O sobrenome já entrega: ela é filha de ninguém menos do que Arnaldo Jabor, um dos maiores cineastas do cinema brasileiro. Mas Carolina Jabor está trilhando um caminho muito próprio, mostrando-se estar além da sombra dos feitos paternos. Após começar na televisão, estreou no formato longa com o documentário O Mistério do Samba (2008), premiado como o melhor do gênero no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, o Oscar da produção nacional. O resultado, ainda que incrível, não lhe permitiu “deitar sobre berço esplêndido”, e seguiu na busca por mais experiências. Com isso, voltou para a telinha, até se sentir pronta para investir no universo ficcional com Boa Sorte (2014), filme que lhe rendeu uma indicação ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro na categoria de Melhor Direção, além de ter sido o melhor pelo júri popular no extinto Festival de Paulínia. A motivação seguiu em alta, e agora ela retorna com outra produção não menos elogiada: Aos Teus Olhos (2017), que está chegando, enfim, aos cinemas após ter sido premiado como Melhor Ator (Daniel de Oliveira), Ator Coadjuvante (Marco Ricca) e Roteiro, além do troféu do júri popular, no Festival do Rio. E foi sobre esse mais recente trabalho que a cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Olá, Carolina. Como nasceu o filme Aos Teus Olhos?
O filme nasceu logo no meu primeiro contato com a peça original. Estava procurando o que iria fazer a seguir, que história queria contar, e por isso fui ler peças de teatro. Sempre tem uma dramaturgia interessante nesse universo, além de, geralmente, nos possibilitar contar histórias com tamanho aptos a serem realizados, e, ainda assim, relevantes. Estava atrás de assuntos que pudessem despertar algum tipo de reflexão, e, ao mesmo tempo, que tivessem algum diálogo com o hoje, com o agora, com esse momento em que estamos vivendo. Tudo está mudando muito rápido, e é preciso estar em sintonia com esse novo mundo que está se formando. Os valores já não são mais os mesmos, as formas de comunicação e até mesmo de justiça não são as mesmas. Tudo isso era algo que me incomodava, que mexia comigo.
Então você estava à procura de algo que fosse de encontro com essa vontade?
Sim, tinha que ser algo que mexesse comigo. E quando li essa peça, que se chama O Princípio de Arquimedes, do catalão Josep Maria Miró, duas coisas me chamaram a atenção: a noção de justiça, aquela que parece estar sendo praticada hoje em dia, em que se é possível condenar uma pessoa sem provas, e essa semente a respeito da força e da influência das redes sociais. A acusação que parte das redes sociais, em que nada mais é questionado, tudo é imediatamente tomado como verdade, muitas vezes sem nenhum tipo de embasamento. Pensei em linchamento virtual, e há muitos exemplos disso por aqui, próximos da gente, surgindo a todo instante. Foi por isso que quis trabalhar a partir desse texto. Logo em seguida encontrei o Lucas Paraizo, que é um roteirista fantástico – ele fez o Gabriel e a Montanha (2017), recentemente – e começamos a adaptar. No total foram dois anos de trabalho, desde o momento em que li a peça até agora, com o filme estreando. Foi tudo muito rápido.
Em Boa Sorte (2014) você abordava uma questão polêmica, com um relacionamento marcado pela AIDS. Com o Aos Teus Olhos você traz outro tipo de debate. Há uma predileção por este tipo de conflito?
Acho que é um fluxo, algo até mesmo do meu inconsciente, que acaba caindo nisso. No Boa Sorte, a principal história era o amor dos dois, por trás é que havia o drama e a questão do HIV. Com o Aos Teus Olhos, de novo, o tema principal é debater esse julgamento apressado, inconsequente. Em uma segunda camada, temos essa questão delicada de uma suposta pedofilia, do abuso que pode ou não ter existido. Estamos vivendo tempos muito estranhos. Ou você opta por fazer algo que fuja totalmente da realidade, pleno escapismo, ou é melhor que seja algo que se imponha, que desperte a atenção e a curiosidade do público. Não consigo me ver fazendo algo muito fantasioso, então a minha linha de atuação é só uma. E não está sendo fácil a nossa vida. Cada dia é um novo golpe, mais um tombo, um choque que precisamos nos recuperar. E isso, de uma forma ou outra, acaba imprimindo na ficção.
