Maeve Jinkings é uma das favoritas do Papo de Cinema. Surgida quase como num furacão em O Som ao Redor (2012), ela de imediato conquistou nossos corações. Por esse trabalho foi premiada como Atriz Coadjuvante no Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro – promovido pelo nosso site com críticos de cinema de todo o país – e simplesmente não parou desde então. Logo depois foi reconhecida como Melhor Atriz no Festival de Brasília por Amor, Plástico e Barulho (2013), e no ano passado esteve no elenco de um dos melhores filmes nacionais da temporada, Boi Neon (2015). Agora, já passou pelo Festival de Cannes e esteve presente na sessão de abertura do Festival de Gramado com o aguardado Aquarius (2016), seu segundo longa com Kleber Mendonça Filho. A querida e simpática intérprete de Ana Paula conversou com exclusividade com o Papo de Cinema, e falou sobre suas motivações, como foi assumir uma personagem ‘que nem o diretor gostava’, e o que a move enquanto artista e cidadã. Confira!
Você está presente nos dois filmes do Kleber Mendonça Filho, O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), porém os perfis destes personagens são bem opostos. Como foi para você construir estas duas mulheres?
Eu até brinco quando me perguntam “qual a maior dificuldade de fazer a Ana Paula, em Aquarius?”, bom, a questão é que a Ana Paula o Kleber não ama. Porque a Bia, de O Som ao Redor, era a heroína dele! O Kleber tem um talento muito grande para, e isso falo como atriz, escrever personagens femininos muito complexos. Ele é quase um Chico Buarque do roteiro. Como pode um homem escrever uma personagem feminina com tanta precisão, com tanto relevo, sabe? Dar tanto material para a gente… bom, tá aí a Clara, que a Sonia Braga faz maravilhosamente bem como protagonista. E o processo de construção da Ana Paula foi muito rico. Eu tive que brigar muito por ela. Quando o Kleber me chamou, ele disse: “você tem certeza que quer fazer essa personagem? Ela é uma chata, viu? Confesso que não gosto muito dela, quem sabe se você fizer eu passo a gostar um pouquinho mais dela?”.
Então você tinha que conquistar o próprio diretor com o personagem que ele mesmo havia criado?
Exatamente! Por isso que, quando li e percebi que queria fazer, descobri que tinha que defender ela. O ofício do ator é se identificar. Você, intuitivamente, quando começa um trabalho, procura o ponto de convergência. Por mais vilania que haja, preciso encontrar esse ponto de identificação para que eu possa me colocar nesse lugar em que ela está.
Uma coisa muito real em Aquarius é que o filme evita o maniqueísmo, não existe preto e branco. Muita gente vai ver a Ana Paula e entender os motivos dela, de não querer deixar a mãe naquele edifício abandonado…
Sim, é bem por aí. Tanto que disse para o Kleber: “ela pode ter um traço de vilania, mas eu vou defendê-la!”. Mas não porque eu concordo com o ponto de vista dela, mas porque acho que é a minha função como atriz. E porque preciso que as pessoas se vejam naquele lugar. Se parto do princípio que ela é uma vilã, de que ela é uma sacana com a mãe, que é uma egoísta, etc, vou imprimir isso na minha interpretação e não vou gerar identificação. Isso não pode acontecer. O que mais me interessa, enquanto atriz, é justamente gerar essa identificação. Não só eu, como atriz, ser capaz de me ver – eu, por exemplo, sou muito mais conservadora do que a minha mãe! O meu ofício, que obrigatoriamente me abre para o mundo, me salvou de ser ainda mais conservadora. É o que faço que me deu essa chance de quebrar meus preconceitos e me tirar dessa bolha em que vivemos.
Pois cada personagem te oferece um novo ponto de vista…
São outras perspectivas que você precisa aprender a lidar. O que me interessa é que as pessoas possam se ver. Pra mim, enquanto espectadora, o que me interessa é me ver naquele lugar, conseguir me identificar com o drama vivido na ficção. Nem que seja uma identificação até a hora em que ela me dá uma rasteira, para que eu pense “puxa, ela é meio sacana, né?”. Nossa, e eu tava do lado dela, talvez tenha um pouco de mim ali também. Ninguém acha que é vilão, sempre há uma justificativa.
