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Desde a composição do atual governo, e sobretudo desde setembro de 2019, não se passa um dia sem que uma nova crise seja deflagrada na relação entre o cinema brasileiro e o governo federal. A Ancine estampa as manchetes pela análise de prestação de contas atrasada, a paralisação no repasse de verbas, a ameaça de extinção da meia-entrada, os conflitos envolvendo a Condecine e a Cinemateca Brasileira, as acusações de censura… O que acontece, afinal, com a Agência Nacional do Audiovisual? Como chegamos a esta crise, e de que maneira a postura de Jair Bolsonaro produz ou intensifica estes conflitos?

Em busca de respostas, o Papo de Cinema conversou com uma das maiores especialistas no assunto, Ana Paula Sousa. Formada em jornalismo na Casper Líbero, começou a carreira como repórter policial. Tornou-se repórter de cultura da Carta Capital em 2000, quando passou a investigar as políticas culturais, às vésperas da criação da Ancine. Passou a escrever críticas de cinema, inclusive na Folha de São Paulo, antes de fazer um mestrado em Londres sobre a Ancinav (projeto na gestão Lula de ampliação da Ancine para a televisão), e um doutorado na Unicamp sobre a reconstrução da política de cinema brasileira pós-Embrafilme.

 

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Ana Paula Sousa

 

Podemos dizer que a Ancine nasceu como uma agência independente do governo? De que maneira a situação mudou na atual gestão?
A Ancine nasceu para reestruturar a relação do cinema brasileiro com o Estado depois do fim da Embrafilme. Existia a Secretaria do Audiovisual, mas o setor buscava algo mais efetivo para efetuar uma aproximação. Ela foi pensada como agência porque aquele era o momento das agências reguladoras dentro do governo federal, que sucedeu à fase de privatizações da Telebrás, Eletrobrás etc. É engraçado falar em independência: sempre houve a ideia de uma autonomia em relação ao governo, mas ao mesmo tempo, ela nasce de uma ligação ao governo. O próprio formato de agência foi uma determinação do governo Fernando Henrique Cardoso. A Ancine sempre esteve muito próxima dos governos, desde a sua criação. Ela nasce a partir da relação próxima de um grupo de cineastas com Fernando Henrique Cardoso, convencendo-o que seria bom ter uma agência.
O conceito de autarquia deveria implicar numa independência do governo, mas o que a História nos mostrou é que a agência nunca foi totalmente independente. Um governo democrático e sério não deve interferir na agência, mas pelo fato de a Ancine ser subordinada a um ministério, ela tem ligação com o governo federal. O primeiro diretor-presidente da Ancine, Gustavo Dahl, foi uma indicação do governo FHC. Quando o Lula é eleito, existe uma disputa feroz pela presidência da agência. O governo do PT também queria determinar o seu presidente da Ancine. Era um governo democrático, que esperou o momento certo de fazer isso, mas eu me lembro perfeitamente que foi uma guerra na época. Houve uma disputa entre a Secretaria do Audiovisual e a Ancine, como lembra a pesquisa do Marcelo Ikeda.
Em teoria, o que acontece hoje não está ocorrendo pela primeira vez. A diferença é o tipo de governo que temos agora, que não tem uma política clara para a cultura. O governo Lula queria determinar o presidente da Ancine para fazer uma política de cinema, porém a independência total nunca existiu. Quando Temer assume, coloca-se na diretoria o Sérgio Sá Leitão, ministro do Temer. Não dá para dizer que Bolsonaro fez o seu diretor-presidente, porque Alex Braga não foi escolhido: trata-se do único membro que sobrou ali em setembro, quando os outros saíram. O atual diretor-presidente da Ancine está na agência desde a criação. Ele assume a presidência no vácuo, mas era procurador da agência quando Manoel Rangel era presidente.