O teu cinema possui uma conexão com o real, ainda que seja ficção.
O meu interesse estava ligado a essas questões da realidade. Não me interessava ficcionalizar um mundo fora desse em que estamos inseridos. Talvez seja por isso que acabo esbarrando em questões polêmicas, pois meu interesse maior é falar do ser humano, da complexidade do homem, sobre a formação das pessoas em jogo, No filme, há vários pontos de vista. O Lucas fala algo legal, que é até muito explorado pela premissa, que a verdade é de cada um. Não há uma só. Até por isso o título do filme: Aos Teus Olhos. Depende muito de quem vê e, principalmente, como vê. Assusta, mas é a realidade das coisas.
Aos Teus Olhos é um filme contemporâneo, que fala desse momento em que vivemos. Você não teme que ele acabe soando datado daqui alguns anos?
Rapaz, aí vai ser difícil (risos). O cinema tem uma característica, e isso é fato, de ficar refratário. Ele está inserido ao momento e às condições em que foi feito. O nosso filme, no entanto, tem uma questão que é universal, milenar até, que é a justiça. A Justiça, essa que está sendo deturpada, nas redes sociais e no nosso dia a dia, até por si própria. Hoje em dia, o que vale é que uma pessoa é culpada até provar o contrário, e não o oposto, como seria o lógico. Então, esse debate que a gente traz espero que dure! Estamos abordando questões reais, conturbadas, sobre a relação com o indivíduo. Por esse ponto de vista, acredito que possa durar, sim. Agora, em relação às redes sociais, tomara mesmo que fique datado daqui uns 10 anos. Torço por isso, aliás. O que fizemos está muito contextualizado com o mundo atual. Hoje, portanto, faz muito sentido. Mas quem garante como será visto amanhã?
Você disse que foram dois anos do início do projeto até agora. A realidade está muito diferente do momento em que vocês começaram para hoje?
Sabe, estou curtindo tudo isso que o filme está me trazendo. Foi até uma certa surpresa. Pois, quando filmamos, ainda não era tão forte essa coisa das fake news, de escândalos como esse do Facebook, do vazamento de dados e de informações. Não foi algo premonitório, ainda que todo mundo soubesse que isso poderia acontecer, cedo ou tarde. Veja o noticiário de cada dia, sempre com novas denúncias, o julgamento do Lula, esse governo que temos hoje, corrupção por todos os lados. Há muito sobre o que falar. A ficção se faz valer nesse espaço, no lugar de um fato real. Contextualiza, ainda que tenha sido uma conjunção. E vem a calhar com esse meu desejo de participar da discussão.
Daniel de Oliveira tem uma performance excepcional como Rubens, o protagonista. Como foi o teu trabalho com ele?
Desde o princípio, na feitura do roteiro, havia uma importância grande pra gente de manter a ambiguidade de todos os personagens, mas, principalmente, do Rubens. Nosso desejo era questionar. Deixar a dúvida. E o Daniel tem isso. Ele é capaz de fazer desde o bom moço até o vilão. E sempre muito competente. Então, sabendo que ele poderia me trazer essa ambiguidade, sendo muito inteiro, fomos atrás dele. Com ele à bordo, começamos um processo de leitura muito profundo, passamos dias lendo, mapeando os personagens, descobrindo o que estava por trás deles. E o Rubens tinha essa questão muito forte. Até que chegou uma hora em que o Daniel me perguntou: “poxa, ele fez ou não?”. Ele queria saber para onde ir, entende?
