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Um dos artistas mais ativos do cenário cultural brasileiro, Emilio de Mello é daqueles atores que está sempre pronto para o grito de ‘ação!’ do diretor. Entre cinema e televisão, ele acumula mais de três dezenas de créditos desde o início dos anos 1990. Em trinta anos de carreira, já foi de tudo um pouco, e trabalhou com nomes consagrados, como Cacá Diegues, Zelito Viana, Sergio Bianchi, Ugo Giorgetti e Gabriel Mascaro, entre tantos outros. Agora, aparece mais uma vez sob a batuta daquele que talvez seja o maior de todos os nossos cineastas ainda em atividade, Ruy Guerra. Sob o comando do veterano diretor, surge como Eurico, o protagonista de Aos Pedaços (2020), longa selecionado para a mostra competitiva nacional do 48o Festival de Cinema de Gramado, que chega ao fim neste sábado, 26 de setembro, após uma edição inédita: por causa das restrições provocadas pela pandemia do covid-19, as sessões foram pela televisão e por streaming. Para saber mais sobre esse seu mais recente trabalho, fomos conversar com o astro, num bate-papo franco e esclarecedor. Confira!

 

Emilio, como surgiu o convite para participar de Aos Pedaços?
O primeiro filme que fiz com o Ruy Guerra foi O Veneno da Madrugada (2005). Já faz um tempo, portanto. Quando ele me falou do filme novo, do Eurico, fiquei interessado de imediato. Queria muito fazer, seria uma honra. Com o maior prazer que aceitei a esse chamado dele, foi mais do que apenas um convite. Quando alguém como Ruy Guerra lhe chama, você larga tudo e vai atrás. Esse contato aconteceu no dia em que fui assistir à estreia do Quase Memória (2016), o longa anterior dele. Ficamos conversando, e sem nem ler o roteiro, já começamos a estudar como ajustar as agendas. Foi um ajeita daqui e de lá, e chegamos num acordo.

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Emilio de Mello foi acompanhar a exibição de Aos Pedaços no Festival de Roterdã, no início do ano

Qual a tua relação com o cinema de Ruy Guerra?
O Veneno da Madrugada foi muito marcante, inclusive, para conhecer o processo de trabalho do Ruy. É um diretor diferente de todos com os quais já trabalhei. Tem uma maneira de fazer cinema muito específica, e, ao mesmo tempo, que combina muito comigo. Impõe desafios, durante o processo, que a mim agrada muito. É um cara exigente, milimétrico nas marcações. Tem que fazer exatamente do jeito que ele está pensando. Ao mesmo tempo, tem um senso de humor. Até cheguei a brincar no set, quando vejo ele complicando demais alguma coisa, perguntava: “não quer deixar mais difícil?”. Daí ele respondia: “bom, já que tu falou, podemos mudar também isso e aquilo” (risos). Tem que ter muita precisão para ficar atento a essas marcas e ainda dar naturalidade. Adoro esse tipo de coisa. Fazer um trabalho que é extremamente técnico, mas que não parece. Já trabalhei de várias maneiras, mas dessa é a que mais me agrada. É bom trabalhar com um diretor exigente, pois te dá segurança. Você está numa queda sem rede de segurança no set, e essa exigência significa que ele está te colocando em um lugar com um mínimo de segurança. Exigindo um rigor e uma postura artística. E é também suave nessas cobranças. Tenho uma ótima relação com ele no set.

 

Ruy Guerra é um dos nossos grandes veteranos. O que acha que vai tirar dessa experiência para os teus próximos trabalhos?
Dessa vez, foi diferente no sentido da quantidade de trabalho. Fui pra Cataguazes, onde filmamos, e fiquei por lá cinco semanas direto, todos os dias estava no set. Existia uma experiência diária com o Ruy que foi diferente do nosso trabalho anterior. Mas a relação com ele mudou pouco. O Veneno da Madrugada tinha muitos atores, e eu era apenas mais um deles. Ou seja, tinha uma participação coadjuvante, menor. Esse, agora, não. Foi como um casulo, eu, a Simone Spoladore, a Christiana Ubach e o Julio Adrião. Ficamos lá, vivendo numa comunidadezinha ruyguerriana, durante esse tempo, tentando entrar na cabeça desse homem, um lugar que é tão deslumbrante.

 

O que você pensou ao ler o roteiro de Aos Pedaços pela primeira vez?
Demorou muito pra ele me dar o roteiro. Já estávamos negociando datas de filmagens e não tinha o roteiro em mãos ainda, para você ter uma ideia. Por esse ponto de vista, dá pra ver como é trabalhar com o Ruy: ou você aceita por ele, não importa o que vai ser, ou então cai fora. Já tinha aceitado sem ler o roteiro. O Ruy é esse cara maravilhoso, e quem trabalha com ele tem essa noção. Se um dia ele lhe chamar, vá e faça o filme, você vai ganhar muito com isso. Fui ler o roteiro pela primeira vez numa leitura na casa dele. Estava com uma peça em São Paulo, fui para o Rio para passar apenas dois dias, para ficar com a minha família, mas ele me chamou. Daí fui na casa dele e tivemos essa leitura. Foi quando tive conhecimento do Eurico. Mas, antes de filmar, nos reunimos uma semana antes só para trabalhar o roteiro. Foi um momento muito rico, sempre propondo, reescrevendo tudo. O texto passou por uma mudança grande nesse momento. Teve um trabalho de estudo e de aprimoramento junto com o elenco, que foi muito legal. Foi a nossa porta de entrada no filme.

