Temas como homossexualidade e a realidade indígena não são estranhos às obras pregressas dos cineastas Sergio Andrade e Fabio Baldo. O primeiro escreveu, dirigiu e produziu o curta Um Rio Entre Nós (2009), que foi selecionado para a coletânea de filmes LGBT Over the Rainbow (2011). Já sua estreia no formato longa se deu com o drama A Floresta de Jonathas (2012), sobre uma família que vive em uma área rural da Amazônia. Foi durante este trabalho que Andrade convidou Baldo para atuarem juntos, e Fábio acabou assumindo a montagem de projeto. A parceria deu tão certo que, no longa seguinte, decidiram assinar juntos a direção. Assim nasceu Antes o Tempo não Acabava (2016), que tem como protagonista um índio em conflito com sua própria sexualidade. Selecionado para fazer sua première mundial na mostra Panorama do Festival de Berlim, passou nos meses seguintes por eventos de prestígio no Brasil – como o Festival de Brasília – e também no exterior – como o QueerLisboa, em Portugal, de onde saiu premiado como Melhor Filme e Melhor Ator. E agora, quase dois anos após aquela primeira sessão, finalmente chega às telas do circuito comercial. Aproveitando a ocasião, fomos conversar com os dois cineastas e saber um pouco mais sobre esse inquietante trabalho. Confira!
Antes o Tempo não Acabava estreou no Festival de Berlim de 2016, e somente agora, quase dois anos depois, está chegando às telas. Foi uma jornada, não?
Fábio Baldo :: Exato, quase dois anos desde a primeira exibição em Berlim. Porém, se pensarmos de forma mais abrangente, desde o início do projeto, temos algo em torno de uns cinco anos. Trocamos as primeiras ideias em 2012!
Sergio Andrade :: Mas as filmagens só ocorreram em 2014. O roteiro é que começou a ser feito dois anos antes.
Como surgiu esta história?
SA :: Sou o autor do roteiro. O Fábio, junto com o Pedro Henrique e o Felipe Bragança, colaborou com o texto. O Fábio, claro, teve uma participação maior. Acontece que ele foi o montador de A Floresta de Jonathas, o meu primeiro longa. Naquela época, ficou hospedado aqui em casa, em Manaus. E enquanto ele montava, comecei a escrever o roteiro de Antes o Tempo não Acabava. Foi quando começamos a trocar as primeiras ideias a respeito. Ele também teve, naquela ocasião, os primeiros contatos com o indígena urbano, com esse corte populacional que é bem expressivo aqui em Manaus. E com o Fábio por perto, a parceria surgiu de forma natural.
Falem um pouco sobre como se dá essa divisão de trabalho entre vocês.
FB :: É muito fluida. Não sabemos exatamente onde acaba o trabalho de um e começa o do outro. Estamos conversando o tempo todo. Lá no Floresta a divisão até era mais clara, mas dessa vez foi tudo junto, mesmo. Conforme a gente foi se conhecendo e descobrindo as afinidades cinematográficas de ambos, descobrimos que partilhávamos de muitas ideias parecidas, até pelos filmes anteriores que havíamos feito sozinhos. Como no Antes o Tempo não Acabava o Sérgio assina também a produção, no set ele acabou indo mais por esse lado, cuidando dessa logística de produtor, enquanto me ocupei mais com o lado artístico, digamos. A gente vai se completando. É um filme sobre choques culturais, e não só entre os personagens, mas também entre dois diretores: um vindo do interior de São Paulo e outro do Amazonas.
O que querem dizer com o título do filme, Antes o Tempo não Acabava? A que estão se referindo, exatamente?
SA :: O título surgiu enquanto ia escrevendo o roteiro. Tava muito entusiasmado com o que estava saindo. Sou muito fã de um livro de dois índios Desana, que são índios tucanos, do Alto Rio Negro, com contos indígenas, que se chama Antes o Mundo não Existia. Esse é o meu livro de cabeceira, minha Bíblia sobre assuntos indígenas. Foi uma homenagem a esse livro, portanto.
