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Atualmente no Brasil o discurso oficial – leia-se, o sustentado pelo presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores fieis – está alinhado com a liberação do porte de armas como forma supostamente eficiente de coibir o crime. Isso, claro, ignorando os estudos que atribuem o aumento da mortandade ou de ferimentos justamente à presença mais ostensivas de armamento no cotidiano das populações. América Armada (2018) chega nesta semana ao VoD observando o problema do ponto de vista continental. Os cineastas Alice Lanari e Pedro Asbeg estreitam seus focos em três ativistas opostos às violências cotidianas, inclusive as promovidas pelo Estado ou existentes exatamente por conta da negligência de quem deveria zelar pela segurança da população. Em virtude do lançamento, conversamos remotamente com a dupla para compreender um pouco melhor as dinâmicas de trabalho, as intenções e uma possível frustração com a demora para chegar ao circuito comercial, isso depois do filme ter encerrado a edição 2018 do Festival de Brasília. Você confere este Papo de Cinema exclusivo com Alice Lanari e Pedro Asbeg logo a seguir.

 

Para começo de conversa, como vocês chegaram a esses três personagens principais?
Alice:
Fizemos um trabalho de desenvolvimento bem aprofundado, que durou cerca de dois anos. Era importante entender qual cama tínhamos de montar para entender o recorte. Depois de viagens, conversas e pesquisas de mesa, definimos os perfis dos personagens que queríamos encontrar. Buscamos parceiros em cada um dos países, que atuaram como pesquisadores locais. Eles eram militantes ou pesquisadores de cinema, mas que tinham essa pegada. Essas pessoas tiveram dois meses para levantar nomes e possibilidades. Aí viajamos, eu, Pedro e Pablo Baião, que é nosso diretor de fotografia, já com câmera para esses lugares. Na Colômbia, por exemplo, conhecemos cinco pessoas que poderiam estar mais ou menos dentro do perfil definido. No México também conhecemos algumas histórias e possibilidades, mas rapidamente entendemos que esse caminho do Beto era muito interessante para o filme. E, curiosamente, no Rio foi o mais difícil para a gente chegar. Nosso desejo de fazer o filme parte da observação do crescimento das milícias no Rio de Janeiro. Quando decidimos começar, eu morava no México e estávamos vendo o aumento dos chamados grupos de autodefesa. Nos interessava entender se eram coisas da mesma natureza.

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Então as milícias foram o estopim para vocês decidirem fazer o filme?
Alice:
Nossa primeira etapa de pesquisa e busca de personagens foi nesse universo das milícias. Procuramos primeiro pessoas que fossem vítimas da milícia. Naturalmente, não conseguimos ninguém que topasse se manifestar. Especialmente por conta da forma do filme, dessa observação participativa. Tentamos algumas pessoas que estavam, de certa forma, se contraponto a esses grupos, mas foi igualmente complicado. Nessa época, inclusive, uma das nossas possibilidades era a Marielle Franco, que trabalhava no gabinete do Marcelo Freixo, mas ainda não era vereadora. Dentro do gabinete, ela fazia o acompanhamento dos processos de auto de resistência, e muitos deles eram relacionados à milícia. Tivemos uma conversa maravilhosa, na qual ela se colocou à nossa inteira disposição, mas não como personagem, sobretudo porque circulava nesses meios. Quem poderia imaginar que tudo isso aconteceria? O Raull chegou cerca de dois meses antes de filmarmos. Tínhamos outra personagem carioca, que era uma juíza super aguerrida. Mas, ela acabou desistindo por acreditar que era muito perigoso. Bateu desespero, mas o Rafael Soares, repórter do jornal O Globo e da revista Época, entrou como pesquisador e levantou alguns nomes e um deles era o Raull. Conversamos com ele e ficou nítido que ele seria uma grande figura.

 

Tendo em vista que o filme de vocês acompanha processos não integralmente controláveis, qual a distância que existe entre o que pretendiam e o resultado?
Pedro:
Decidimos falar deste tema em particular: a violência armada na América Latina. Entendemos que tínhamos muita coisa para um filme apenas. Num longa-metragem feito em três países, sem entrevistas com especialistas, nem gráficos ou material de arquivo. Foram várias escolhas que definiram o resultado. Então, sabíamos que muita coisa poderia mudar entre o início do processo de pesquisa e o final. Mas, engraçado, pois apesar de todos os imprevistos que tivemos, para o bem e para o mal, e das coisas muito legais que não poderíamos imaginar previamente, a sensação que tenho é que nosso olhar inicial, o de afirmar que o problema da violência armada na América Latina é continental, não localizado, isso se manteve. Quero acreditar que esse ponto central do filme segue vivo no resultado.