 

“Um governo democrático e sério não deve interferir na agência”

 

Como se estabelece o formato de quatro pessoas na diretoria? Em que medida a ausência de uma ou mais pessoas inviabiliza as atividades da Ancine?
Uma agência que depende de diretoria colegiada para funcionar não pode operar sem diretores. Historicamente, a agência teve muita dificuldade em obter uma diretoria completa. Sempre tem uma vaga para ser ocupada, alvo de disputas intensas. A última delas, inclusive, é motivo de uma ação judicial por calúnia, injúria e difamação, na época da saída do Manoel Rangel e entrada do Christian de Castro. Mesmo antes, havia grandes disputas que dificultavam completar a diretoria. No entanto, nunca aconteceu uma situação como aquela do ano passado. Um diretor saiu um janeiro por decisão pessoal (Mariana Ribas), outro foi tirado da diretoria por questões na justiça (Christian de Castro), e outra saiu porque o mandato se encerrou (Débora Ivanov). Sobrou o Alex Braga como único diretor. Se a gente tivesse um governo com alguma preocupação pela Cultura, e com algum comprometimento em ver a agência funcionando bem, essas vagas teriam sido preenchidas conforme foram desocupadas.
Quando se sabe que o mandato de Débora Ivanov vence em setembro, já se articula a pessoa para substitui-la, mas isso não aconteceu. Ficamos com apenas um diretor entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020, e assim a agência não pode funcionar. Agora temos um quadro de diretores-substitutos. Um deles foi uma escolha do Bolsonaro, Edilásio Barra, enquanto dois são funcionários de carreira da agência: Vinícius Clay, que chegou a trabalhar com Gustavo Dahl está na agência desde todas as outras gestões, e Luana Rufino, que teve cargos importantes na gestão de Débora Ivanov, além deste procurador da agência. Então, entre os quatro cargos, apenas um deles corresponde a uma indicação do governo. Desde que esse colegiado se formou, a agência voltou a operar, tomando medidas que nem sempre agradam às pessoas. De alguma forma, ela tem trazido à tona mais problemas do que se imaginava que a agência teria.

 

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Alex Braga, presidente interino da Ancine

 

A Ancine pode controlar o conteúdo produzido pelo cinema brasileiro? Ela pode destinar fomento apenas às temáticas que lhe convenham?
Constitucionalmente, não. Se a Ancine faz uma recusa baseada em tema, ela está praticando um ato inconstitucional. No entanto, ela pode criar linhas de investimento que favoreçam determinados tipos de projeto. Da mesma maneira que tivemos linhas que incentivavam políticas afirmativas, a gente pode ter linhas que estimulam ou deixam de estimular certas temáticas. Sabemos que algumas produções se tornaram possíveis no Brasil devido a estas políticas, como a regionalização. Para haver maior número de produções de determinada região, é preciso criar uma política para isso acontecer. Por exemplo, existiu o PRODAV das TVs públicas para enfatizar temas menos corriqueiros na televisão, como famílias não convencionais. Isso era um estímulo. O papel da política pública é estimular algumas coisas, enquanto ela pode escolher não estimular outras.
No que diz respeito ao controle temático, o governo Bolsonaro, quando descobriu a existência da Ancine no início da gestão, e percebeu que havia filmes ali, manifestou esse desejo de controle. Eles gostariam que não houvesse determinados tipos de filmes no Brasil. A minha percepção é que, com o passar do tempo, perceberam que isso não era possível dentro da constituição, e que causaria muita resistência. Acredito que tenha havido um recuo. Até onde eu saiba, durante a gestão do ministro Osmar Terra na Secretaria da Cultura, houve de fato manifestações diretas relativas a conteúdo. De um tempo para cá, o governo parece ter entendido que isso não é possível, ou seria possível a um preço muito alto. Então esta censura tradicional não ocorre. Mas a instituição possui uma série de ferramentas à mão, como instrumentos orçamentários, de análise e de cobrança. Agora, ainda temos o agravante da Covid-19, quando vários projetos precisarão ser redimensionados. Existe uma versão circulando de que o dinheiro para os projetos não é liberado por motivos de censura. Na minha visão, este não é o único fator.

 

“É ótimo que exista produção brasileira nas plataformas,
mas elas não constituem propriedade intelectual brasileira”.

 