Mas em que sentido, exatamente?
SA :: Esses indígenas que agora habitam Manaus são migrantes. Eles vieram de aldeias do interior, das fronteiras da Amazônia. Quando vivem na floresta, não existe essa mesma noção de tempo que nós temos aqui. Não existe prazo, ou contagem do tempo. A coisa flui de uma outra forma. Mas, quando vêm para a cidade, começam a se submeter a esse tempo que acaba. E o filme fala disso a todo tempo, deste cara que está tentando se libertar dos ditames da cultura branca, ao mesmo tempo em que está inserido nela.
O filme começa com um ritual das luvas com as formigas de fogo. Qual o significado desta tradição?
SA :: São formigas tucandeiras. É o Ritual das Tucandeiras, como se chama. É uma formiga específica, que só existe na Amazônia. Esse ritual é da etnia sateré-mawé. É um ritual de passagem dos meninos. Voltado ao universo masculino da tribo. Não é para provar a masculinidade, mas, sim, a bravura, a coragem como guerreiro. Quando o menino tem 12, 13 anos, ele tem que passar por isso para ser um guerreiro e ter novas responsabilidades. Em última instância, é como o de qualquer outra sociedade. De maneiras diferentes, porém, os judeus possuem o bar mitzvah, por exemplo.
Você chegou a presenciar algum destes rituais?
SA :: Quando tinha mais ou menos a mesma idade destes garotos, com 13, 14 anos, presenciei. Fui até uma tribo, com a turma do colégio. Hoje em dia é algo quase turístico, para visitantes verem. Mas é real, existe mesmo.
FB :: Uma coisa que descobrimos há pouco é que o Anderson, o ator que faz o protagonista, casou na semana passada com uma menina desta mesma etnia, sateré-mawé. Ele, por sua vez, é ticuna. Então, para consagrar o casamento e ele poder fazer parte da comunidade dela, teve que passar pelo ritual das tucandeiras. Ele tava bem nervoso, mas correu tudo bem. Segundo ele, a picada dessa formiga é fortíssima, muito dolorida. Porém, além deste ser um ritual único para a fase adulta, questiona, também, a masculinidade. E o personagem, depois que passa por isso, o vemos inserido nesse contexto urbano. Ele trafega nesse campo, no qual você não entende direito. Às vezes parece um pouco andrógino, tem aquela cena dele passando batom em frente ao espelho, um gesto muito feminino. Não temos o costume de pensar na sexualidade indígena. Colocamos o índio em um pedestal, quase como se ele fosse intocável. É o índio hiper-real, aquele elaborado pelo homem branco.
Antes o Tempo não Acabava fala de dois temas – o indianismo e a homossexualidade – que volta e meia são abordados pelo cinema brasileiro, porém esta me parece ser a primeira vez que vejo os dois juntos.
FB :: Quando vieram para cá os escribas, os pesquisadores que primeiro vieram estudar esse lugar recém descoberto, nos idos de 1500, os registros deles, sobre essa nova cultura, já apontavam vários relatos de relações homoafetivas entre os índios, e com uma naturalidade impressionante. Então, isso não era um problema para etnias indígenas naquela época. O que aconteceu é que, durante o processo de colonização da comunidade indígena, o homem branco foi imbuindo essa visão no índio. Foi a sociedade branca, europeia e cristã que disse que a homossexualidade era um problema, que na constituição familiar indígena não se poderiam ter homossexuais. Estas questões volta e meia eclodem até hoje, como a bancada ruralista no Congresso, por exemplo. A sexualidade chegou a um ponto que os próprios indígenas, pelo processo de aculturamento, de evangelização das comunidades, acabaram colocando como um problema. Hoje nem todas as comunidades aceitam indígenas homossexuais. Há, inclusive, um plano do protagonista, após ele sair da fábrica, quando passa em frente ao salão de cabeleireiro, com um pastor pregando, no fundo. Você nem o vê, mas escuta.
