O empresário Bruno Beauchamps carrega o audiovisual quase no seu DNA. Bisneto de radialista, neto de apresentadora de televisão e de dirigente de canal, além de filho de um grande distribuidor/produtor francês que marcou época no cinema brasileiro (Marc Beauchamp), ele percorreu um longo caminho até se tornar o CEO de uma distribuidora de renome (Pagu Pictures) e encabeçar a Filme Filme, projeto arrojado de streaming nacional que foi lançado em março deste ano. Na iminência de apresentar a nova versão da plataforma que se apresenta como alternativa focada na experiência do assinante, com curadoria cuidadosa e um senso de responsabilidade grande diante dos clientes, ele recebeu (virtualmente, claro) a equipe do Papo de Cinema para falar um pouco sobre a sua trajetória e os desafios da nova Filme Filme, que será lançada ainda em agosto (fique ligado por aqui para informações sobre isso). De espírito empreendedor, Bruno sempre almejou a independência, é do tipo de empresário que não foge de um bom desafio e que estuda arduamente para estar pronto frente às oportunidades. Confira, então, este Papo de Cinema exclusivo com Bruno Beauchamps, CEO da Filme Filme.
Teu pai, o Marc Beauchamp, foi um grande produtor/distribuidor. Imagino que ele tenha sido essencial para a sua relação com o cinema…
Viemos de uma família com história no audiovisual. Minha bisavó materna era radialista. Aliás, ela tem uma histórica louca. Na Segunda Guerra Mundial, meu bisavô foi preso, colocado num campo de concentração na Polônia. Ambos não eram judeus, mas ele foi levado para lá por ser prisioneiro de guerra. Ela escreveu uma carta forjando que a mulher daquele homem tinha morrido e deixado cinco filhos órfãos na França, atravessou a Europa inteira e conseguiu tirar ele da cadeia com essa carta falsificada. Para você ver a força dessa mulher. Minha avó foi a principal âncora do jornalismo francês de sua geração e meu avô foi presidente da France Television por muitos anos. Ele foi o cara que vendeu as primeiras máquinas para o seu João Saad a fim dele criar a Rede Bandeirantes.
E como seu pai veio para no Brasil?
Quando ele tinha 18 anos, mais ou menos, estabeleceu uma coprodução entre France Television e Rede Bandeirantes, veio para o Brasil fazer um documentário lindo sobre a Serra Pelada, que depois teve imagens utilizadas por várias produções. Não falava uma palavra de português na época. Aliás, um dos câmeras dele foi o Gustavo Hadba, hoje consagrado como dos nossos grandes diretores de fotografia. Meu pai conheceu a minha mãe e por aqui acabou ficando. Mais tarde, depois de trabalhar muito tempo em sets de filmagem como técnico, se associou a uma empresa francesa para começar o que viria a se tornar a distribuidora Lumière, cujo intuito era distribuir filmes franceses no Brasil. Depois, a empresa, que foi por muitos anos líder de mercado entre as independentes, fez uma parceria com a Miramax, passando a lançar por aqui todos os filmes da norte-americana.
E seu pai te incentivava a se apaixonar também pelo cinema?
Depois que ele e minha mãe se separaram, voltei com ela para São Paulo enquanto ele permaneceu no Rio. O tempo que passávamos juntos era, de alguma maneira, mediado pelo cinema. Ele me levou para os principais festivais do mundo. Desde moleque frequento Veneza, Cannes, Tribeca, Sundance, etc. Além disso, me levava para os sets de filmagem. Na adolescência, comecei a frequentar sozinho, chegando a apontar alguns títulos que me interessavam e que ele compraria depois. Assim, meu pai formou meu olhar. Ele foi um cara bárbaro, teve uma carreira incrível, foi um sujeito visionário.
E nesse processo, você acabou metendo a mão na massa, ou seja, trabalhando em sets de filmagem também?
Quando eu tinha de 15 para 16 anos, meu pai coproduziu em parceria com a Vídeo Filmes Madame Satã (2002) e Cidade de Deus (2001). Os dois foram filmados na mesma época, no Rio de Janeiro. Nas férias escolares, em junho, fui estagiário em Madame Satã, ficando uma semana em cada departamento. Foi meu trabalho inicial em longa, o primeiro do Lázaro Ramos e o primeiro do Karim Aïnouz. E, olha que curioso, hoje distribuo alguns filmes do Karim. Fui para Cannes com meu pai e os elencos dos dois filmes. Uma festa. Depois, acabei indo morar em Paris e estagiando numa distribuidora de lá. Foi um aprendizado enorme. Ali entendi que gostava do lado do business, da comercialização e da distribuição. Quando voltei ao Brasil, depois de passar por outras experiências, me encantei com o movimento do crownfunding que surgia no mundo como novidade. E esse encantamento me levou a criar a minha plataforma, a Sibite. Fomos uma das primeiras a existir no Brasil e ela me ensinou sobre várias questões.
