Gil Baroni não é nenhum novato. Mas possui uma jovialidade tão contagiante, que é quase impossível permanecer indiferente ao seu lado. Depois de passar por uma mostra paralela na Berlinale, seu mais recente longa, Alice Júnior, teve a primeira exibição no Brasil no Festival de Vitória. Foi uma daquelas experiências únicas, que só quem viveu sabe. O público riu, se emocionou, e no final, aplaudiu de pé a saga da menina transexual que, ao se mudar com o pai da capital para uma cidade do interior, tem que lidar com o preconceito e a ignorância local, ao mesmo tempo em que faz novas amizades e descobre o primeiro amor. Baroni, diretor de longas como Cantoras do Rádio: O Filme (2009) e O Amor de Catarina (2016), revela que Alice Júnior talvez tenha sido seu projeto mais feliz – e os motivos foram muitos. Depois, passou pela Mostra de São Paulo, pelo Festival do Rio, e foi no Festival de Brasília – de onde saiu com quatro candangos, entre eles o de Melhor Atriz, para Anne Celestino – que o cineasta sentou para conversar conosco, revelando mais detalhes sobre o filme que agora já está disponível nas plataformas de streaming e VoD. Confira!
Como surgiu a ideia do Alice Júnior?
O filme começa com um argumento criado pelo Luiz Bertazzo. É um amigo meu, de Curitiba, que é ator e dramaturgo. Começou escrevendo curtas, e esse é o segundo longa dele. Chegou até mim com essa ideia, a história do primeiro beijo de uma garota trans. A partir dessa conversa, percebi que era algo que merecia ser desenvolvido. Tinha que ganhar vida e ir pra tela. Inicialmente, pensamos no formato de telefilme. Mas depois nos demos conta que tinha potencial para conquistar outras janelas. Então, o roteiro foi trabalhado até chegarmos no formato que se apresenta hoje.
Alice Júnior sabe se comunicar com o público, que responde com entusiasmo. Isso foi uma surpresa para vocês?
A ideia, desde os primeiros momentos, era contar uma história que dialogasse com os adolescentes. Com todo tipo de público, aliás. O desafio era encontrar a linguagem certa. Afinal, tínhamos também limitações orçamentárias com as quais lidar. A gente queria que fosse mesmo um ‘vlogão’, com a protagonista a todo instante trazendo as questões e conflitos dela para a audiência. De certa forma, está quebrando a quarta parede. E convidando o espectador a fazer parte dessas dúvidas dela. Isso surgiu quando começamos a decupar a história. Afinal, já começa com ela se apresentando, e você viu como acaba, né? Sem dar muitos spoilers (risos), no final tá questionando quem a assiste: “e você, quem é?”. É um arco, com vários fragmentos narrativos, que incorporam o celular, o meme, e vão corroborando esse discurso. Então, sim, era uma preocupação nossa falar com os jovens, e de um modo com o qual pudessem se conectar.
Vamos falar sobre o elenco. Como chegaram ao nome da Anne Celestino para viver a protagonista?
A gente partiu em busca de uma adolescente trans. Desde a nossa primeira conversa, sabíamos que não poderia ser uma atriz cis nesse papel. Isso era inegociável. Se não fosse assim, não faríamos o filme. É uma reivindicação da comunidade trans que esses personagens, muitas vezes escritos por pessoas cis, pelo menos tenham intérpretes trans. Por tudo isso, estávamos conscientes de que, para a Alice ser verossímil, tinha que ser interpretada por uma mulher trans. A Anne chegou até nós, vinda de Recife, por intermédio da mãe, que havia visto o anúncio em um grupo de rede social. Foi curioso, pois foi uma das primeiras que conhecemos, e preenchia o perfil que estávamos procurando. Meio que amor à primeira vista: “é você”, pensamos. Tanto que, ao todo entrevistamos umas 5 ou 6 meninas, apenas. Não havia motivo para olhar outras, pois havíamos encontrado a nossa Alice.
Nossa, que coragem decidir logo numa das primeiras candidatas…
Pois é, foi um ato de coragem mesmo. Sei que muitos diretores abrem castings para mil, dois mil atores. Tipo, achamos entre 5 mil candidatas! Mas com a Anne não assim. Foi ela que trouxe essa vida para a personagem, ajudando inclusive na consultoria do roteiro, lapidando questões para que a história não fosse para ela, mas com ela. É uma sutileza, mas faz diferença. Queríamos as experiências, as opiniões, sua visão de mundo. Os pré-conceitos, as violências que por ventura teria sofrido, tudo nos interessava. E também o acolhimento. Com essas informações, o Bertazzo chegou à versão final do roteiro.
