Em Ainda Temos a Imensidão da Noite (2019), a trompetista Karen (Ayla Gresta) e seus colegas de banda acreditam profundamente na importância da música, e pretendem viver de seu trabalho como artistas. No entanto, a cidade de Brasília demonstra pouco interesse pela arte, o retorno financeiro não vem, e aos poucos os colegas começam a encontrar trabalhos tediosos em escritórios. Revoltada com a situação, Karen decide se mudar para Berlim, onde acredita que terá mais possibilidades. Na Europa, descobre novas possibilidades para atuar enquanto musicista.
O filme, exibido durante a Mostra Internacional de São Paulo e disponível nas salas de cinema a partir dessa quinta-feira, dia 5, transpira rebeldia juvenil contra uma cidade apática. O diretor Gustavo Galvão, que cantou numa banda punk durante a juventude, decidiu contratar músicos reais para essa história, e acabou criando não apenas uma ficção, mas também a banda Animal Interior. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com o cineasta sobre o projeto:
Você queria músicos reais no filme, ao invés de atores que aprendessem a tocar instrumentos. Como foi o caminho de produzir o filme e a banda?
Foi uma das coisas mais absurdas da minha vida. Fazer um filme já é difícil, mas fazer um filme enquanto produz uma banda foi uma novidade constante para mim. Mesmo agora, quando vamos ter o show da banda durante a pré-estreia, as novidades não param. Várias coisas confluíram para isso. Eu pensava há muito tempo em fazer um filme sobre músicos. Tive uma banda punk nos anos 1990, mas eu cantava, não tocava. Desde aquela época eu admirava quem tirava sons, e ficava intrigado: por que um som emociona a gente? Por que às vezes uma combinação nos surpreende?
Quando você começa a conviver com músicos, percebe que a vida deles é muito diferente do que dizem. Os filmes retratam músicos como vagabundos, ou pessoas largadas. Mas os instrumentos, principalmente os de sopro, exigem uma dedicação constante. O Lee Ranaldo veio da estrada, porque estava na Argentina, e ele já me pedia: “Você tem um violão? Eu preciso praticar”. A relação do músico com o instrumento é muito bonita, é como uma extensão do corpo. Seria natural eu pensar em atores para o filme, mas quando conversava com amigos músicos, eles me surpreendiam ao se dizerem frustrados com filmes sobre músicos. Para eles, ficava claro que o ator estava fingindo, era um sacrilégio.
Na primeira vez que vi a Ayla tocar, no entanto, as veias dela saltavam. Fiquei surpreso, e pensei: “Por que não vemos isso nos filmes?”. Seria impossível pedir a um ator: “Vai treinando trompete porque daqui a dez anos quero fazer um filme”. Parti então para a escolha de músicos que depois seriam preparados para atuar. Na verdade, a parte da atuação nem foi tão difícil, porque eles já performam no palco. O ator também é isso, basta adaptar o corpo para a câmera. Tivemos uma preparadora de elenco, e uma preparação vocal para ensinar a projetar a voz sem berrar. Foi um processo longo, e fiquei cada vez mais satisfeito e grato. Se fosse feito com atores não-músicos, o projeto perderia o que tem de principal, porque Ainda Temos a Imensidão da Noite é uma homenagem ao fazer musical, em tudo o que tem de dificuldade, resiliência, paciência, conhecimento.
Percebi ao longo do projeto como isso falava sobre mim mesmo enquanto cineasta. É óbvio que não ficamos satisfeitos em fazer filmes para apenas mil, duas mil pessoas, assim como eles não ficavam satisfeitos em fazer show para cinco pessoas. São tantos anos de esforço que queremos que muitas pessoas vejam. Mas são tantas variáveis até um filme chegar ao cinema, ou até uma banda chegar ao público, que isso foge da alçada do artista. Vai depender de quem vai distribuir o meu filme, em que sala ele vai entrar, quais filmes vão estrear ao mesmo tempo. Isso foge da nossa escolha. Eu me tranquilizei ao pensar que precisamos nos alimentar desses pequenos retornos. Na Mostra de São Paulo, por exemplo, um músico assistiu ao filme e mandou uma carta emocionada à Ayla. Outro espectador, brasiliense, se identificou muito com a representação da cidade.
A propósito de Brasília, de que maneira a cidade condiciona a música e a revolta desses jovens?
O projeto tinha o desejo de falar sobre músicos, mas também sobre Brasília. Eram duas vontades conectadas. Eu vivi os anos 1980 e 1990 ali, quando o rock explodiu. Foi o rock que deu identidade a Brasília. Não é errado falar isso. Antes, ela era apenas uma cidade que você via no Jornal Nacional – e odiava. Hoje, um paulistano passeia pela Avenida Paulista e se depara com fã clube do Legião Urbana tocando violão. Num restaurante, toca Plebe Rude, Capital Inicial. Por mais que não seja o meu estilo, não posso negar a força que aquilo tem. Por que esse processo não continuou? Por que Brasília careteou?