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Christina Ubah, Simone Spoladore e Emilio de Mello em Aos Pedaços

Qual foi a tua reação ao tomar contato com o personagem do Eurico Cruz?
O Eurico é um personagem muito louco. É um mergulho nessa perturbação. Gosto disso. Meus personagens, a maioria deles, sempre que possível, claro, faço que tenham uma perturbação um pouco encoberta, que não é explícita. Geralmente sou convidado para interpretar personagens centrados, ponderados, que buscam o equilíbrio nas coisas. O Eurico é o oposto, é completamente desequilibrado. Na primeira cena já esta cambaleando por um corredor escuro. É essa a imagem que tenho dele, de alguém que está sem conseguir enxergar. É diferente dos outros, e por isso mesmo extremamente estimulante, entendo um pouco desse caminho. É gostoso, prefiro trabalhar com personagens perturbados e desamparados. Foi um ganho incrível. Paradoxalmente, parece que a gente sofre, mas você se diverte muito.

 

Eurico é casado com duas mulheres praticamente gêmeas e dialoga constantemente com o irmão morto. O que é real e o que é imaginário em Aos Pedaços?
Olha, diria que tudo é real, e também que tudo é totalmente imaginário. A gente não sabe direito o que é real e o que tá na cabeça dele. O que está realmente acontecendo? A sensação que tinha das cenas, sempre, é que ele estava numa situação estranha, independente do que estivesse acontecendo. É como se fosse um sonho, que ele acordasse, mas acabasse voltando a ele. Trabalhei como se tudo existisse de fato. Agora, a maneira como o filme foi montado, te leva a uma sensação que é esse cara é apenas um solitário, que fica falando com ele mesmo o tempo todo. Cabe ao espectador escolher o que ele acha que é real e o que é uma viagem lisérgica do Eurico.

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Bastidores das filmagens de Aos Pedaços, de Ruy Guerra (ao centro, sentado, com charuto na boca)

Você participou de projetos de grande alcance de público, como Cazuza: O Tempo Não Para (2004) e a recente Reality Z (2020). Qual a importância de alternar essas histórias com outras mais ousadas e autorais, como Aos Pedaços?
É fundamental, eu diria. Não sou um ator de uma linha só de trabalho. Adoro fazer várias coisas. Desde o projeto mais comercial, que você faz porque quer atingir um público maior, até o mais alternativo possível, por uma ambição artística. O Reality Z, por exemplo, fiz porque era uma série voltada ao público adolescente, um público que não tinha trabalhado ainda. E foi muito bacana. Uma ficção quase terror psicológico, muito bem feita, cheia de efeitos especiais. Foi divertido. Agora, sair desse set e depois ir direto para o Ruy, que é completamente autoral, sem nenhum apelo comercial nos revigora. Um filme em preto e branco, duro, seco, e ao mesmo tempo, de um nível artístico imenso. Isso tudo me alimenta, levo de um trabalho para outro. Vai me colocando em cheque e me obriga a saber trabalhar de várias maneiras.

 

Que tipo de personagem te estimula mais, aqueles que te permitem mergulhar fundo, ou outros dos quais você não sabe nada a respeito?
O Psi (2014-2019), série que protagonizei por quatro temporadas, me instigava a fazer parte. Me sentia autor daquele personagem, de tão à vontade que me deixava. No Reality Z, tinha coisa que não tinha a menor ideia como fazer. Dizia para o Claudio Torres, nosso diretor: “não sei fazer isso, como faz?”. E ele mandava eu me virar, tinha que aprender na marra. Estava disposto a ir atrás, portanto. Agora, quando chego pro Ruy e pergunto “que personagem é esse?”, a resposta dele era: “não sei, vamos descobrir”. É diferente, mas tem que ir atrás do mesmo jeito. O que mais me diverte nessa profissão são essas possibilidades de me tirar da minha zona de conforto e experimentar vários tipos de arte e de linguagem.

 

Aos Pedaços está na mostra competitiva do 48º Festival de Gramado. O que achou do novo formato do evento, online e pela televisão?
Começamos a rodar Aos Pedaços no dia seguinte à eleição presidencial de 2018. Já começamos com o Bolsonaro eleito, portanto. Já sabíamos que vinham tempos difíceis pela frente. Um cara que falava desde os tempos da campanha que ia desmontar o cultura, sem simpatia pelos artistas e pelo que nós fazemos, não se poderia esperar nada diferente mesmo. Aí veio a pandemia, que só piorou a situação. O que acho bacana, e o Festival de Gramado está mostrando isso, é que, por mais adversa que seja a situação, os artistas continuam falando, se expressando. Mesmo em um momento tão adverso, o festival seguiu pulsante. É algo que nos leva a uma reflexão.

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Emilio de Mello e Julio Adrião em Aos Pedaços

Qual a importância de passar por um evento como esse, ainda mais em um ano como o atual, em meio a tantas restrições, como a pandemia e o desmonte da cultura promovido pelo governo federal?
Agora, nesse momento de quarentena, assisti a muitas coisas, vi o filme do Caetano (Narciso em Férias, 2020), vi o filme paraguaio que passou após o nosso na programação de Gramado, tento me ligar a tudo que consigo. Falamos do nosso mundo, do momento que estamos passando, e isso vai tocando as pessoas. Isso tudo mostra o poder e a força da arte e da cultura, não só no Brasil, mas também no mundo. Quando chegar essa vacina, quando a pandemia deixar esse protagonismo, vamos estar todos loucos para comungar com uns os outros uma obra de arte, cinema, teatro, museu… Essa foi motivação para enfrentar tudo isso. A arte está viva, e os artistas também, vivos e fortes. Os mau governos, as pandemias, elas passam. E os artistas permanecem, e modificam o mundo.

(Entrevista feita por telefone em setembro de 2020)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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