Num vilarejo no interior da França, três amigos unidos pelos movimentos sociais enfrentam problemas com o mundo virtual. Bertrand (Denis Podalydès) fica preocupado quando descobre na Internet um vídeo da filha adolescente sofrendo bullying. Marie (Blanche Gardin) se desespera ao ver que sua sex tape está presente nos sites pornográficos, e Christine (Corinne Masiero), motorista de aplicativos, quer reverter as baixas notas dos clientes.
Indignados com as redes sociais, a dificuldade de relembrar todas as senhas, de excluir vídeos íntimos, conseguir mais “likes” e mais estrelinhas, eles decidem lutar contra os grandes líderes das empresas de tecnologia. O resultado desta cruzada utópica é Apagar o Histórico (2020), comédia hilária coroada com o Urso de Prata no Festival de Berlim.
Esta crônica sobre os absurdos da vida conectada pode ser vista pelos brasileiros no Festival Varilux de Cinema Francês, em dezenas de salas de cinema pelo Brasil. O Papo de Cinema conversou com o cineasta Benoît Delépine, que dirige o filme junto de seu habitual parceiro, Gustave Kervern:
Você e Gustave Kervern sempre trabalham com personagens perdidos, fracassados. Por que esta escolha?
Esses personagens se parecem um pouco conosco, principalmente neste caso, diante de um progresso tecnológico que vai muito além das nossas habilidades. Nossos filmes são uma maneira de satirizar a nós mesmos através das histórias contemporâneas. Temos a tendência a amar os personagens onde podemos pensar: “Pobres de nós! É catastrófico termos chegado aqui, mas aqui estamos nós”! É isso que nos faz rir e nos motiva a criar projetos novos.
O roteiro foi inspirado de histórias vividas vocês dois, certo?
Sim, com exceção da sex tape! Quando ainda tínhamos condições de fazer uma sex tape, eram os tempos do VHS. Mas é verdade que a quase totalidade das cenas aconteceu a um dos dois, pelo menos enquanto fonte de inspiração. Estes problemas com a tecnologia fazem parte do cotidiano de todo mundo hoje em dia. Quando começamos a escrever a história, tínhamos medo de sermos os únicos enfrentando estas dificuldades com Internet e redes sociais, mas conforme conversávamos com outras pessoas, descobrimos as confusões são comuns a quase todo mundo. Aconteceram muitas outras coisas interessantes que não conseguimos colocar no roteiro. Mas se incluíssemos ainda mais coisas, ficaria demais.
Muitos filmes sobre os excessos da tecnologia se dirigem aos jovens, em tom ameaçador. O seu filme privilegia a geração anterior, sem o viés de precaução.
Não acho a tecnologia tão assustadora assim, para falar a verdade. Discuto muito a respeito com os jovens sobre este tema. A única coisa que me preocupa é o fato de termos nos tornado visíveis demais. Percebo que todos frequentamos os mesmos sites, temos interações semelhantes pela Internet. Não seria difícil para uma inteligência artificial nos aprisionar num espaço para que os empresários se aproveitassem disso. Tenho medo da nossa previsibilidade e dos nossos limites diante destas ferramentas. A Internet, em si, é algo genial: podemos ter acesso a informações sobre tudo. Quando estou escrevendo um roteiro, e quero obter dados sobre qualquer tema, encontro a resposta na Internet em dois segundos. Antes, eu demorava muito mais na biblioteca. Em tese, a Internet representa um progresso incrível para a educação. Mesmo assim, a maioria das pessoas não utiliza nem 0,1% da capacidade desta ferramenta, e portanto se torna muito fácil para as empresas explorarem este fator. Antes, os setores que queriam vender seus produtos tinham que preparar o marketing para todo mundo, na televisão e nas mídias impressas. Hoje, existe a capacidade de mirar um grupo específico que lhe interesse mais. Cabe a nós fugir disso.
Fico pensando como poderíamos fugir a estas armadilhas.
Pessoalmente, eu não estou no Facebook, nunca tive uma conta. Também não estou em Twitter, Instagram, nada disso. Na verdade, eu evito essas redes porque não quero ser julgado por ninguém – nem negativamente, nem positivamente, aliás. A partir do momento em que se pode “curtir” o conteúdo de alguém, isso tende a gerar uma angústia. Não suportaria ser constantemente julgado por desconhecidos. Eu me sentiria amedrontado. Por esta razão, unicamente, eu evito esta teia de aranha. Mesmo assim, vivo bem sem as redes. Mantenho meu contato com as pessoas que me interessam, e isso me permite seguir adiante.
Como a pandemia afeta a percepção do filme?