A maior parte do elenco é formada por estreantes, certo?
Os demais atores e atrizes são todos de Curitiba. Alguns consagrados, como a Katia Horn, que faz a mãe do Lino. O Emmanuel Rosset, que interpreta o pai, é um não ator. Ele é realmente um francês que mora no Brasil, um grande amigo nosso. A ideia de chamá-lo foi minha. A Surya Amitrano, que faz a melhor amiga da escola, foi um achado, é muito talentosa. O Matheus Moura é um menino que tá começando agora, fez vários trabalhos no cinema e tem um talento natural. Ele faz o Bruno, o rapaz que a Alice gosta. O Igor Augustho, o Lino que comentei antes, é de teatro jovem Todo mundo estava afinado. Demos sorte de encontrar pessoas e amigos que se propuseram a viver essa experiência com a gente.
Como foi a divisão dos papeis? Tiveram que fazer muitos ensaios?
O Bertazzo também fez a preparação do elenco. Além de escrever, de estar envolto com a narrativa e com a história, é também um cara ativista, muito ligado a essas questões. Ter o privilégio de trabalhar em uma obra escrita por um cara com esse peso e essa postura, e ao mesmo tempo trazê-lo para preparar o elenco que iria viver na ficção a história que ele escreveu, foi inacreditável. O resultado tem camadas que vão se sobrepondo e abraçando a todos, que assim conseguiram entender melhor os sentimentos envolvidos.
Você considera Alice Júnior um ponto de virada na tua carreira?
Havia dirigido outros longas antes. O Amor de Catarina (2016), por exemplo, era protagonizado pela Kéfera. Mas ele e o Alice Júnior são bem distintos, com orçamentos e propostas diferentes. Com certeza o Alice teve uma resposta melhor, sem dúvida. Ele tem algo que valorizo muito, a força dessa história. Ainda mais nesse momento em que estamos vivendo. E também por ter tido um elenco que soube ocupar esses espaços.
Quando vocês começaram a produção, o Brasil era muito diferente desse de agora?
Começamos a trabalhar nesse projeto em 2016, e filmamos em 2017. Era um Brasil diferente, mas já estava começando a desenhar isso que estamos tendo que lidar agora. Estávamos no pós-golpe, em pleno Fora Temer! O desenho político apontava para o que acabou acontecendo, essa ascensão da extrema direita.
Com tudo isso, o próprio peso do filme se tornou maior.
Quando essa extrema direita perniciosa ascende ao poder, com discursos de exclusão e de preconceito que são vomitados o tempo todo, racismo, machismo, todas as fobias possíveis, você se depara com isso de uma forma muito explícita. E daí surge um filme que está falando sobre questões do corpo, com uma garota trans como protagonista, adolescente, uma fase tão bonita do ser humano. É quando está querendo encontrar sua libertação, descobrir quem você é e o que deseja. E tudo isso embalado por um filme que mostra esse corpo, nordestino, que vem para o sul, um lugar que tem uma geografia e um pensamento predominantemente de direita. Ou seja, é claro que esse corpo irá incomodar. Então, o que podemos fazer a respeito?
Por isso que a questão do primeiro beijo é tão importante?
O beijo é uma troca física que você compartilha com quem tem afinidade. Estamos falando do corpo amadurecendo, adquirindo sua liberdade de espaço. Você é criado para fazer as coisas dessa ou daquela maneira, de acordo com o olhar dos seus pais. Mas chega um momento que quer entender o mundo por você mesmo. O beijo representa um pouco essa jornada, essa ruptura.
O filme parece uma fábula. Você não acha que poderia ser mais incisivo caso o discurso tivesse um toque mais realista?