E quando o cinema começou a te chamar de volta?
No Sibite a gente trabalhava muito com projetos de cinema e isso sempre me agradou. Num determinado ponto do negócio, lá pela metade de 2015, resolvi vender minha parte da empresa e encontrar novos ares. E, desde lá, pensava numa plataforma de streaming para cinema. Mas, a vida dá umas guinadas, então acabei diretor de planejamento de uma agência de publicidade em São Paulo. Fiquei dez meses. Aquilo não era o que eu queria. Todavia, convenci o dono da agência a ser meu investidor numa distribuidora de cinema. Para encurtar a história, começamos com uma espécie de balão de ensaio, trabalhando no lançamento de O Caseiro (2016). Acabamos fazendo toda a campanha e se deixassem eu teria até programado as salas (risos). Meu investidor gostou dos resultados e aí decidimos entrar de cabeça no mercado. Na época, a empresa se chamava Boca Filmes, tinha apenas uma salinha e dois assistentes. Mas aí, contingências pessoais fizeram com que meu sócio pulasse fora do barco. Foi um momento bem difícil.
E como nasceu a Pagu?
O Júlio Santi, diretor de O Caseiro, tinha gostado tanto do meu trabalho que decidiu me apresentar ao dono da produtora à qual ele estava criando. Acabei convencendo-o de ser meu novo investidor, com a sociedade de mais duas pessoas, uma designada por ele, outra por mim. Recebi a informação de que o Heitor Dhalia e os demais sócios da Paranoid Filmes estavam pensando em abrir uma distribuidora. Conversamos com eles e propusemos a formação de uma empresa que acabou sendo a Pagu Pictures. Lançamos o nosso primeiro filme no fim de 2017, o Gabriel e a Montanha. Ao longo desse período distribuindo, identificamos que precisávamos começar a lançar também filmes estrangeiros para equilibrar as contas depois de uma caminhada muito bonita somente estreando longas brasileiros.
E o embrião da Filme Filme?
No fim de 2018, o negócio cinema estava apresentado quedas por causa do streaming, do preço dos ingressos, enfim, de muitas coisas. E eu nunca tinha tirado da cabeça a ideia de lançar um serviço de streaming, que surgiu lá em 2016. Na época, meus sócios adoravam a ideia, mas emperravam na ideia de que era preciso um investimento enorme para entrar nesse mercado. No meio de 2019, houve uma reconfiguração societária na Pagu Pictures e começamos a enfrentar vários problemas mercadológicos. Com aquilo do streaming em mente, resolvi me reciclar, fiz cursos bem importantes, viajei e tive contato com conhecimentos que mexeram demais comigo. E aí a ideia amadureceu e acabei arregaçando as mangas. Desenhei numa folha de papel o que queria com uma plataforma desse segmento, algo diferente, com curadoria forte e que o espectador conseguisse escolher melhor o que fosse assistir. Fui atrás de fornecedores, design, software, atrás de filmes, enfim, até que no início de 2020 estávamos prontos para começar a operação. Lançamos a plataforma oficialmente no dia 05 de março, uma semana antes de estourar o surto do coronavírus. Já são cinco meses de muito aprendizado, com base de usuários e operações crescentes.
E a troca no modelo de negócio da Filme Filme? Antes o usuário pagava por título, agora ele será assinante mensalista e terá acesso a todo o catálogo. O que motivou essa mudança?
Quando a plataforma ganhou notoriedade, comecei a conversar com outros players e tive a clareza de que era preciso investir no SVOD, modelo mais interessante. Fiz uma imersão grande, estudei como as plataformas de SVOD tinham nascido, qual era o desenho da curva de evolução delas. Meu estudo de caso foi muito pautado entre Netflix e MUBI. A Filme Filme está num meio termo entre ambas, pois temos um conceito forte de curadoria aliado à ideia de virtualização do multiplex. Cada vez somos mais um cinema digital. Na nova Filme Filme existem salas com perfis bem distintos, onde vai ser fácil cada um encontrar a sua tribo. Queremos que todas as tribos se conectem dentro de uma mesma comunidade, algo que é mais do que uma mera plataforma. As salas serão: Documentários, Festivais, Júri Popular e Curtas-metragens. A ideia é oferecer um cardápio diversificado, sempre com uma curadoria forte.