Quais problemas a Ancine carrega das gestões anteriores?
É difícil negar que havia problemas de gestão na Ancine. É complicado negar que, em 2018, foi colocado na rua um edital de R$ 1,2 bilhão, sem haver disponibilidade financeira de recursos. Havia disponibilidade orçamentária, mas não financeira: o dinheiro não existia de fato. A agência tinha um problema absurdo de prestação de contas. Agora descobrimos que os projetos do Fundo Setorial do Audiovisual não foram analisados a contento: as análises de prestações de contas não foram cumpridas. Estamos num momento muito difícil, e seria fácil demais jogar tudo na mesma conta – teríamos muito a perder com isso. Sei que muitos profissionais do setor discordam dessa avaliação, e estimam que não faz sentido apontar problemas na Ancine, porque o governo obviamente odeia o setor cultural. Esse governo vai acabar um dia, ou pelo menos, assim esperamos. Enquanto isso, a cultura vai continuar.
A crise constitucional da Ancine tem muito a ensinar ao setor cultural. Todos os problemas de gestão se tornam um prato cheio para um governo como este. Mesmo assim, é preciso dizer que o dinheiro não está sendo liberado para ninguém. O setor inteiro está sendo absurdamente prejudicado pela paralisação. Não se trata especificamente de um projeto protagonizado por personagens transexuais, por exemplo. São todos os projetos, o que inclui produtoras grandes. Todos enfrentam uma situação gravíssima. Percebemos o não-cumprimento de uma promessa do governo, por uma série de razões. Muitos problemas nos levaram a este momento atual. Todos os governos, inclusive os anteriores, assumiram compromissos que não estão sendo honrados agora. Corremos o risco de praticamente não termos produções brasileiras em 2021, teremos apenas a produção para plataformas. É ótimo que isso exista, mas o que produzimos para as plataformas não constitui propriedade intelectual brasileira. São coisas muito diferentes. Quando trabalhamos para o streaming, nos tornamos prestadores de serviços. Isso é bom, mas precisamos continuar produzindo dentro de nossos direitos patrimoniais.

 

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Os receios aumentam quando se descobre que não foi analisada a prestação de contas de filmes feitos até 20 anos atrás. Os produtores poderiam ser responsabilizados agora? Como a Ancine, em cenário de crise, seria capaz de acelerar as análises?
Isso é assustador. O método de amostragem foi negociado e pactuado, ou seja, ele não caiu do céu. Mas a agência tinha um compromisso de acompanhar o desenvolvimento dos projetos, para só então fazer a amostragem. Não havia condições de fazer esse acompanhamento. Em relação ao TCU, há uma interpretação clássica: quando o TCU é contra a gente, ele é péssimo; quando o TCU é a favor da gente, ele é ótimo. O TCU comete excessos, e tem inúmeros problemas nas cobranças, mas nem todas as cobranças eram indevidas. Converso com diversos gestores de diferentes épocas, e acabo tendo uma experiência curiosa. Não há gestor que não aponte problemas na Ancine, porém ele sempre aponta na gestão do outro. Ao final, é difícil encontrar uma versão única. Mesmo assim, é difícil dizer que todas essas cobranças são uma grande invenção.
Nós sabemos que temos problemas de gestão seríssimos no Brasil. A agência levou anos para ter o seu quadro de funcionários completo. A Ancine herdou um passivo de prestação de contas da Secretaria do Audiovisual, quando ela foi criada. Na minha tese, um dos diretores da Ancine, Augusto Sevá, relata um caminhão de processos chegando a uma agência que não tinha funcionários, mas tinha quatro diretores. A vontade de fazer as coisas andarem, a vontade de fazer a gente ter filmes e estas políticas saírem do lugar fez com que, mesmo com vários problemas e dificuldades, a agência fosse sendo tocada e crescesse em tamanho e importância. Literalmente, um caminhão de problemas chegou à agência. Gustavo Dahl deu uma entrevista para mim há 20 anos, e ele disse: “Aqui a gente tem que trocar a roda com o carro andando”. A Ancine não tinha sede quando foi aberta. Ela não tinha prédio. No atual governo, percebe-se a má vontade política de trocar o pneu com o carro andando, algo que todas as gestões anteriores fizeram, desde Gustavo Dahl.
Levaram dez anos até a Ancine ter um quadro de funcionários completo. Depois, com novas leis, há um volume de recursos enorme, porém sem capacidade para operacionalizar estes recursos. Com a saída de Manoel Rangel e entrada de Christian de Castro – houve Débora Ivanov também, mas por pouquíssimo tempo -, durante a gestão de Sérgio Sá Leitão no Ministério da Cultura, no governo Temer, o delicado equilíbrio se perde por completo. Quando este problema todo veio à tona, a gente já estava no governo Bolsonaro. Ao mesmo tempo, caiu uma bomba no colo de quem está na Ancine agora. Se você tem vontade política, você consegue passar os problemas adiante. Se não há vontade política, no entanto, você pode destruir um setor inteiro. Agora, uma parte do setor não quer mais a Ancine, e prefere que ela acabe. É uma visão política: este grupo acredita que, se for para continuar assim, seria melhor que acabasse. Gestores anteriores podem até vir a ser responsabilizados, mas os produtores não podem ser acusados pelas prestações de contas agora: eles já entregaram tudo o que precisavam entregar. A responsabilidade é da agência que não analisou as prestações de contas, mas todas foram entregues. Hoje estimula-se a ideia de que a Ancine era uma grande baderna, que se roubou dinheiro etc., mas não foi nada disso. Muitas ideias têm sido divulgadas nesse sentido. Sabemos que os filmes foram feitos, e temos uma produção relevante.