Falando sobre o Anderson Tikuna, que interpreta o protagonista, ele já havia trabalhado com vocês em A Floresta de Jonathas (2012). Como foi a preparação dele para Antes o Tempo não Acabava?
SA :: Ele fez, sim, mas foi só uma pequena participação. Porém, por já o conhecer, quando comecei a escrever o roteiro de Antes o Tempo não Acabava, foi com ele em mente que desenhei esse personagem. Ele sempre me impressionou, a maneira dele ser, o olhar, a maneira como se comporta. Ele também é músico, tem uma verve artística muito interessante. Ele intui as coisas de modo muito profundo. Mesmo assim, a gente fez testes com vários atores indígenas, e com ele inclusive. No final, não teve outra: acabou sendo ele mesmo. Ele tem um lado meio frágil que combinava com o personagem. O Anderson foi talhado para viver o Anderson (risos). A trajetória do personagem, que é homônimo ao ator, tem muito a ver com a do próprio intérprete. Tirando as questões voltadas à sexualidade, pois o Anderson não é gay – ao menos até onde sabemos, porque nunca perguntamos isso a ele. Mas na questão da migração, de ter saído da aldeia, aquela experiência de viver na periferia de Manaus – o lugar onde filmamos é onde o Anderson mora de verdade (ou morava, porque agora ele casou). Ele deu muita informação para aquele personagem.
FB :: Pelo fato do Anderson não ser gay, discutimos muito como iríamos rodar as cenas de sexo, com o Begê Muniz, o outro ator. Por isso decidimos chamar a Rita Carelli para preparar o elenco. Ela é filha do Vincent Carelli, que é um dos grandes cineastas indianistas do país, então já era credencial suficiente. Junto com ela, pensamos a forma e a abordagem para tratar desse assunto, para não ser traumático esse processo de descobrir o personagem, um tipo que lida com essas questões e como seria a visão de mundo dele.
Como o Anderson reagiu a essas cenas?
FB :: A forma como preparamos o elenco para chegar até essa cena foi fundamental. Se não rolasse essa interação entre eles, se não houvesse afinidade, viraria uma encenação artificial. E eles compraram a ideia do personagem, o que nos deixou muito bem impressionados. Trabalhamos muito de perto, desde a construção do roteiro, as motivações do personagem, para nada ser gratuito. Quando fomos rodar, em dois takes já estava pronto.
Há cenas muito fortes no filme, e não só de sexo. Em algum momento vocês temeram não serem compreendidos pelo espectador?
FB :: Isso tem sido curioso. Nas muitas sessões com debates que temos participado, nos foram reveladas questões interessantes. É comum você reinterpretar e relativizar essa questão do infanticídio indígena. O que tem que ser dito é que essa é uma prática ainda comum em algumas etnias. Principalmente entre os ianomâmis mais isolados. São 13 comunidades que ainda a praticam, no total. A gente tem que pensar sempre pela questão cultural. Os porquês disso acontecer até hoje. Começou com tribos nômades que precisavam de indivíduos sadios, que conseguissem se integrar e não ameaçassem a sobrevivência da comunidade. É o que a gente tenta trazer ao filme nessa cena.
SA :: É curioso descobrir, também, que essa é uma prática de iniciativa feminina. Quando a criança nasce com algum problema, ou é indesejada, a mãe é que tem essa iniciativa. Como se fosse uma reflexão sobre o aborto, porém dentro desse universo da prática indígena. Desse jeito, acaba resultando em comunidades que não possuem integrantes indesejados. Não desestabiliza a harmonia daquela sociedade. Só que, no contexto urbano, existe uma série de escrúpulos que surgem na mentalidade indígena. É por isso que a mãe, no filme, não quer isso. Ela quer criar a criança, só que os líderes da comunidade precisam consumar aquilo, pois há uma desestabilização.
Qual o interesse de vocês em também trazer esse assunto para o filme?