É uma loucura. Isso chega a constituir um problema: mostramos uma sociedade que tende ao individualismo e à solidão, e de repente a pandemia potencializa todos esses aspectos. A solidão se torna muito mais forte pelas circunstâncias externas. Imaginamos as pessoas alienadas em suas pequenas casas, diante de suas telas portáteis, com a entrega diária de comida via aplicativos, mas chegamos exatamente a este ponto numa velocidade surpreendente. O próprio lançamento do filme foi uma surpresa. Conseguimos lançá-lo nas salas no fim de agosto, e construir uma carreira comercial. Eu tive medo que as pessoas pensassem: “Eles estão criticando algo que faz parte da minha vida todos os dias, mas é o melhor que eu posso ter por enquanto. Estamos contentes de ter as séries de televisão e as redes sociais nesta fase de isolamento”. Isso vira praticamente uma ficção científica: será que a nossa humanidade pressentia as doenças iminentes e inventou esses dispositivos para torná-las suportáveis, diante da solidão? Existe uma relação de causa e efeito entre as tecnologias e as doenças?
De que maneira esta história se relaciona com o movimento dos coletes amarelos?
Para nós, o movimento dos coletes amarelos foi a base que permitiu o surgimento desta história. É a mesma coisa no Brasil: quando existe um acidente de automóvel, você coloca o colete amarelo e fica na beira da estrada acenando aos carros, avisando que existe um grande problema. Acredito que os manifestantes usavam os coletes pelo mesmo motivo: alertar para a existência de uma crise. Era como se pressentissem um acidente, e quisessem avisar sobre a existência deles. Esta foi uma maneira para as pessoas se reencontrarem fisicamente também, para além das redes sociais.
Como trabalha o humor com o elenco para rirmos com os personagens, mas não deles?
O mais importante é escolher bem os atores. Procuramos pessoas que nos fazem rir, que nos emocionam de alguma maneira. Precisam ser atores muito sensíveis. Ainda que bastante diferentes entre si, eles precisam compartilhar deste tipo de humor que gostamos de fazer. Nenhum deles chega até nós por acaso: é preciso ter uma afinidade de estilos, mesmo quando ainda não nos conhecemos pessoalmente. Já imaginamos quando um ator vai ter uma boa abordagem dos nossos personagens. Escrevemos o filme pensando no elenco que esperamos convencer depois. Torcemos para eles aceitarem mais tarde, e que consigam elevar o humor dos personagens a um nível superior. No caso de Corinne Masiero, por exemplo, sabíamos que ela realmente fazia parte do movimento dos coletes amarelos, então as cenas com ela teriam um grau de emoção maior. Blanche Gardin tem o costume de ir a fundo nos espetáculos de stand-up comedy, sem qualquer limite. Denis Podalydès também elevou o personagem de Bertrand: ele encontrou a maneira de interpretá-lo ao longo do processo. A escolha de falar com uma garota de 16 anos como se ela tivesse 5 anos de idade mostra que houve um longo período em que ele não cuidou dela, não a viu crescer. Isso é lindo, e nasceu durante as filmagens, graças à cumplicidade com o ator.
São três especialistas da comédia, de estilos muito diferentes. Como trabalhou para que convergissem? Incorporaram imprevistos às cenas?
Sim, mas a espontaneidade é estimulada, não apenas preguiça da nossa parte! Sabe as pessoas que caçam fantasmas? Nós dois somos parecidos, mas somos caçadores de momentos de brilho durante as filmagens. Nosso pior pesadelo é proporcionar algum belo momento de criação no processo de ensaios, mas sem conseguir reproduzi-lo na hora da filmagem. Por isso, sempre confiamos muito nos nossos atores. Preparamos filmagens prontas para captar algum instante mágico que ocorra diante das câmeras. Na maioria das vezes isso acontece na primeira tomada, porque os atores estão dentro dos personagens. Raramente fazemos mais de duas ou três tomadas por vez. De imediato, eles oferecem o que imaginam para cada cena, e apenas afinamos o tom um pouco. Temos a sorte de trabalhar com atores tão bons que não precisamos fazer muitos ensaios, nem repetições.
É interessante abordar as tecnologias artificiais com uma estética naturalista, próxima do documental.
Como nós estávamos numa cruzada contra o mundo digital, contra os “zeros” e “uns”, era preciso adotar uma imagem da velha guarda. Era importante ter o grão químico, físico, sem uma definição excessiva. A alternativa foi voltar à película, com o 16mm que já utilizamos em filmes anteriores. Foi ótimo voltar ao 16mm, aliás. Além disso, em cada projeto fazemos questão de filmar no lugar exato onde acontece a ação: fizemos uma busca muito precisa para encontrar o bairro correto, e depois filmamos dentro das casas reais das pessoas. Foi insano: eu venho da classe média, nunca morei nestes conjuntos habitacionais, e apenas imaginava como seria a vida das pessoas nestes lugares. Mas quando você chega no local de verdade, percebe que eles vivem exatamente as situações descritas no roteiro. A vida deles vai ainda mais longe do que o texto imaginava. É surpreendente se confrontar à realidade desta maneira. Eles não chegaram a mudar os rumos da história, mas trouxeram detalhes que eu jamais teria imaginado. Eu fiquei chocado de ver que todas as casas tinham televisores incríveis, enormes, de tela plana. Além disso, cada casa tinha uma máquina de cerveja artesanal, algo que eu jamais teria imaginado. Neste contexto, não se surpreende que as pessoas não frequentem mais o bar e o cinema!