 

“Hoje estimula-se a ideia de que a Ancine era uma grande baderna,
que se roubou dinheiro etc., mas não foi nada disso”.

 

Agora, finalmente, o Comitê Gestor do FSA se reuniu. Que mudanças isso deve trazer?
Nesta quarta-feira, 12 de agosto, houve uma nova reunião do Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual, que tinha passado o primeiro semestre inteiro sem se reunir, e foi autorizada a contratação dos projetos dos editais lançados em 2018. Isso teve que passar pelo Comitê Gestor porque os editais foram lançados sem que houvesse recursos financeiros suficientes para honrá-los. Coube então ao Comitê permitir que se utilize recursos de 2019 e 2020 para pagar esses editais anteriores. Com isso, as contratações devem começar a sair. Não sabemos em que ritmo, mas vão começar. A Ancine divulgou os critérios de prioridade – um deles é que terão preferência os projetos com 80% do orçamento financiado.
É importante lembrarmos que existem hoje em curso 150 ações judiciais contra a Ancine que questionam, justamente, a demora na contratação dos projetos, algo que, obviamente, tem grandes implicações para as produtoras. A Justiça já concedeu 79 liminares para produtoras – só umas poucas foram depois suspensas. Mas essas liminares são para que os projetos tenham o processo de análise concluído, o que, por ora, não garante a assinatura do contrato. Pode ser que agora tenha início uma outra disputa pra se saber se quem procurou advogado vai conseguir o dinheiro antes ou não. Em resumo: agora sabemos que os editais serão honrados, o que não é pouco, mas isso não significa que a confusão acabou, claro.

 

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Bóris e Rufus, da Belli Studios. Esta foi uma das produtoras a acionar a justiça pela liberação de verbas, segundo o jornal O Globo.

 

Sobre a questão da Condecine Teles, como a briga sobre a contribuição tem afetado a produção cinematográfica?
As Teles fizeram um acordo, porque era de interesse delas entrar no serviço de TV por assinatura. A gente tinha um governo que defendia a produção nacional, o conteúdo brasileiro e o direito de propriedade, e elas tiveram que aceitar este acordo. Agora, mudou o jogo: temos um governo que não quer saber de produtores brasileiros, então estas empresas também estão mudando o tom. Elas já entraram na justiça contra o pagamento. Mesmo assim, neste momento a questão está pacificada, e a Condecine Teles precisa ser paga. A questão agora é outra: neste momento, o conteúdo da TV por assinatura vai para o streaming, onde não se inclui mais na lei da TV paga. Se o produto é exibido na Rede, ele não precisa mais pagar a Condecine.
Seria necessário, nesse momento, regulamentar o streaming. Mas não dá para imaginar, neste momento, uma nova regulamentação que favoreça o produtor nacional dentro deste governo, sobretudo em meio à pandemia. Por mais que isso possa transitar pelo Congresso, é algo muito difícil de acontecer. Isso é triste, porque um grande investimento teve resultado: basta ver a produção brasileira nas plataformas, neste momento em que os cinemas estão fechados. Ou seja, dá para ver o resultado palpável dessas políticas. Não dá para dizer que todo o investimento vai para o lixo, mas parte dele pode ir. As Teles estão nessa conta, mas não de forma favorável ao cinema brasileiro.

 

“A meia-entrada é uma conquista histórica, ela existe em todos os países da Europa”.