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Como funcionou a dinâmica de trabalho de vocês? Houve uma divisão cartesiana de tarefas ou todas as decisões criativas/práticas eram tomadas sempre em conjunto?
Alice:
Tem algo que, vamos dizer, é a base da nossa codireção: o fato de termos desenvolvido o filme por um bom tempo. Nos debruçamos no projeto por quase três anos antes de ligar a câmera. Credito muito a esse processo o fato de não termos precisado fazer uma divisão de tarefas estrita e conseguir cooperar mutuamente. Reescrevemos o projeto milhares de vezes, participamos de laboratórios juntos. Nossa parceria vai de escrever, passando por avaliar, montar, dar pitacos no que o outro trouxe. E a filmagem talvez tenha sido a época mais difícil da parceria. Por mais que todos os elementos de preparação tenham sido bons, as coisas se complicam justamente por termos um filme de imprevistos, que exige tomadas de decisão muito rápidas. Mesmo diante de momentos difíceis, conseguimos fazer de uma forma que não previa cessões. Acho que a gente se deu bem (risos). Tanto que temos outros projetos juntos.
Pedro: Concordo 100% com a Alice. Nosso trabalho conjunto foi um processo muito mais calmo e agradável, embora isso obviamente não ter sido o tempo todo. Me lembro de uma vez no México, a Alice achava importante conversar com alguém e eu não. Nos dividimos ali, coisa raríssima durante o filme. Foi nesse instante que eu e o Pablo Baião percebemos que naquela cidade havia várias cruzes. Aí decidimos fazer alguns planos de cobertura que acabaram entrando na montagem. Isso mostra bem um pouco do nosso processo. Mesmo nos instantes de desacordo conseguíamos tirar algo de produtivo. Isso foi legal e um aprendizado enorme.

 

O filme de vocês faz constantemente um elogio às pessoas que tem uma atividade revolucionária. E a câmera demonstra solidariedade com elas pela proximidade em instantes tensos. Isso era uma premissa da abordagem?
Pedro:
Total, não tenha dúvida. Por várias razões. Para que tivéssemos a confiança dos personagens, isso era essencial. Estávamos com eles na hora boa, mas também nas difíceis. Não queríamos que pensassem que estávamos presentes apenas em circunstâncias sem o risco que eles correm cotidianamente. A partir desse momento, lá atrás, ainda na pesquisa, quando buscamos essas pessoas, tínhamos a percepção de que corríamos algum risco. Quando optamos por três ameaçados de morte, claro que esse risco aumentou bastante. E o tipo do nosso filme não previa um distanciamento. Essa solidariedade ajudou a estreitar os laços, para que a confiança dos três protagonistas aumentasse. Fomos ao México e à Colômbia um ano antes, conversamos com eles, e quando voltamos com a proposta concreta do documentário, acho que isso também ajudou. Pela atuação destacada dos três, devem conversar com várias pessoas que têm ideias de filmes, mas que não as concretizam. O risco era iminente, sabíamos disso, mas contávamos com nossos anjos da guarda e os protocolos que adotamos para as filmagens.   

 

O filme teve sua première no Festival de Brasília de 2018. Depois de três anos, será lançado num contexto de pandemia, diretamente em VoD. Como vocês percebem esse percurso repleto de percalços?
Alice:
Estávamos fazendo a conta agora, são sete anos de processo. Estreamos no Festival de Brasília em 2018, na última edição com aquele formato bacana, então para a gente foi uma honra encerrar Brasília. A sessão foi lindíssima, muito acalorada, assim como o debate posterior. Exibimos num festival mexicano super importante ainda em 2018. E em 2019, fomos a eventos muito legais, como o de Havana, o Pachamama, que é um acontecimento de fronteira, exibimos na Etiópia, França, Bolívia e Argentina. Enfim, fomos para vários países. Tivemos a oportunidade de acompanhar o filme em boa parte desses acontecimentos. Íamos fazer o lançamento em 2019, mas estávamos esperando uma complementação de verba por parte da Ancine. Filmamos com exatamente 50% do orçamento. Tivemos todos os sinais oficiais de que receberíamos a verba. Com essa complementação, pagaríamos custos de finalização e nos remuneraríamos. Ficamos esperando isso acontecer e no fim do ano demos um basta e resolvemos fazer na garra. Foi quando chegou a Muda, nossa parceira que se trata de uma rede solidária de outras economias que apoia projetos, entre eles os culturais. Eles nos disseram que se interessavam pela distribuição do impacto social do nosso filme. Conseguimos programar a estreia para abril de 2020 no Rio de Janeiro, em São Paulo e Brasília. Aí veio a pandemia em março e tivemos de repensar tudo. Lançamos então num drive-in no final de 2020, como medida para liberar o filme a outras plataformas, atendendo a uma diretriz da Ancine. Nosso caminho agora é, primeiro, VoD, depois Globonews, Canal Brasil ainda não fechou a data, mas deve ser no primeiro semestre. Depois começamos a distribuição de impacto, com exibições online seguidas de debate.

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Principalmente pensando nas conversas pós-sessão, uma pena não ter disponível a estrutura da sala de cinema, não é?
Pedro:
Acho que a maior parte dos documentários é feita para gerar debates, para que saiamos de uma sessão podendo destrinchar melhor o assunto. Filmamos no início de 2017. O filme estava pronto no fim daquele ano. Nossa meta era o É Tudo Verdade, mas não rolou. Aí também não rolou o Festival do Rio. Mas, ficamos super felizes com a seleção para Brasília. A perda dos potenciais debates presenciais e a frustração pela demora, isso realmente deu em alguns momentos um desânimo grande. Por um lado, há um cansaço desse mundo das conversas online, mas, por outro lado, descobrimos essa possibilidade. Atualmente conseguimos participar de muito mais debates, exatamente por conta das vantagens do online. Também estou em paz com a forma do filme nascer. E estamos lançando o filme num momento em que o seu debate está muito quente.         

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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