para os garotos se filmarem como se estivessem no espelho, através de um instrumento pouco invasivo. Se eu fizesse um filme normal, com grande elenco, grande produção, equipamentos de iluminação cara, e substituísse a câmera por um celular, teria um resultado igual ao cinema convencional, apenas substituindo a câmera de cinema por um celular. Eu apenas faria um spot publicitário para a Apple ou qualquer outra marca de celulares.

 

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Selfie

 

Como combinou as imagens filmadas pelos garotos e as imagens das câmeras de segurança?
Hoje, além de existirem as câmeras de segurança das ruas, cada comércio ou serviço tem as suas próprias câmeras. Mesmo o assassinato de Davide teve certa produção visual: percebe-se pela imagem que ele está caído, e se escuta o barulho do disparo, mesmo que não o vejamos em detalhes. Essas imagens foram utilizadas no processo judicial, para desconstruir as mentiras que foram contadas. Mesmo assim, procurei usar outras imagens para criar esta impressão de um bairro que se olha no espelho. Este recurso permitia a ideia de que o crime de Davide poderia se reproduzir a qualquer momento, e que qualquer um daqueles garotos passando em frente às câmeras seria uma vítima em potencial.
Essas câmeras de segurança são imutáveis: elas são frias, paradas. Em paralelo, as câmeras dos garotos são móveis, parecem lutar contra este destino traçado, fornecendo a possibilidade de construir a própria história. Shakespeare disse: a vítima que ri para o ladrão rouba algo do ladrão. Já a vítima que chora rouba algo de si mesma. Acredito que, nesta história da periferia, o ladrão seria o destino, enquanto os meninos que sorriem para o destino, acabam por roubar algo dele. Nos meus filmes, sempre evito mostrar os protestos dos moradores contra os poderosos. Prefiro revelar os sorrisos. A autoironia é uma arma, e a beleza é um remédio.

Eu queria contar o sorriso destes meninos.

Eu me lembro da história de um diretor italiano, já velho, a quem se pediu que filmasse a poluição nos oceanos: o plástico, petróleo etc. Na hora, ele filmou um mar limpo, sem contaminação, belíssimo. A WWF o chamou, e reclamou: “Você não entendeu o pedido! Queremos que você faça a denúncia do que está acontecendo!”. Mas esta é a grande denúncia, ele respondeu: fazer as pessoas verem o que estão perdendo. Por isso, eu queria contar o sorriso destes meninos. Eles são tratados como se o fato de nascerem num bairro pobre fosse culpa deles. São as forças da ordem que atribuem essa culpa – logo as forças que deveriam proteger a eles e outras pessoas indefesas. Queria que todas as pessoas, mesmo aquelas que não fazem nada a respeito por medo e que evitam esses bairros – imagino que existam vários lugares semelhantes no Brasil, inclusive –, consigam compreender que a delinquência não é um fator genético. Não é porque uma pessoa nasceu num bairro popular que ela tenha qualquer predisposição à criminalidade, ou que não seja honesta. Não funciona assim.
Imagino que em qualquer lugar do mundo, da Índia ao Brasil e às Filipinas, o direito à saúde, ao estudo e à proteção esteja previsto na Constituição. Ora, quando a criança precisa de ajuda para fazer uma lição de casa, ela pede aos pais. Se os pais não estudaram, eles não poderem ajudar. Se os pais não têm dinheiro para uma aula de reforço, também não podem contratar alguém que ajude. Essas crianças têm mais dificuldade no ensino, e acabam abandonando a escola. Os pais não conseguem comprar uniforme, livros, material escolar. Quando um garoto abandona a escola assim, num bairro pobre, onde a economia não prospera, a única opção de sustento se encontra na criminalidade. Eles não se tornam grandes líderes do crime, apenas ladrões ou traficantes de baixo escalão. Afinal, os filhos dos maiores chefes da Camorra fazem faculdades privadas, estudam nos Estados Unidos, tornam-se advogados, engenheiros.

Os jovens criminosos retratados em Selfie caminham à morte,
seja a morte civil, seja a morte física.

Os jovens criminosos retratados em Selfie caminham à morte, seja a morte civil, porque acabam na prisão, seja a morte física, porque são assassinados pela concorrência ou pela polícia. Deste modo, uma família pobre será sempre pobre, e uma família com pessoas na cadeia tende a ter novas pessoas na cadeia. Isso se chama determinismo social. Na Itália, os custos de manter um preso na cadeia chegam a 250 euros por dia. Consegue imaginar quantas coisas poderiam ser feitas, com 250 euros por dia, para manter esta pessoa fora da prisão? Daria para comprar livros, colocá-la na escola. Na rotina destes meninos, as forças da ordem são os únicos elementos que adentram os bairros pobres, e os policiais não são mais vistos como aliados, e sim como inimigos. É a limpeza social: elimina-se o pobre. Obviamente, nem todos os policiais ou militares são assim. O problema são os policiais racistas, truculentos e aqueles que utilizam a instituição para defender os mais ricos contra os mais pobres.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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