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Filmes angolanos raramente chegam ao Brasil. Um dos motivos é que, nos últimos anos, há efetivamente pouca produção cinematográfica no país africano. Mas que isso não sirva de desculpa. É importante que tenhamos em mente a necessidade de tomar contato com cinemas considerados periféricos, que fujam aos modelos produtivos e narrativos dos polos hegemônicos, especialmente Estados Unidos e Europa. Então, foi com muito entusiasmo que assistimos ao angolano Ar Condicionado (2020), antes exibido no Festival de Roterdã, mas disponibilizado globalmente, por tempo restrito, no We Are One. O festival que aconteceu de forma completamente on-line exibiu filmes de destaque em diversos eventos importantes e também teve um cunho beneficente, o que aumentou sua relevância. Na trama do longa, ares-condicionados caem misteriosamente em Luanda, causando um estado de apreensão nos moradores dessa capital cinzenta e barulhenta. Para saber um pouco mais sobre Ar Condicionado e também acerca do cinema angolano na atualidade, conversamos com Fradique, o diretor do longa e um dos fundadores da produtora Geração 80. Confira este bate-papo exclusivo e internacional aqui no Papo de Cinema.

 

Como surgiu a ideia do Ar Condicionado, dessa história marcada pelas andanças por uma Luanda embebida em realismo mágico?
Há muito tempo vinha pensando em desenvolver um curta sobre um segurança de prédio. Essas ideias já continham alguns elementos que estão no Ar Condicionado, tais como a questão dos ares-condicionados caindo. Mas, foi apenas quando me juntei com o Ery Claver, o diretor de fotografia do filme, que essa trama foi se delineando. De fato, foi a primeira vez que escrevi com alguém. A ideia de transformar essas ideias em longa-metragem foram ganhando corpo. O Ery também é realizador, partilhamos muito no âmbito do cinema, inclusive essa inspiração oriunda do realismo mágico literário. Nesse sentido, foi quase como juntar duas pessoas que falam a mesma língua.

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A utilização do realismo mágico era para tornar as observações, sobretudo as de cunho social, poeticamente mais contundentes?
Acredito que o realismo mágico ajuda as pessoas a entrarem melhor nesse mundo. Temos uma tradição muito grande quanto a ele na literatura angolana, vide Pepetela, José Eduardo Agualusa e o José Luis Mendonça, escritor que admiro bastante. Aliás, quero muito fazer um filme baseado num livro dele. Há sempre uma dúvida quando o realismo mágico surge: é possível que aquelas coisas tenham acontecido? Essa incerteza me encanta. O ambiente é estranho, mas, no fim das contas, a gente não sabe se é verdade ou não. Para nós, sempre foi importante brincar com tal questão. Mudamos pouco os cenários naturais da cidade. Simplesmente tratamos de selecionar os que se encaixavam na proposta. Escolhemos essa rua que simboliza boa parte de Luanda, com prédios coloniais antigos em processo de deterioração, onde as pessoas encontram maneiras de sobreviver, na qual fica evidente a ausência do Estado. Então, ao invés de criarmos o realismo mágico, nossa vontade era descobrir o que dele já existia na cidade.

 

Como foi o processo de construção do som do filme, um elemento imprescindível para a instauração daquela atmosfera bem particular?
Foi um processo bastante árduo. Eu e Ery somos muito visuais. Já na construção do roteiro, vislumbramos o fato de que a cidade de Luanda é demasiadamente barulhenta. Vizinhos, músicas, máquinas trabalhando, sonoridades diversas acabam se misturando naquela polifonia. Queríamos colocar quase como obrigação prestar atenção ao som. Além de vermos a cidade pelos olhos do Matacedo, também a ouvimos por meio dos ouvidos dele. Acho que essa construção trouxe uma camada poderosa ao filme, junto da trilha sonora da Aline Frazão. Aliás, a experiência da trilha sonora também foi nova para mim, pois ela começou no roteiro. Os primeiros contatos que Aline teve o filme foram com o roteiro. A música acabou ficando icônica, porque fala de Matacedo e de Luanda ao mesmo tempo.

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Você sente que sobre cinematografias periféricas, como a angolana e a brasileira, por exemplo, é lançada uma enorme expectativa quanto à utilização do naturalismo para falar de questões sociais? Nesse sentido, o Ar Condicionado quebra essa preconcepção dos centros hegemônicos…
Existe, sim, uma expectativa e um estereótipo muito grandes. Não há nada pior para mim do que ouvir que isso ou aquilo não é cinema africano. Não acredito que seja bom colocar as coisas dentro de caixas. Há várias vertentes e perspectivas no cinema angolano. Há diversas maneiras e abordagens. Existe uma dominação muito grande do ocidente e do norte do mundo em relação ao cinema. Quando algo de fora desse âmbito se destaca, as pessoas tentam rotular. Dando um exemplo do próprio Brasil, fiquei completamente surpreso ao assistir aos primeiros curtas e depois aos longas-metragens de Gabriel Mascaro. Nunca tinha visto aquele tipo de filme vindo do Brasil. Para mim, é lamentável que não tenhamos aqui políticas públicas específicas de fomento ao cinema angolano. Chutando por cima, acredito que 99% dos filmes exibidos nos cinemas de Angola são norte-americanos e 1% é europeu.