A proposta era mesmo ser fabular. Não só a linguagem, mas a maneira como se coloca na tela. E, além disso, acho o filme bastante realista. O fato de ter esse tom mais leve não o tira da realidade. O modo como as coisas são não está atrelado a como as vemos ou como intervimos na imagem. Por isso, não penso que deixe de ser real. Se você coloca um filtro em uma foto publicada numa rede social, isso já é uma intervenção. Não é menos real do que aquela sem o filtro. Apenas adquiriu outra camada. Obviamente, não quero restabelecer o que é ser realista ou não, mas o filme, o tempo todo, está trabalhando com elementos reais e possíveis. Quando essas intervenções gráficas aparecem para corroborar, não deixa de ser menos real do que o gif que você usa no stories do instagram, por exemplo.
No entanto, estamos no país que mais mata homossexuais no mundo. Alice Júnior é quase um conto de fadas, com final feliz e tudo. Não levar em conta a triste realidade brasileira aumenta ou diminui a força do filme?
Justamente por vivermos um momento tão delicado, é que nos perguntamos: “onde está a luz no fim desse túnel?”. Qual o tamanho dele, será que vamos chegar até o final? Estamos numa situação delicada, tentando recuperar essa noção de espaço e de esperança. Queremos vencer essa intolerância, esse obscurantismo. Para isso, precisamos nos informar, estar antenado com o que os outros pensam. E ligado também no que está sendo dito. Essas agressões não estão mais por baixo do pano, agora são explícitas. Eles se assumiram. De posse dessas informações, parece que o túnel ficou ainda mais comprido. Por isso que a gente propõe um final esperançoso, musical! E a esperança também é uma ferramenta de resistência e de contestação. Esperar e acreditar que vamos vencer isso, que dias melhores virão. Acho isso muito positivo. Precisamos ter esses lapsos de alegria, pois é o que vai nos dar energia para continuarmos resistindo, persistindo e insistindo. E modificando essa estrutura que insiste em nos tornar invisíveis.
Houve alguma dificuldade, durante a produção, por ter uma personagem trans como protagonista?
Acredito que não. Nada do que seria diferente do que estamos acostumados. Depois, na hora de licenciar as músicas, quando conseguimos uma verba extra, foi o contrário. Sentimos até um carinho por parte das gravadoras, que entenderam a nossa proposta e acabaram fazendo, dentro dos seus parâmetros comerciais, preços competitivas e possíveis para nós. Foi uma alegria e uma surpresa muito grande descobrir essa resposta positiva por parte da galera que cedeu para nós a trilha sonora. Foi muito legal.
Alice Júnior foi premiado em vários festivais antes de chegar ao grande público.
Estreamos no Festival de Vitória. Foi muito legal, pois conseguimos levar o máximo possível de gente da equipe para aquela sessão. Ficamos surpresos com o calor da audiência, a recepção foi incrível. Depois passou na Mostra de São Paulo, e uma das exibições por lá contou com o grupo Mães Pela Diversidade e com muitas adolescentes trans, que se sentiram representadas pela Anne. Foi emocionante. Era possível perceber uma reação de acolhimento. O Mix Brasil, um festival de gênero, também nos recebeu de braços apertos. Ganhamos três prêmios, entre eles o de Melhor Intérprete, para a Anne Celestino, e Melhor Filme para o Público. Também nos deixou muito felizes uma menção do júri que mencionava essa relação com a audiência com a história.
Imagino que a passagem pelo Festival de Brasília também tenha sido bastante especial.
Esse foi outro espaço, pois tem uma tradição de discursos políticos muito fortes. Um lugar da ancestralidade do cinema brasileiro. Artistas importantes para a nossa história e definidores do nosso pensamento cinematográfico já passaram por lá. E estivemos nesse espaço com o Alice Júnior, um filme que evoca questões tão bonitas, dono também de camadas políticas, mas diluídas em diversas nuances. O fato dessa personagem existir já é uma ação política, principalmente por causa das estatísticas vergonhosas que enfrentamos. Estamos num país que violenta, que assassina os corpos trans. As pessoas aplaudiram em pé após a exibição. E ganhar quatro candangos? Foi surreal.
Como você tem percebido todas as reações ao filme?
As pessoas querem entender esse filme, mas sempre de um jeito muito carinhoso. Foi assim que a gente fez, e é como queremos que seja recebido. Entendemos que tem suas limitações, mas ficamos felizes porque também perceberam seu potencial. É como qualquer outro corpo, com méritos, mas também defeitos, e bonito justamente por causa dessa combinação. E que bom que a gente possa olhar para um filme nacional e buscar nessas virtudes o caminho para entender o que não compreendemos. Essa é a beleza do Alice Júnior.
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