Quando foi exibido na 43ª Mostra de Cinema de São Paulo, Aos Olhos de Ernesto (2019) se tornou uma das melhores surpresas daquela edição. Trata-se de um filme brasileiro divertido e carinhoso, muitíssimo bem dirigido por Ana Luíza Azevedo, mostrando o encontro entre dois países, duas gerações e duas visões de mundo. Não por acaso, o filme recebeu o prêmio da crítica em votação realizada com mais de 30 profissionais.
Na trama, Ernesto (Jorge Bolani) é um homem uruguaio que vive sozinho em seu apartamento, no sul do Brasil. Embora esteja perdendo a visão, recusa-se a receber a ajuda do filho (Júlio Andrade) e abrir mão de sua independência. Um dia, conhece Bia (Gabriela Poester), jovem livre e rebelde, sem uma casa para morar. Quando aceita ler cartas para Ernesto, a garota descobre o passado deste homem e desperta uma amizade entre ambos – para receio dos amigos e familiares, que veem na garota uma pessoa interesseira.
O Papo de Cinema conversou com Poester sobre o filme, disponível em plataformas digitais:
Como descreveria a relação entre Bia e Ernesto?
A relação entre a Bia e o Ernesto é extremamente afetuosa. O modo como Ernesto se relaciona com a Bia é totalmente diferente da maneira como os amigos da Bia se relacionam com ela, e a maneira como a Bia se relaciona com o Ernesto é totalmente diferente do modo como as pessoas ao redor dele se relacionam com ele. Essa diferença, na verdade, aproxima os dois. A Bia trata esse senhor como se fosse quase da mesma geração dela, com a liberdade de perguntar: “Com quantas pessoas você já transou?”. Isso é algo que ela perguntaria a uma amiga, por exemplo. Ao mesmo tempo, ambos têm necessidade de afeto, e precisam preencher este vazio. É uma relação de transformação e de aprendizado, como um pai e uma filha, ou ainda um avô e sua neta. Há um lugar que vai um pouco além da amizade. Existe um sentimento acolhedor, familiar.
O filme acena à possibilidade de Bia abusar financeiramente do homem perdendo a visão. Como enxerga esta questão?
Eu nunca julguei o comportamento dela. As coisas que a Bia faz, como roubar dinheiro dele, têm uma explicação, por mais erradas que sejam. Ela não tem onde morar, e fica na casa das pessoas quando é contratada para cuidar dos cachorros. A Bia tenta se aproveitar dele, mas não de maneira grave: ela rouba uns 20 reais, mas do ponto de vista ético, vejo isso como uma pequena infração que condiz com a rebeldia dela. Nunca fiquei surpresa que a Bia fizesse isso: ela troca serviços por um pouco de dinheiro e por almoço. Ela não tem o que comer! Por isso o Ernesto a compreende, e decide acolhê-la. Mesmo sabendo que ela se aproveita dele, ele aceita isso e a ensina. A Bia aprende com esses atos depois. Existindo o contraponto de ela entender estes atos e se arrepender, eu, Gabriela, não a julgo.
Nós não vemos muito da vida da Bia, seja com família ou namorados. Como construiu essa rotina distante das imagens?
A Bia tem um lugar misterioso, até porque o filme se passa literalmente “aos olhos do Ernesto”. Eu tinha pequenas pistas: o fato de ela cuidar dos cachorros, ou quando ela diz que a mãe cozinhava ovo durante poucos minutos. Existe a cena do slam na rua, e o trecho do namorado. Construímos a personagem, com a Ana Luíza Azevedo, a partir destes indícios. Ao mesmo tempo, não chegamos a desenvolver uma história super detalhada. Conversamos sobre aspectos dela que sequer chegam à história, como o fato de ela não ter nenhum lugar fixo para morar. A Bia fica na casa do namorado. Ela é muito sozinha, e imaginamos que a mãe já tivesse morrido, sem outros vínculos familiares. Ela está sozinha no mundo, e fica na casa de uma pessoa durante uma semana, e na casa de outro conhecido na semana seguinte. A vida inteira da Bia está dentro na mochila que ela carrega. Por isso, quando fala da mãe e do ovo com a gema mole, existe uma densidade ali, outra carga emocional. Assim, faz mais sentido a personagem se conectar de tal maneira com o Ernesto. Como ela é misteriosa, a construção acontece no espaço de jogo entre os dois personagens. Não queria psicologizar demais, criar um passado inteiro. A construção nasce deste jogo entre eles, ao longo da amizade entre os dois. Tanto a Bia quanto o Ernesto mudam muito do início para o final do filme, e essa transformação permite entender os personagens.
O jogo é muito centrado entre você e Jorge Bolani. Como criaram a intimidade necessária para a amizade entre os personagens?
O Bolani mora no Uruguai, e veio para o Brasil pouco tempo antes das filmagens, para participar dos ensaios. Acredito que ele tenha ficado uma semana em Porto Alegre. Eu já estava ensaiando com a Ana há um tempo. Quando ele chegou, houve um estranhamento, porque existia uma expectativa muito grande que essa relação desse certo. Nos primeiros dias de ensaio, teve um clima mais formal, com leitura de roteiro. Ele demonstrava um estilo bem diferente do meu. Até o jeito de conversar era estranho: o meu espanhol não estava aquecido na época, então a gente falava um portunhol bizarro. Ele não entendia bem a princípio, mas depois se acostumou. Em um dos últimos dias de ensaio, a Ana estava com a gente. Alguém a chamou para decidir algo em outra sala, e eu fiquei sozinha com Bolani pela primeira vez. Isso nunca tinha acontecido. A Ana disse: “Gabi, pega o Bolani e vai dar uma volta com ele pelo bairro. Leva ele para tomar um café, depois vocês voltam”. Essa saída já foi um laboratório para os personagens, porque ele tem outro passo para andar na rua, outro ritmo. Éramos só nós dois, sem um olhar de fora para acompanhar o que a gente estava conversando. Voltamos do passeio amigos, a gente já sabia tudo da vida um do outro. A gente dava risada, brincava com piadas internas. A Ana ficou surpresa! De repente, aconteceu um estalo, e viramos amigos de fato. Isso se manteve durante todo o set de filmagem, e nós conversamos um com o outro até hoje.