 

Na proposta de reabertura dos cinemas, tem voltado com força a ideia do fim da meia-entrada. O governo se mostrou favorável mais de uma vez à extinção. Como vê o papel deste benefício?
Eu ainda não li a Análise de Impacto Regulatório para falar com propriedade sobre essa discussão. Mas posso dizer que a meia-entrada é uma conquista histórica, ela existe em todos os países da Europa. Essa é uma briga clássica dos grandes exibidores, que não querem a meia-entrada. Não acompanhei essa discussão em 2020, em particular, mas o problema se arrasta há mais de 70 anos: os grupos contra a meia-entrada são os mesmos contrários à cota de tela, por exemplo. Para o estudante, a meia-entrada faz parte da formação da plateia, e se tornou um direito. Muitas pessoas só frequentam o cinema porque existe este benefício. Talvez exista meia-entrada em excesso, e algo possa ser feito para modificar isso.
Mas esta seria a mesma questão da Ancine: quando se percebe um problema na prestação de contas, porque a agência superestimou a sua capacidade de análise, precisamos pensar em como melhorar isso, ao invés de extinguir a agência. Acabar com a meia-entrada me parece improvável. É importante a gente saber que não existe uma única política audiovisual possível. No primeiro capítulo da minha tese eu fiz uma análise sobre os tipos de política audiovisuais presentes no mundo. O Brasil elegeu Bolsonaro, então nunca esperei que a política dos governos anteriores fosse mantida, até porque temos um ministro como Paulo Guedes em atividade. Por enquanto, não tivemos nenhuma discussão a respeito de política pública, infelizmente, porque não foi proposta nenhuma política da qual se possa sequer discordar. Temos um governo que troca o Secretário da Cultura a cada dois meses, uma paralisação e uma animosidade se instalando no setor. A discussão da meia-entrada se torna um reflexo disso: em meio a um momento de tantas fragilidades, acrescentam mais esta ameaça.

 

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Essa parece ser a continuidade de uma campanha difamatória contra as políticas públicas. O governo demonizou a Lei Rouanet baseado em informações falsas, para justificar sua extinção.
Isso provoca uma impressão terrível nas pessoas. É difícil não pensar no que aconteceu com a Embrafilme. Sempre repito uma frase do Cacá Diegues: ele dizia que o Collor não acabou com a Embrafilme, apenas enterrou o moribundo. Quando fui ler a respeito e analisar as conversas a respeito, percebo que a instituição já estava muito enfraquecida. A extinção da Embrafilme levou seis, sete anos. Houve troca de diretores, membros considerados pouco legítimos, problemas na justiça… Quando a Embrafilme foi extinta, ela já estava em condições de ser extinta. Em 2019, a Ancine não tinha condições de ser extinta. O cinema brasileiro brilhou com muita força nos festivais internacionais, a produção era numerosa e distinta. Não era possível acabar com a Ancine, e em 2020, ainda não acredito que seja possível. O meu medo seria nós entrarmos neste processo paulatino, semelhante ao da Embrafilme.
Quando vejo as disputas judiciais atualmente, em torno das análises complementares, a história da Embrafilme se repete. Você vai inviabilizando a agência, que deixa de servir aos propósitos dela. Assim, o próprio setor passa a tomar atitudes que inviabilizem a agência – entra-se numa espiral negativa. Quando a Embrafilme acabou, percebeu-se que ela já estava sendo acabada. É chocante, para mim, ver o que acontece hoje. Comecei a cobrir a questão das políticas públicas antes de a Ancine ser criada. Terminei a tese em 2018, e jamais poderia ter imaginado que chegaríamos a esse ponto. Vejo pessoas que defendem o fim da agência, mas não consigo concordar com elas. A Ancine tem uma história de luta muito grande. Apesar de todos os problemas, ela representa uma vitória imensa para o audiovisual brasileiro.

 

“Apesar de todos os problemas, a Ancine representa uma vitória imensa
para o audiovisual brasileiro”.

 

O mesmo vale para a Cinemateca Brasileira que, apesar de dificuldades de gestão ao longo de décadas, nunca tinha sofrido tamanha ameaça de fechamento.
Essa é uma grande insensatez, isso não faz o menor sentido. Mas a história da Cinemateca Brasileira também se assemelha àquela da Ancine, no sentido em que os problemas começaram antes. O drama da Cinemateca começa em 2013, quando a Marta Suplicy era ministra. Também houve uma campanha difamatória baseada num relatório da Advocacia Geral da União, que entende que a Associação de Amigos da Cinemateca não era usada para o fim para o qual foi criada. Este problema foi tratado de maneira violenta pelo ministério. Então entra o Sérgio Sá Leitão, que colocou a Cinemateca nas mãos da Acerp. A história do que aconteceu com a Cinemateca é muito triste.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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