Eu acabei precisando de uma cidade-espelho, no caso, Berlim. As duas cidades têm uma história muito parecida. Berlim foi totalmente destruída durante a guerra, e precisou ser reconstruída do zero. Brasília também foi construída do zero, ao mesmo tempo, nos anos 1950 e 1960. Os ideais eram os mesmos: modernismo, Bauhaus. Mas eram cidades administrativas, machucadas pela História: Berlim, com a guerra, e Brasília, com a ditadura. Ali o projeto de Brasília começou a rachar, quando os militares perceberam que o desenho de Brasília seria muito conveniente para eles controlarem. Dizia-se que na época da ditadura, os porteiros de prédios eram informantes. Foi a cultura jovem que deu personalidade a Berlim e Brasília, mostrando que ali tinha vida, com pessoas que pensam e criam. Mas Berlim continuou esse processo e se tornou a meca da juventude, da música eletrônica, enquanto Brasília pegou um desvio.
Na verdade, Brasília era um projeto utópico, de vanguarda. Grandes cabeças foram reunidas para esse projeto, como Oscar Niemeyer, Burle Marx, Athos Bulcão. Deveria ser uma cidade diferente, mas ela ficou cada vez mais igual às outras. Como eu estava falando de músicos, comecei a procurar relatos e ouvi cada vez mais casos de shows para nove pessoas, show para sete pessoas, até o dia em que ouvi falar de um show para uma pessoa. Alguns lugares passaram a fechar mais cedo, enquanto outros fecharam de vez. Até por isso existe esse título, porque a música precisa do espaço da noite para se desenvolver e para ser ouvida. Já me perguntaram: “Ainda temos, de fato, a imensidão da noite?”, e eu acredito que sim. É o que temos, pelo menos.
Estamos vivendo um momento em que precisamos de ideias firmes, independentemente de sua posição política. Mas estamos lidando com certa apatia no ar. As pessoas estão ou apenas revoltadas online, ou aceitando a situação passivamente. Não pode ser assim, ainda temos motivos para lutar. Eu poderia fazer este filme em São Paulo, em Porto Alegre, e talvez as lutas fossem parecidas. Sei de muitos lugares importantes fechando as portas em São Paulo. Escolhemos, de propósito, tocar em um lugar de resistência, porque o cenário musical, e cinematográfico, precisa desses espaços de resistência. Precisamos levantar do sofá, nos mexer e explorar as possibilidades enquanto ainda der tempo.
Você enxerga a mudança da Karen para Berlim como uma fuga? De que maneira concebeu o triângulo amoroso da história?
Essas relações se dão primeiro entre as cidades. Eu escrevi o roteiro, mas é importante dizer que temos também uma roteirista alemã, uma roteirista gaúcha, além de colaboradores como Karim Aïnouz e Miguel Machalski. Além deles, ouvimos muito os atores. Chegamos a Berlim com um roteiro pronto, mas os atores trouxeram diversas ideias, e reescrevemos cenas com eles. Por exemplo, a cena da ocupação teve diálogos reescritos com os atores e os produtores de locação. Quando chegamos na cidade, descobrimos questões locais que foram incorporadas ao filme.
A Karen é a minha personagem favorita, de todos os filmes que eu já fiz. Ela tem uma meta e vai atrás dela. De fato, existem esses dois personagens masculinos fechando um triângulo, mas ela não vive à mercê deles. Quando ela procura esses personagens, é por causa da música. Quando se confronta a Arthur, ela questiona porque ele parou de tocar. Os membros da banda tinham uma química. Karen procura entender porque uma pessoa que toca tão bem optou por uma vida fácil, cômoda, aos 27 anos de idade. Percebi ao longo do projeto que este é um questionamento constante entre os músicos. Eles atravessam diversos momentos em que não entra dinheiro nenhum. É difícil viver assim, especialmente para um músico que precisa praticar, precisa viver com os outros.
As relações foram construídas pelas profissões e pelas cidades, mas no meio disso existe a Karen. Ela tem muita determinação, mas nem sempre sabe como aplicá-la. Quando ela vai para Berlim, sem se preocupar com o resto do mundo, ela se depara com a apatia do Martin. Karen ativa nele algo que estava adormecido. Isso casa com o título: ainda temos a persistência, ainda temos a vontade de fazer. Eu me identifiquei muito com esses personagens porque percebi que estava falando do meu próprio trabalho. Não sou mulher nem toco trompete, mas sou artista, criando. Mesmo um artista no sertão vai enfrentar essas dificuldades.
Por isso tenho ficado tão contente com as respostas que o filme vem despertando. Um DJ veio conversar comigo, emocionado, porque tinha abandonado a música para aceitar o emprego num escritório. Eu pensava: “Não, não faz isso!”. Ao mesmo tempo, eu entendo, é claro. Gosto de falar sobre essas escolhas. A gente tem que tomar decisões na vida, mesmo sem ter maturidade para isso. A gente é maduro o suficiente para escolher a nossa profissão quando presta vestibular? Eu sou jornalista de profissão, e da minha turma, quase ninguém pratica jornalismo. Um colega que estudou direito depois foi fazer veterinária. Precisamos sempre tomar decisões, mas às vezes é importante errar. É isso que Karen diz a Arthur. Ela não procura nele um amor. Errar faz parte, e é bom que faça parte.