Ambos mineiros, um de Contagem e o outro de Ouro Preto, os cineastas Affonso Uchôa e João Dumans venceram a histórica 50ª edição do Festival de Brasília com Arábia (2017), filme que promove a ligação insuspeita entre o menino que mora na vizinhança de uma imponente siderúrgica no interior das Minas Gerais e um trabalhador, justamente dela. O até então desconhecido, que desfalece por motivos ignorados, tem seu íntimo descoberto a partir de memórias escritas. Antes mesmo de levar para casa o Candango de Melhor Filme, o longa-metragem foi exibido nos festivais de Cartagena, Roterdã e San Sebastián, entre outros internacionais. Agora é a vez de encarar o circuito comercial, com todas as suas dificuldades e idiossincrasias, algo que Affonso e João almejavam fazer em maior escala, justamente para propiciar contato entre sua criação e as pessoas das quais ela, de certa forma, fala com um misto de proximidade verossímil e fabulação poética. Prestes a fazer a primeira exibição pública de Arábia, na cidade de Ouro Preto, os cineastas tiraram um tempo para conversar conosco. Confira mais este Papo de Cinema exclusivo.
Arábia é sobre Cristiano (o protagonista), mas, também, sobre trabalho, Ouro Preto e literatura. Como se deu esse amálgama de observações tão fortes separadamente?
Affonso Uchôa: Esse foi um dos nossos grandes desafios. Como conjugar todos os fatores e elementos? Resolver isso fazia parte do desejo criativo. Nosso processo é muito alongado. Para se ter uma noção, entre a primeira ideia e o lançamento, se passaram sete anos. A filmagens foram feitas ao longo de três anos. A própria natureza do filme era uma junção de diversos componentes. Construímos ele em diferentes etapas e momentos. Trabalhamos bastante a fim de achar um método, para ir sentido essas zonas de cruzamento, o que nos propiciou estabelecer aos poucos as relações. Nesse sentido, a maior dificuldade foi achar os pontos de inflexão, por exemplo, entre nossas cidades, Contagem e Ouro Preto, respectivamente de onde Cristiano parte e aonde ele chega. Buscamos encontrar a conexão entre a literatura e a vida proletária, entre o cinema de inspiração/devoção à realidade e aquele da fabulação.
Geralmente, a narração em off é um elemento facilitador, nem sempre visto como bons olhos pela crítica. Mas em Arábia ela funciona em outra chave. Como se deu essa opção pelo off?
João Dumans: Tem alguns ângulos para observar esse elemento. Nosso filme é sobre a escrita, mais especificamente o ato de contar uma história. A narração em off não foi concebida para auxiliar a imagem. Ela é a manifestação do ato de narrar. O off, portanto, é fundamental. Não existiria o filme sem ele. Sabíamos da dificuldade de fazer algo 80% estruturado em torno do off. Era importante o protagonista contar a própria vida, descrevendo sentimentos, sensações e percepções de mundo. Arábia é sobre alguém que começa a descobrir certas coisas acerca de si mesmo. Esse processo de fala e escuta é vital. Precisamos ter paciência para ouvir e entender aonde esse narrador quer nos levar. Da perspectiva puramente prática, estruturar o off foi muito difícil. Tivemos de aprender como utiliza-lo. Entramos em estúdio quase um ano após o término das filmagens. Vou ser sincero. Muitas vezes o processo de escrita e gravação do off foi mais penoso, para a gente, enquanto realizadores, que as filmagens em si.
Falem um pouco sobre a sonoridade, as músicas de Maria Bethânia, Raul Seixas, Dorival Caymmi, o sotaque mineiro, os barulhos da fábrica, componentes realmente sobressalentes no filme.
AU: Quando escolhíamos o lugar de filmar, isso já indicava a relação sonora. O desenho de som, que recriou verdadeiramente algumas partes, compôs uma banda concreta com as melodias do mundo. O som daquela fábrica, por exemplo, era seu maior sinal de poder e influência. Nos arredores, as pessoas não têm direito ao silêncio. É muito opressor, e isso ficou na nossa cabeça. Mas, a onipresença auditiva da fábrica foi muito composta a posteriori. O som ajuda a estabelecer a força narrativa. Construir essa presença da fábrica era necessário para conferir importância, inclusive, à ausência dela. A potência do som reverbera, também, na expressividade do silêncio. Quanto às músicas, elas sempre estiveram no roteiro, principalmente as populares, que aludem a uma vida interiorana e pobre. As canções não dizem respeito apenas ao clima. A letra é importante, sua faceta literária. A música da Bethânia, por exemplo, é fundamental, pois traz outra forma de contar a história do Cristiano e da Anna.
JD: Algumas pessoas acham estranho abrirmos um filme brasileiro com música norte-americana (Here Come The Blues, de Jackson C. Frank – nota da redação: I’ll be here in the morning, de Steven Van Zandt, que antes abria Arábia, foi substituída em virtude de direitos autorais). O filme vai reconduzir essa canção às suas origens. Ela tem tudo a ver com a vida dos trabalhadores comuns, dos peões que estão na estrada em busca de trabalho.
Dá para dizer que o Aristides de Sousa, vulgo Juninho Vende-se, é coautor de Arábia?
AU: Penso, primeiramente, que temos de entender o que é ser autor. O filme é um registro, inclusive, do processo criativo do Juninho, sem dúvida. Mas, não se pode abrir uma brecha para interpretações erradas. O longa não é inspirado na história do Juninho, que tampouco escreveu e/ou participou ativamente do roteiro. Isso não aconteceu.
JD: O filme foi construído em torno do Juninho. As histórias, os diálogos e a narração foram feitas por mim e pelo Affonso. Juninho é uma das pessoas que nos inspiram muito. Quando estamos escrevendo, é bom saber que há alguém para viver as situações de maneira fiel, verdadeira e engajada. Quando acontece isso, te dá muita segurança. Sabíamos que o Juninho iria entrar na fábrica e trabalhar, não deixando nada a dever aos funcionários cotidianos. Fora isso, ele é nosso amigo, uma pessoa bastante próxima.
AU: Arábia se construiu a partir de diversas fontes e inspirações, também as literárias e cinematográficas. Remontando à sua pergunta inicial, o desafio foi equilibrar o caldo que fazia nossa cabeça ferver. O Juninho é uma dessas influências, assim como é a literatura do Graciliano Ramos, os filmes do Leon Hirszman e do Ermanno Olmi.
Arábia circulou bastante nos festivais. Agora está prestes a chegar ao circuito comercial, onde atingirá um público completamente diferente. O que vocês esperam dessa outra etapa?
AU: É muito difícil responder isso. Não tenho ideia, e fico feliz por não ter ideia. Colocamos o filme num bom risco, o de encontrar ou não seu interlocutor, saindo de um terreno ligeiramente seguro, o da imprensa, do cinéfilo, enfim, de quem frequenta festivais. É para isso que fazemos cinema. Realizamos um filme sem grana, pequeno, para, no máximo, umas 30 mil pessoas. Sabemos que estamos falando para pouca gente. O que mais queríamos dificilmente vai acontecer, por uma série de questões. Desejávamos que as pessoas próximas do universo do Cristiano pudessem ver o Arábia, se reconhecer nele. A estrutura do circuito é feita para que essa gente não veja esse tipo de filme. A batalha é enorme, especialmente para tentar desviar desse buraco gigante que é a distribuição brasileira.
(Entrevista concedida por telefone, numa ponte São Paulo/Rio de Janeiro, em março de 2018)
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