E não interessava para vocês saber se ele abusou ou não do aluno?
Foi algo conjunto: decidimos, de fato, que não nos interessava essa resposta. Se eu desse a indicação, ia conduzir por um lado. Se não tivesse feito, ele seria inocente. Se tivesse, por outro lado, seria um filme sobre pedofilia, que não era o que eu queria. Combinamos de jogar com isso. Eu, o Lucas e o Daniel decidimos jogar com essa questão, pois só assim poderíamos discutir o que realmente nos interessava. Hem uma hora ele é inocente, e logo na seguinte pode ser que não. O público acaba sendo seduzido pelo personagem, para logo em seguida ser traído por ele. Foi um exercício de interpretação e também de direção muito prazeroso. E muito louco, claro. Realmente jogamos com esse elemento, pois queria provocar a plateia. O George Moura, que assinou a supervisão do roteiro, lutou muito por esse título – aliás, foi sugestão dele. O que importa é o que os teus olhos veem. A resposta está com o espectador, e não no filme.
Aos Teus Olhos tem sido muito comparado com o dinamarquês A Caça (2012). Como você vê as relações entre esses dois filmes?
Olha, quando li a peça de teatro, é claro que de imediato liguei no A Caça, que, aliás, é um baita filme. Sou fã, é uma obra prima. Com certeza os dois filmes possuem fortes semelhanças, mas também há muitas diferenças entre eles. Primeiro, que no A Caça você sabe, desde o princípio, que está acompanhando um inocente. Ficamos na torcida para descobrir como aquele cara irá resolver uma grande injustiça. No nosso, por outro lado, isso não acontece. A angústia da dúvida fica com o espectador, é outra a questão a ser debatida. Mas, sim, os dois são primos, existe esse paralelo. A ferramenta, no nosso, são as mídias sociais. E há essa questão do personagem, da luta dele, desse desespero dele não se defender. Então, claro, existem ligações. Mas, numa análise mais profunda, as discussões são diferentes entre um filme e outro.
Aos Teus Olhos tem sido exibido por festivais desde o ano passado. Como você tem percebido a recepção do público?
A passagem do filme pelos festivais foi muito legal. Foi uma surpresa, na verdade, o bom resultado que tivemos. Pois sempre se fica muito tenso antes dessas exibições, a ansiedade toma conta, na espera pra saber como o público irá reagir. E, no geral, foram todos ótimos conosco. Até as passagens pelos festivais internacionais os resultados foram incríveis, e isso foi o mais surpreendente. Porque esta é uma história muito latina, por um lado. Uma situação como essa, um professor que abraça e beija seus alunos, mesmo que na bochecha, é uma coisa muito latina, em muitos lugares do mundo isso simplesmente não acontece. Por outro lado, as questões das redes sociais em tudo que é lugar é possível se identificar. Esse assunto tá na cabeça do mundo todo. Ainda mais agora. Então, num dia estávamos nos Estados Unidos, e a discussão era uma, e logo em seguida íamos para Havana e percebíamos reações muito similares. Todos ficavam impactos com essa questão da viralização da notícia.
Agora, ganhando o circuito comercial, quais são as expectativas?
A expectativa a partir de agora é que assistam, e que fiquem com ele na cabeça, que discutam, que troquem ideias, que indiquem aos amigos. Sei que este não é um filme muito aberto, mas ao mesmo tempo ele fala de uma coisa que está em todo lugar. Então, é possível que role essa identificação – e, se isso acontecer, já me darei por satisfeita. Não é um grande lançamento, vai ser algo modesto, mas sempre aguardamos pelo melhor. Torço para que o filme fique vivo, que as pessoas o vejam e discutam todos esses assuntos que colocamos na tela. Gosto da ideia das pessoas indo ao cinema, assistam e reflitam. Não faço filmes só para mim, afinal.
(Entrevista feita por telefone na conexão Rio de Janeiro / Porto Alegre em abril de 2018)