Como é o seu processo de trabalho? Você é mais intuitiva ou precisa de muita pesquisa e referências? Fica presa ao roteiro ou gosta de improvisar? Como você faz para guiar as suas escolhas?
Depende muito de cada trabalho. Por exemplo, O Som ao Redor. Acho que foi o personagem que, de certa maneira, era mais próximo do meu universo, isso se eu considerar que era uma mulher, de classe média, dona de casa. O que me assustava nela é que era uma mãe, achava que ninguém iria acreditar que eu pudesse ser mãe de duas crianças daquela idade, pois eu não tenho filhos. Felizmente, acho que conseguimos.
E a tua cena no sofá, deitada, com as duas crianças por cima de ti, virou uma das imagens mais marcantes do filme…
Pois é! Acho que tem uma coisa super intuitiva, tipo uma antena, você vira uma esponja e começa a absorver, a ver o universo da personagem em toda a parte. A Ana Paula, por menor que fosse sua participação na trama, ela começou a aparecer pra mim em tudo que é lugar. Que Ana Paulas eu conheço? Quais delas estão na minha vida? Talvez eu não as veja com os mesmos traços que estão expostos no filme, com esse ponto de vista crítico que a narrativa coloca. O ponto chave, sempre, é conversar com as pessoas. Eu pesquiso muito, observo, procuro referências de todas as ordens, dependendo do universo delas. Preciso saber onde elas estão na minha vida, ou mesmo no mundo.
Independentemente do tamanho do personagem, seja uma coadjuvante, como em Aquarius, ou a protagonista, como em Amor, Plástico e Barulho?
Evidentemente, Amor, Plástico e Barulho representou um grau de dificuldade muito maior, porque era um universo muito distante para mim. O jeito que ela se vestia, no início, foi uma violência. Achava que objetificava o corpo da mulher. Tinham os meus preconceitos envolvidos. Tem a ver também com o meu lugar na vida, de ter uma ideia sobre aquilo. Aquele excesso de erotização me chocou muito enquanto feminista. Mas aos poucos você vai transformando isso tudo e vai entrando naquele universo. Tive que pesquisar muito, até porque tinha muito mais espaço na narrativa, os desafios são maiores. Mas essa dificuldade, tendo você tempo de tela ou não, naquele instante ele precisa existir e fazer sentido para você.
Uma das cenas mais emocionantes de Aquarius é quando você está prestes a chorar e o irmão, que está sentado ao seu lado, se levanta, pega um livro na estante, abre a página e mostra a dedicatória da mãe de vocês. Como se prepara uma cena dessas em que quase tudo está apenas no olhar?
Eu amo também esse momento. Mas esse instante específico que você está citando, e é claro que o registro que está na tela eu já sabia o que iria acontecer, pois havíamos ensaiado antes, mas isso não estava no roteiro. Foi algo que descobrimos improvisando nos ensaios. Inclusive esse ápice dramático de nós duas chorando abraçadas, isso não estava previsto. E o Kleber teve seus truques, ele amadureceu em vários sentidos como diretor, e agora está cheio de safadezas com os atores (risos). Ele aprontou uma surpresa para cada um de nós. Por exemplo, eu não sabia que isso iria acontecer. Ele pediu para o Germano Mello, que é o ator que faz o meu irmão, levantar e pegar aquele livro. Mas eu não sabia que isso iria acontecer. No ensaio, inclusive, o Germano pegava o livro e ficava tentando me mostrar, e eu seguia discutindo com a minha mãe, sem dar atenção a ele. Ele só dizia “olha Ana Paula, olha Ana Paula”, até que olhei, e desabei. Quando filmamos, já havia tido esse momento prévio, o movimento havia sido construído e você revive tudo de novo. A memória emocional está muito viva. Mas isso tudo foi um truque do Kleber que eu amei. Foi lindo.
Não tem como, naquele instante, não se identificar com toda aquela família…
Exato! Ele pediu para a direção de arte produzir aquele livro, orientou apenas um dos atores, foi tudo muito particular e surpreendente. Ele me dizia “ela é uma chata, ela é uma bitch”, e quando fomos ensaiar e comecei a defender a Ana Paula, dizia “mas ela tem tal e tal questão, se sente assim e assado”. No primeiro ensaio, mesmo sem esse truque do livro, a cena já havia sido emocionante.