Aprendi muito com ele, sobre atuação mesmo, porque o Bolani é generoso. Ele se coloca num lugar de aprender comigo, de igual para igual. Mesmo sendo um grande ator, ele nunca expressou uma superioridade. Por isso, o primeiro estranhamento no filme entre Bia e Ernesto era pura atuação, porque nos bastidores, a gente já estava próximo. Tivemos que improvisar durante algumas cenas que nem entraram no filme. No escritório, eu falava com ele sobre signos: era um tema que pertencia à Bia e ao Ernesto, mas também era muito meu e do Jorge. Eu disse algo como “Meu signo no calendário maia é o macaco galáctico”. Ele respondia sobre o signo dele no horóscopo chinês. A conversa continuou, foi longe. Rimos muito juntos. É bem diferente quando você precisa criar o jogo com vários atores: ali no caso, eu precisava me conectar com apenas um. O meu foco inteiro estava nele. Sem a generosidade dele, não existiria o Ernesto, nem a Bia. Bolani é elegante, tem muito senso de humor. Ele dizia que eu parecia uma mariposa pulando ao redor dele, falando sem parar. A gente se provocava como bons amigos. No final, o filme me trouxe uma amizade com um dos maiores atores latino-americanos.
Durante a primeira exibição, na Mostra de São Paulo, se disse muito que Aos Olhos de Ernesto tinha cara de filme argentino. Como interpreta isso?
Talvez ele seja um cinema brasileiro menos conhecido, mas é um cinema brasileiro, sim. Ele fala sobre uma realidade que existe em Porto Alegre, entre as várias realidades possíveis. A mistura com o Uruguai e com a Argentina é uma das configurações existentes naquele universo. Eu entendo este tom, que também tem muitos diálogos em espanhol, e muito portunhol. Ao mesmo tempo, é cinema brasileiro, sem qualquer pretensão de parecer diferente. Ele fala de um Uruguai que está presente no nosso país, ressaltando as diferenças de tratamento e de costume entre os nossos países. Esse é um contraste bem interessante. Aos Olhos de Ernesto passou em outros países: ele estreou na Coreia do Sul, e depois foi para Cuba, Uruguai e Japão. Fiquei pensando como as pessoas o interpretariam, porque aquela realidade era bem específica do sul, algo que sequer abraçava toda a diversidade brasileira. Será que elas gostariam, entenderiam os diálogos em portunhol? Mas a reação foi surpreendentemente boa. As pessoas tinham muita curiosidade de compreender este espaço que também é o Brasil.
O filme chega ao público em formato streaming, enquanto as salas estão fechadas. Como enxerga o lançamento neste momento?
É claro que eu adoraria que o filme estreasse na tela grande, com toda a equipe presente, e depois sair para comemorar. Estava preparada para isso. De repente, essa nova realidade bagunçou nossas expectativas. Mas acho que o filme precisa ser visto pelo máximo de pessoas possível. Além disso, o cinema não é o único setor afetado pela paralisação: são todas as atividades, todas as pessoas. É preciso criar movimento: o filme precisa ser visto. Eu estou com saudade das salas de cinema, e o próprio filme discute a nostalgia do cinema de calçada, que já não é mais a nossa realidade em 2020. O Ernesto inclusive conta sobre a Cinemateca nas cartas, descrevendo as cadeiras que envelhecem junto deles, a sineta tocando, as cortinas se fechando. A arte vai se modificando com o tempo, inevitavelmente. O filme foi feito para estrear nos cinemas, é claro, mas quanto mais pessoas o virem, melhor.
Aos Olhos de Ernesto também constitui um filme político que reúne duas gerações de esquerda muito diferentes.
São dois personagens politizados, por mais que não fiquem enfatizando isso o tempo inteiro. O filme tem um roteiro muito sensível e poético, então ele nos coloca com calma nesse universo politizado e de esquerda. Gosto do fato que a própria politização é diferente entre as gerações. Por mais que as raízes pertençam à mesma esfera de ideias, as experiências são muito diferentes. O momento de Ernesto no slam representa algo que talvez, se fosse da geração dele, ele teria participado. Existe um choque quando Ernesto descobre um lugar ao qual não pertence, mas que consegue abraçar o discurso dele. O personagem se interessa por esses jovens. Gosto de pensar nas diferenças entre eles, embora ambos sejam progressistas. O Ernesto viu a ditadura, e a Bia não – ou talvez esteja começando a ver algo parecido com isso.
Existe uma política dos afetos no filme, algo que não deixa de ser bastante radical.
Eu vejo a Bia como uma feminista, mesmo que tenha a cena de violência com o namorado, quando ela apanha dele e depois chega com o olho roxo. Inclusive, o Ernesto diz que o namorado é um covarde. Existem contradições humanas: a Bia se considera uma feminista, mas tem contradições dentro disso. Já o Ernesto, por mais que seja um homem, consegue se colocar no lugar dela. O afeto é muito revolucionário neste lugar de solidão, especialmente nos tempos em que vivemos agora, com o isolamento social. Relacionar-se com alguém diferente, e ser capaz de olhar para essa pessoa pelo que ela é, sem as máscaras, é um gesto muito especial. Acredito que os dois personagens façam isso um com o outro: eles se veem como são de fato, eles se olham no olho.