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Em 2019, o diretor Nicolas Pariser apresentou no Festival de Cannes o filme Alice e o Prefeito, que propõe um encontro inesperado entre política e filosofia. No centro da trama estão Paul Théraneau (Fabrice Luchini), prefeito de Lyon, cansado do trabalho e “sem ideias”, em suas próprias palavras. Ele contrata uma jovem pesquisadora em filosofia, Alice (Anaïs Demoustier), encarregada de trazer uma nova perspectiva à sua gestão. Aos poucos, a amizade crescente entre os dois incomoda as alas conversadoras do partido, mas fornece uma percepção diferente da esquerda aos personagens.

O drama teve ótima recepção em seu país, vencendo o prêmio Label Europa Cinéma na Quinzena dos Realizadores, o César de melhor atriz e os prêmios Lumière de melhor atriz, ator e roteiro. Agora, Alice e o Prefeito chega aos cinemas brasileiros pela Imovision. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com Pariser a respeito de política, filosofia e o poder do star system francês:

 

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O diretor Nicolas Pariser. Foto: Bizibi

 

O mundo da política, o mundo das ideias

Alice e o Prefeito investiga a distância entre a teoria e a prática no que diz respeito à política. Em que medida os conceitos dos intelectuais podem melhorar a vida dos mais pobres e reduzir a desigualdade do país? O cineasta explica que esta ideia veio de um de seus livros preferidos, O Homem sem Qualidades (1943), de Robert Musil: “Voltei a ler o livro, que retrata o início do século XX e a ascensão do nazismo. Esta obra retrata a ideia de uma política brutal, que se impõe através de relações de força. Hoje, existe uma ideia crescente de que a política deve ser feita de modo impositivo, baseada no modelo de Donald Trump. A vitória de Trump coroou esta forma de pensamento em várias partes do mundo. Por isso, queria imaginar qual espaço o pensamento ainda teria dentro de uma instituição política”.

 

Por dentro da esquerda francesa

Mas por que estabelecer este debate sobre Rosseau, Orwell e outros filósofos ao interior do Partido Socialista, na França? A mesma discussão poderia ocorrer na direita? Pariser ri desta possibilidade. “Não consigo imaginar Nicolas Sarkozy debatendo filosofia, dizendo ‘Não consigo mais pensar’, como faz o personagem de Luchini. Acredito que ainda existe mais espaço para o debate de ideias dentro da esquerda. Desde a eleição de Macron, percebo uma discussão maior à direita também, mas sinceramente, esta não é uma discussão que me interessa muito. Não queria dedicar anos fazendo um filme sobre alguém como Sarkozy discutindo com Éric Zemmour [intelectual xenofóbico de extrema-direita]!”, brincou.

 

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A política sem espetáculo

Os principais retratos sobre a prática política no cinema se concentram em grandes escândalos de corrupção, abuso sexual ou tráfico de poder. No entanto, Alice e o Prefeito foge à política-espetáculo, retratando o dia a dia de reuniões, assinaturas de documentos e inauguração de obras. “De fato, eu já fui crítico de cinema, e percebia a mesma coisa”, confessa o diretor. “Até por isso eu queria mostrar a prática diária da política institucional, que não é cheia de reviravoltas como se imagina. Eu me dediquei à agenda de um prefeito, mas acredito que teria sido igual com um ministro ou um senador. Acho mais interessantes as conversas, a dinâmica entre os corredores. Me baseei muito na série The West Wing (1999 -2006), que traz uma dinâmica parecida com aquela que eu buscava para o filme”.

 

Algum político em particular?

Por ser filmado dentro da Prefeitura de Lyon, surge o questionamento sobre a vontade do cineasta em retratar alguma personalidade particular da política francesa. “Eu me inspirei em Bertrand Delanoë, e no dia a dia da prefeitura de Paris”, confessa Pariser, em referência ao antigo prefeito parisiense. “Mas esta referência servia apenas para mim”, precisa. “Para os atores, preferi que se concentrassem apenas no texto. Eu propus a Fabrice Luchini e Anaïs Demoustier assistirem às reuniões da prefeitura de Lyon, mas ambos preferiram ficar de fora, se concentrando apenas no roteiro, e construindo sua visão da política a partir disso”.

 

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Um mergulho na filosofia?

Embora a trama cite diversos pensadores e filósofos clássicos, Pariser confessa que não constitui um profundo conhecedor na área. “Eu sentava nos cafés com alguns livros, lia trechos, separava partes que me interessavam. Estou longe de ser um filósofo, mas Alice também não é uma especialista, apenas uma pesquisadora, estudiosa que está aprofundando seus conhecimentos. Por isso, não sentia que precisava ir mais fundo do que isso”. Mas os atores teriam lido estas obras, para discutirem a respeito com propriedade? “Não, de modo algum”, confessa o autor. “Eles ficaram apenas no roteiro. Não seria necessário entenderem tudo sobre Rousseau para interpretarem esses personagens. Curiosamente, Luchini é conhecido por ler bastante, mas duvido que Rousseau seja um autor que lhe interessaria. Ele certamente preferiria ler algum intelectual de direita! Até por isso, foi divertido entregar a Luchini o papel de um prefeito de esquerda”.

 

O star system francês

O cineasta compreendeu quando dissemos que, no Brasil, um filme sobre filosofia e política encontraria dificuldade para ser financiado, e depois lançado em salas. Ele confessa que seu projeto foi viabilizado graças à presença do ator principal: “O filme só foi possível por causa do Luchini. Não sei como funciona no Brasil, mas na França ainda existe um star system muito forte. Se você consegue alguns atores específicos para o seu filme, tem a certeza de conseguir produzi-lo. Luchini aceitou desde o início, por isso conseguimos o dinheiro com relativa facilidade. Se tivesse sido outro ator, talvez o filme nunca existisse”. Chegando nas salas francesas, Alice e o Prefeito obteve ótimo resultado de bilheteria, ultrapassando 550 mil  espectadores. Novamente, o cineasta credita o sucesso ao seu ator principal: “As pessoas gostaram bastante do filme, mas tenho certeza de que Luchini foi um atrativo fundamental. Ele tem uma plateia cativa, disposta a ver qualquer projeto estrelado por ele”.

 

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Respostas à direita e à esquerda

Alice e o Prefeito suscitou respostas equivalentes tanto à direita quanto à esquerda? Como os dois polos da política francesa se viram representados em tela, desde a primeira exibição na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes? “Curiosamente, a resposta foi igualmente boa à direita e à esquerda, incluindo na extrema-esquerda. Fizemos uma sessão no Eliseu, e outra num encontro de prefeitos. Houve um fenômeno interessante: mesmo os políticos de ideologias diferentes se enxergavam naquela rotina dentro da prefeitura. Eles quase nunca se veem retratados em tela desta maneira, então gostaram de ver que alguém tinha retratado a profissão”. Segundo Pariser, apenas algumas vozes à direita criticaram o filme: “Mas são as mesmas pessoas que sempre dizem que este tipo de filme não deve ser financiado, não merece dinheiro público por ser chato demais, por ter apenas pessoas conversando. Esse tipo de reclamação existe desde sempre, mas foi minoritária”, conclui.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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