Era uma emoção que estava sendo construída.
Claro. Nos tocou naquele lugar, desses encontros familiares, das mágoas e conflitos. E quando acabou o ensaio, escutei o Kleber fungando. A preparadora de elenco, a Amanda, veio e me falou: “o Kleber tá chorando”. Quando fomos almoçar, logo depois, ele disse: “é, talvez eu goste um pouco mais da Ana Paula agora”. E eu pensei: “yeah!”.
Missão cumprida!
Pois é. Só que daí vem as nossas inseguranças. Depois disso fui embora, tava gravando novela no Rio, e comecei a pensar a respeito. Será que tá certo? Será que era isso mesmo que ele queria? Será que estou destruindo a composição mais bitch que ele havia imaginado? Você sempre fica em dúvida. Quando voltei e estávamos prestes a filmar, o Kleber estava ali, atrás da câmera, e eu pronta para entrar em cena, fui no ouvido dele e perguntei: “Kleber, você quer ela mais sacana?”. E ele respondeu: “quero que você faça o que achar melhor para o filme”.
Aquarius, desde a passagem de vocês por Cannes, está se tornando símbolo de um país dividido, dessa crise que estamos enfrentando. Vocês tomaram uma posição muito clara a respeito desse momento. Tu acha que é papel da arte se posicionar diante de situações como essa? Como você acredita que o público está vendo tudo isso?
Eu acho que é papel do cidadão, em primeiro lugar. E quando falo, Robledo, honestamente, não tou falando como atriz. Tou falando como Maeve. Felizmente, tenho uma plataforma através da qual posso projetar minha voz para mais e mais pessoas. E se posso fazer isso, num país dividido onde, na minha opinião, a mídia não reflete essa divisão de uma maneira equilibrada, privilegiando a narrativa oficial, que é de uma estratégia questionável, ilegítima, desonesta, pouco transparente, por que vou abrir mão disso? Não vejo motivo. Acho que, como artista, o meu compromisso é com a humanidade. Honestamente, na narrativa que orquestrou esse falso impeachment, que é claramente um golpe, ainda que seja um golpe moderno, com uma capa dissimulada – e acho mediúnico o roteiro do Kleber a respeito dessa questão, e não é à toa que Aquarius se tornou esse símbolo. Inclusive, falando em construção de vilania. O nosso ministro falou que era um desrespeito falar em golpe, já que tivemos um golpe militar em 1964, quando muitas pessoas morreram. Mas acho esse golpe atual muito mais perverso, assim como é perverso o nosso vilão Diego (personagem de Humberto Carrão). Porque ele enche de cupim a estrutura da casa com um sorriso nos lábios. Um golpe que se dá sem armas de fogo, dissimuladamente, com um sorriso no rosto e com gel no cabelo, com uma aparência bonita, é de uma perversão muito maior. O que rege esse golpe que estamos vendo hoje é apenas o benefício próprio. É uma dificuldade de olhar para o outro. Todas as políticas desse governo são super conservadoras, extremamente retrógradas, atrasadas, excludentes. E o papel da cultura é de inclusão, de olhar para o outro. O meu ofício, nesse sentido, me salvou dessa caretice porque ele me abre para uma perspectiva de vida que não é a minha. Se estivesse interessada só no meu umbigo, ia ficar bem quietinha, em cima do muro, sem falar nada. Não tenho dúvida que estou me comprometendo, que tou correndo o risco de, inclusive, perder trabalho. E é aí que digo que não estou falando só como atriz, mas também como cidadã.
Fazendo um pouco o advogado do diabo, e até aproveitando isso que você falou, do argumento ser mediúnico, você não acha que o filme, por si só, já não provocaria essa reflexão?
Acho que ele trás. É por isso que falo que, quando me posiciono, não é como ‘a atriz do Aquarius’. Ou ‘a atriz que está interpretando a Ana Paula’. Não é uma legenda para o filme, até porque acho que filmes não devem precisar disso. A gente não dá instrução, não tem bula. Eu sou a Maeve, e penso isso. Estaria me colocando dessa maneira mesmo se não fosse atriz, se fosse advogada, corretora de imóveis, dentista. Estaria me colocando, a diferença é que não estaria num tapete vermelho e menos pessoas me ouviriam, talvez. Só isso.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em 27 de agosto de 2016)