Categorias: Entrevistas

Ainda Temos a Imensidão da Noite :: “Queria me relacionar com a música, mas mulheres são ensinadas a se relacionar com homens”, diz Ayla Gresta

Publicado por
Bruno Carmelo

É difícil imaginar que a atriz principal de Ainda Temos a Imensidão da Noite (2019), Ayla Gresta, nunca tenha atuado antes, e mantivesse uma relação distanciada com a música. Esta arquiteta e trompetista de formação foi encontrada pelo diretor Gustavo Galvão, que trazia uma proposta ousada: fazer não apenas um filme, mas criar uma banda real, com músicos que atuariam na trama.

Nasce então o percurso de Karen, uma personagem radical que se sente deslocada em Brasília, cidade incapaz de acolher o novo rock. Para sobreviver, ela efetua pequenos trabalhos em escritório, que não condizem com sua visão de mundo. Um dia, em busca de alternativas, Karen segue um amigo músico em Berlim, onde descobre uma realidade muito diferente de sua vida na capital. A viagem entre Brasil e Alemanha, entre o cinema e a música, constitui o foco do drama que entra em cartaz nos cinemas nesta quinta-feira, dia 5. O Papo de Cinema conversou com Gresta sobre o filme:

Foto: Renato Perotto

É curioso que o projeto tenha dado origem a um filme e uma banda. Como você integrou os dois?
Foi uma junção muito improvável de acontecimentos! Eu estava em Brasília, sem tocar trompete há anos. O Gustavo me ligou, contou a proposta do filme e me chamou para uma conversa. Ele me encontrou via UnB, através de um professor de Prática de Orquestra com quem toquei há dez anos. São poucas mulheres trompetistas em Brasília. Então ele buscou os outros integrantes da banda: o baterista, o guitarrista, o baixista… E começamos a ensaiar. Nessa época, já fizemos uma primeira leitura do roteiro, mas ele mudou bastante desde então. Eu nunca tinha tocado trompete com microfonação, pensando-o enquanto instrumento de pauta. Tinha tido experiência com o jazz, ou em fanfarras. Foi a primeira vez com efeitos, misturando com o rock. Na banda, cada pessoa vinha de um contexto totalmente diferente. Tivemos muitos conflitos entre os músicos, tentando nos entender, até atingir uma cola entre os membros.

Em que medida a atitude de sua personagem se difere da sua enquanto artista?
A Karen tem a música como único canal de escape. Ela atravessa um momento de crise, e precisa de algum meio para liberar essa tensão e poder viver normalmente. Para mim, a música era o contrário, algo dormente que eu queria acessar, mas através de outros meios, porque tinha certo medo de me ver como musicista. A Karen serviu para desbloquear isso em mim. Desde a gravação e os ensaios, tenho trabalhado muito mais com música e feito participações como trompetista. Além disso, tenho cantado com a banda. A Karen despertou a música como forma de expressão em mim, enquanto meio oficial. A questão da atuação também era tímida no meu caso, mas com o lançamento do filme, gostaria de encontrar outras oportunidades nesse sentido. Gostei muito da experiência no set de filmagem.

Foto: Maurício Chades

Como você enxerga a relação de amor e ódio de Karen com Brasília?
Eu a entendo! Brasília é uma cidade cujas narrativas são abstratas. Assim como a Karen, eu nunca morei no Plano Piloto, mas sempre morei um pouco mais perto do que ela, então talvez o meu ódio seja um pouco menor. Sempre tive a curiosidade de saber como seria a experiência de morar ali. Quando você desce do seu bloco, não encontra pessoas passando, nem comércios. Se por acaso vê alguém passeando com o cachorro, ela está a muitos metros de distância, nem dá para dizer bom dia. A gente fica num espaço de solidão e abstração: você não vê as ações acontecerem. Você também não consegue observar dentro das janelas das pessoas. Em Brasília, as geometrias são estanques. Para a Karen, esses vazios dão muita vontade de agir, de ocupar. A maior parte da população do DF está isolada em outras regiões administrativas, a 30km, 40km de distância. É inviável ir a Brasília, exceto para trabalhar. Você vai, se diverte, faz o que tiver que fazer e volta. É uma cidade bem excludente.

Neste sentido, a ida da personagem para Berlim funciona como fuga?
Sim. É uma fuga, mas também uma forma de retorno, porque toda fuga possui esses dois lados. O paralelo Brasília-Berlim já pipocava na minha cabeça. Sou arquiteta e urbanista, e professor me dizia que Brasília precisaria ter 30% a mais de densidade populacional para explodir de vivacidade. Isso foi anos antes de conhecer o Gustavo. Quanto a Berlim, apesar dos desafios do clima, podemos perceber pelo filme que os vazios são todos ocupados. Brasília ainda tem muita potência dormente.

Foto: André Carvalheira

Como vê os relacionamentos instáveis e fluidos da Karen com os homens e os amigos?
Acredito que a Karen, assim como eu e muitas mulheres, quer se relacionar com a música. Mas fomos ensinadas a nos relacionar com homens. Eu já tive muitos relacionamentos com musicistas e parti meu coração muitas vezes. Sei que o que me apaixonava no projeto foi essa relação com a música. A Karen vai buscando a música, e consegue estabelecer esta relação direta com a arte mais tarde em sua trajetória. Enquanto isso, ela tem esses parceiros necessários, e também os amigos com quem faz um som e cria um vínculo direto.

Existe um caráter de afronta política no filme. Como percebe a posição de marginalidade dos artistas no Brasil de 2019?
Esse é o nosso maior desafio. O buraco está ficando mais fundo. O problema da Karen pode parecer até pequeno perto do que estamos enfrentando hoje diante do conservadorismo radical que está crescendo. Ao mesmo tempo, a arte não precisa falar frases de resolução política para ser política. O próprio ato de se ocupar cidade, de se estar num lugar de escuta, onde o encontro com a diferença é possível, se torna um posicionamento político atual. A solidão da Karen nesses lugares, e a busca dela se tornam muito atuais. O lugar do artista em 2019 dialoga muito com este filme por isso: a dificuldade da cidade em receber a arte equivale à dificuldade dela em apresentar sua arte. A comunicação mudou muito: quando é que deixamos de dizer coisas importantes até chegar ao ponto em que debater temas sérios se tornou impossível, absurdo? Como retomar o diálogo? Nós, artistas, estávamos conversando sozinhos? A situação é complicada.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)