SA :: E por que não ter esse interesse? Existem várias pesquisas que fazemos ao entrar em contato com o assunto do universo indígena que precisam ser refletidos e abordados. A gente não pode questionar, nem julgar, pois se trata de uma prática cultural. Mas é um assunto que está tão escondido, que pensamos que seria interessante falar dele, até para as pessoas entendam que a gente não está condenando nada, apenas mostrando, esclarecendo que existe.
FB :: Muita gente tem vindo nos questionar sobre essa cena específica. O engraçado, ao menos para nós, é que percebemos que, quando se fala dessa cena, se desloca ela do contexto geral do filme, colocando como se fosse algo autônomo. E realmente, se você a tira do filme, parece descabida, como se fosse uma reprodução preconceituosa da questão. Mas dentro da trama, há o questionamento do personagem, que é imbuído dessa postura de ser contra certas instâncias da tradição. Além disso, tem a mãe que está o tempo inteiro confrontando o líder da comunidade. Ela diz: “não, ela é minha filha, e não quero que isso aconteça”. O filme não joga isso de uma maneira banal, ou fria. Mas era preciso abordar este tema, pois é um assunto relevante, e grande parte do que chega até nós, principalmente no Sul e Sudeste, é essa visão preconceituosa que a mídia coloca, quase como uma vontade de vilanizar a questão do índio.
SA :: É um filme de ficção, e, embora tenha a sua responsabilidade, não temos a intenção de ser um compêndio etnográfico. O que pode parecer raso, na verdade abre uma profundidade muito grande, pois aborda o assunto, provoca a discussão. Só que é uma história de ficção, e não tem, na sua estrutura, a necessidade de explicar tudo. Não é um documentário.
Antes o Tempo não Acabava teve sua première mundial no Festival de Berlim, e passou por vários outros festivais no Brasil e no exterior. Como vocês avaliam essa jornada?
FB :: Em Berlim tivemos nosso primeiro contato com o público. Estávamos muito ansiosos. Ao total, foram sete exibições, e quase todas eram seguidas por conversas com o público. O Anderson e a Rita foram conosco, e o nível de debate que aconteceu lá foi bem diferente dos que aconteceram, depois, no Brasil. A visão europeia em relação a questão indígena ainda parte de um conceito de culpa. O que pega esse público são outras questões, que para nós passam batidas. Eles estão de olho na representação, no que está chegando até eles sobre essa cultura, como se vê o Amazonas no exterior. Nosso personagem é muito forte, é diferente do registro dos clichês que devem chegar por lá. A discussão, então, acabou sendo um pouco mais branda. O público adorou, a crítica foi muito receptiva. Teve gente que nos reconheceu nas ruas, vinham falar com a gente, impressionados com o filme.
SA :: A gente percebia pelos aplausos, que eram bem consistentes e longos. O Festival de Berlim tem esse toque de abordar assuntos mais de vanguarda, sempre foi muito aberto aos filmes de temática gay, por exemplo. Ter estreado lá foi bastante propício. Isso deu um carimbo muito bom para nós. Depois seguimos para festivais bem expressivos, como Toulouse, na França, ou o QueerLisboa, onde fomos premiados como Melhor Filme e Ator, para o Anderson. Lá em Lisboa também tivemos discussões incríveis. E o Festival de Brasília, no ano passado, tivemos um debate com umas antropólogas que tinham outra visão, bem diferente da nossa. Na ocasião criou-se uma polêmica em volta do filme, e isso acabou sendo interessante, pois é isso que também desejamos, essa provocação.
FB :: No nosso caso, esses dois anos nos ajudaram até a entender melhor o filme que havíamos feito. Foi possível refletir melhor sobre ele, e até nos preparar para defendê-lo – não que ele precise de defesa – quando fosse necessário. Foi possível discutir essas questões que o filme carrega, e neste sentido estamos bem mais preparados. E agora, para o lançamento, com pré-estreias, tem sido incrível.
(Entrevista feita na conexão Porto Alegre/São Paulo/Manaus em novembro de 2017)