 

Na sua opinião, faltam mecanismos específicos para intercâmbios constantes entre a cinematografias de países de língua portuguesa?
Sinto muita falta disso. Adoraria ver mais filmes brasileiros em Angola, não apenas novelas, para dizer a verdade (risos). Gostaria que os nossos filmes estivessem também nas telonas do Brasil. Imprescindível compartilhar conteúdo, mas também fazer parcerias e estabelecer coproduções. O que acontece muitas vezes é que se torna mais simples fazer uma coprodução com o Brasil passando por Portugal. Na verdade, não há essa necessidade. Por que não fazer uma parceria diretamente Angola/Brasil? Os fundos têm esse modelo de passar por Portugal, mas acredito que tenhamos de começar a pensar alternativas para nos tornar independentes. Claro que eu adoraria coproduzir com Portugal e outros países europeus, mas também queria coproduzir com Moçambique, Cabo Verde e Brasil.

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No Brasil, atualmente vivemos um ataque às instituições culturais, no que perfeitamente poderíamos tachar de perseguição ideológica. Como vocês percebem esse nosso ambiente aí em Angola? E como está o cenário cinematográfico de produção e exibição por aí?
Produzir em Angola sempre foi em formato de guerrilha. Logo após a independência houve uma produção muito grande a nível documental e algumas ficções. Mas, dos anos 1980 até os dias de hoje as produções são esporádicas. Esse filme foi feito dentro de uma produtora chamada Geração 80, da qual sou um dos fundadores. Mas ele vem depois de 10 anos com a gente fazendo documentários, adquirindo equipamento e apoio técnico. Gostaria de ter suporte do Estado. Porém, não podemos ficar à espera disso. Vamos continuar produzindo com os meios disponíveis. Tenho acompanhado com muito pesar essa situação atual do Brasil. Dá uma agonia, porque vocês vinham produzindo muito nos últimos 20 anos, fazendo um cinema tão bonito, exportando a cultura brasileira para grandes festivais, com uma indústria montada, tanta gente empregada e vários projetos engatilhados. Cinema é uma coisa que demora anos, então esses golpes de agora provavelmente vão representar estragos por anos no cinema brasileiro. Então, acompanho à distância isso com bastante preocupação.

 

O Ar Condicionado ganhou uma projeção enorme após ser disponibilizado no festival on-line We Are One. O que te parecem essas janelas alternativas à sala de cinema, especialmente agora que você teve essa experiência de ganhar visibilidade a partir de uma delas?
Na verdade, exibir o filme em competição no festival de Roterdã já estava bom. Recebemos posteriormente alguns chamados para outros festivais. Vários destes foram adiados por conta da pandemia. Quando surgiu o convite do We Are One, refletimos muito. Sabíamos que após exibir o filme globalmente no YouTube, alguns festivais não iram aceitá-lo. Todavia, o mais importante era que ele fosse visto. Pesou também o fato do evento angariar fundos para entidades beneficentes. No fim das contas, alguns festivais realmente já sinalizaram que não querem o filme porque ele foi projetado nessa janela, mas outros nos felicitaram pela iniciativa, entenderam e vão querê-lo. Nesse momento, especialmente dentro do âmbito independente, me preocupa saber como vamos sobreviver fazendo filmes. Para mim não interessa deixá-los na gaveta ou mostrá-los a apenas 20 amigos. Obviamente, prefiro ver o filme numa sala de cinema, mas não podemos impor dogmas. Já estamos perto das 30 mil visualizações do Ar Condicionado. Nunca colocaríamos 30 mil pessoas nos cinemas. Então, o que me deixa mais feliz é que as pessoas estão vendo o filme.

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E novos projetos? O que vem por aí?
Na verdade, o Ar Condicionado aconteceu porque eu não estava conseguindo fazer outros projetos. Um deles é a adaptação do livro O Reino das Casuarinas, do José Luis Mendonça. Fizemos residência artística, laboratórios, fomos a festivais realizar pitching, mas se trata de um trajeto longo, que já vem se arrastando há quatro anos. É um filme grande, de época, que se passa nos anos 1980, em Angola. Num determinado momento, entendi que esse projeto iria tomar muito mais tempo e que era preciso fazer meu primeiro longa de uma vez. Aí resolvi mexer numas coisas antigas, dentre elas o Ar Condicionado. Mas, agora volto a O Reino das Casuarinas.

 

(Entrevista feita via Skype, em junho de 2020)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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