Como CEO de uma plataforma de streaming, o que você mais aprendeu nesses cinco meses?
A primeira coisa, que diz respeito a empreender no Brasil, é a necessidade de ser resiliente e crer naquilo que você está fazendo. Se não acreditássemos no nosso diferencial, inclusive diante da enorme concorrência, certamente teríamos desistido. Tem lugar para todo mundo, mas desde que você apresente diferenciais. Muitos dos filmes que disponibilizamos estão em outras plataformas. Porém, aprendemos a ouvir o nosso usuário, algo que é muito importante, pois ele se trata do nosso maior ativo. O ponto inicial da cultura da Filme Filme é: nosso cliente é espetacular e está no foco das nossas decisões. Aprendemos demais com os feedback, tomando atitudes de partir deles. Nossa meta é dar atenção, melhor do que ninguém, ao espectador. Claro que aprendemos sobre tecnologia, lançamentos, criação de expectativa, etc. Contudo, frente a tanta concorrência, aprendemos que se não ouvirmos nosso cliente, não nos adaptarmos de acordo com certas demandas, a gente não chega a lugar nenhum.
E um dos possíveis grandes diferenciais dos streamings é conteúdo próprio. Você pensa em investir nisso?
Com certeza pensamos nisso. A curto prazo, a ideia é investir em lançamentos exclusivos, filmes que chegam diretamente no streaming. Tem muita produção sem espaço na sala de cinema, especialmente os documentários. Então me parece um caminho natural lançar diretamente em streaming certos títulos. E a gente quer muito fazer produções próprias. Provavelmente começaremos com documentários, filmes mais baratos e rápidos de serem feitos, que atingem um público de nicho.
“Se não acreditássemos no nosso diferencial, inclusive diante da enorme concorrência, certamente teríamos desistido”
A ideia da Filme Filme é, a partir dessa mudança, também criar um espaço comercial para o curta-metragem?
Sem dúvida, até porque pagamos pelos curtas-metragens que serão exibidos. A ideia é dar visibilidade aos jovens talentos, colocando-os em pé de igualdade com realizadores consagrados. O curta nunca teve um mercado comercial sólido no Brasil. Esse tipo de filme é geralmente exibido apenas em festivais, depois lançado de graça no YouTube. A ideia é criar um mercado comercial para o curta. Queremos iluminar uma nova geração, mesclando essa produção com curtas assinados por grandes nomes, indicando os exemplares para a nossa base de assinantes. Recebemos mais de 400 curtas quando abrimos a janela de inscrição. É muito instigante dialogar com esses realizadores. Queremos estimular que o assinante assista a um curta antes do filme que elas escolheram. Adoro essa linguagem.
Sem contar que, do ponto de vista do negócio, essa janela para os curtas também vai propiciar que vocês possam garimpar talentos para as produções próprias …
Claro, totalmente. Esse é um dos focos. Poder entregar projetos a novos realizadores, bancando isso. Não há dúvida de que isso vai acontecer. O curta será muito importante para a base sólida da criação da comunidade Filme Filme. Queremos fazer várias ações fora do ambiente digital: mostra de curtas, mostra de filmes asiáticos, mostras de outros países, enfim, juntar os players para conversar e criar coisas novas.
Você acha que é imprescindível rever os modelos legais, inclusive quanto ao fomento estatal, para considerar o streaming a primeira janela do filme, vide essa falta de espaço na sala?
Estamos nesse debate, botando pressão na Ancine, cujo primeiro resultado foi considerar o drive-in como a primeira janela. Se o Brasil não tem salas suficientes para abrigar essa produção, se a Ancine não resolve esse problema do parque exibidor, não é possível bloquear lançamentos, paralisar projetos. Estamos num momento sem cinemas abertos há quatro meses. E aí, vamos parar de exibir? Não me parece fazer sentido. Acho que vai haver uma mudança significativa nesse ramo de streaming.
Se você tivesse de convencer o espectador, em poucas palavras, a se juntar à nova Filme Filme, quais argumentos utilizaria?
Assinar a nova Filme Filme é importante para você fazer parte de uma comunidade de cinema, na qual sua presença será respeitada e muito valorizada. Lá você vai achar filmes incríveis e talvez aprender com eles. Você vai escolher rapidamente e, garanto, ter uma experiência excelente. Lá, você participará de uma trajetória nova sobre assistir a filmes em streaming. Para nós é essencial caminhar junto com nosso usuário, aprender com ele, e poder criar sempre uma experiência prazerosa. Queremos que todos sejam felizes na Filme Filme.
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