Desde a última quinta-feira, 23 de setembro, está disponível nos cinemas brasileiros o drama Aranha (2019), dirigido por Andrés Wood. O filme, coproduzido com o Brasil, representou o Chile na corrida ao Oscar 2020 trazendo uma história sobre as feridas políticas da América Latina. Na trama, Inés (Mercedes Morán) e Justo (Felipe Armas) formam um casal idoso e burguês que oculta o fato de ter militado pela extrema-direita no passado. O processo de anistia e apagamento histórico faz com que os dois levem uma vida tranquila, sem qualquer responsabilidade pelos crimes cometidos na juventude.
No entanto, quando um antigo parceiro de movimento, Gerardo (Marcelo Alonso) retorna do anonimato, os laços políticos de Inés e Justo correm o risco de voltar à tona. A narrativa alterna entre o presente e passado, quando María Valverde, Pedro Fontaine e Gabriel Urzúa interpretam o trio principal. O brasileiro Caio Blat também integra o elenco. Nós conversamos com Wood sobre o provocador longa-metragem:
Aranha pode ser considerado um filme progressista sobre ideias conservadoras?
Essa pode ser uma das definições. Às vezes, tentamos fazer um filme progressista, mas o resultado acaba sendo o contrário. Aranha foi um grande desafio para mim, exatamente por este aspecto. Esta foi a primeira vez em que tentei compreender indivíduos dos quais discordo. No final, não sei se atingi os meus objetivos: isso cabe a você, e ao público, decidir. Espero ter feito um filme progressista. O filme demorou muito tempo para ficar pronto, e diversas coisas aconteceram neste período, tanto no Chile quanto no resto do mundo. Isso torna Aranha, pelo menos no meu ponto de vista, bastante atual. Essa era uma das maiores preocupações que eu tinha no início, através das conexões entre o passado e o presente. Quis fazer um filme que fala sobre o presente, mas sem fazer uma grande declaração a respeito. Algumas pessoas leram Aranha pelo ponto de vista oposto: elas me perguntaram como eu tinha sido capaz de ter empatia por aquelas pessoas. Mas eu fiz o filme por esse motivo.
Foi um desafio não vilanizar estes personagens moralmente contestáveis?
Com certeza. Tentei fazer o meu melhor neste aspecto! Eu me esforcei bastante. Sabe, é sempre muito difícil falar sobre os filmes nos quais estamos envolvidos. Às vezes, para a gente, algumas questões estão claras no projeto, mas as pessoas não as enxergam. Às vezes, as ideias no início mudam totalmente durante o processo. Aranha foi ainda mais difícil para mim neste sentido.
Como vê a maneira como o Chile – e talvez Brasil e Argentina – lidam com seu passado de opressão?
No Chile, isso vem em ondas, e depende de qual momento uma geração se encontra. O Chile e o Brasil atravessam momentos opostos atualmente. O filme chegou pouco antes da revolução que tivemos no Chile dois anos atrás, e nossa tese diz respeito ao fato de que a sombra da ditadura permanece na organização do país. Dois anos atrás, isso explodiu, o que foi uma grande surpresa para todos. Estamos muito sensíveis a este passado neste exato momento. Para cineastas como eu, este é um tema complexo: tentamos jogar luz a esta questão, e agora todo mundo está falando a respeito. Quero ser capaz de lidar com os aspectos além da superfície, com o que se esconde por trás. No Chile, a ditadura venceu. Este modelo de regime venceu. Embora tenhamos conquistado justiça quanto às violações de direitos humanos, isso demorou muito tempo para acontecer.
Ao mesmo tempo, atravessamos uma grande mudança constitucional, com a ajuda da Comissão de Direitos Humanos. Finalmente, estamos lidando com o passado. Não sei ao certo como é a situação do Brasil. Observando à distância, posso dizer que Bolsonaro não ajudará a lidar com estes traumas, e a Argentina sempre conseguiu estar à frente neste processo – eles se confrontaram a estas questões ainda nos anos 1980, embora tenham oscilado desde então. Nossos países têm uma democracia instável. Precisamos cuidar da memória nacional, e assumir responsabilidade por ela. Esta memória não pode servir apenas às zonas eleitorais.
Você tem muitos atores chilenos no filme, mas também Mercedes Morán, da Argentina, Caio Blat, do Brasil, María Valverde, da Espanha. Como trabalhou com eles para representar o Chile de décadas atrás?
Eu queria trabalhar com alguns deles antes, porque conhecia bem o trabalho que fazem. Nós já tínhamos a coprodução com o Brasil, então essas questões vieram à mente na hora de escolher o elenco. Acabei de fazer uma série para a Amazon, filmada na Colômbia, com atores colombianos. Eu queria ter um grupo de artistas diferentes, neste caso. Queria muito trabalhar com a Mercedes, e fizemos um trabalho imenso para transformá-la numa chilena. O mesmo ocorreu com María Valverde. Foi bem complicado! Mas isso era importante. O Chile tem uma comunidade cinematográfica pequena, e eu queria ter a experiência de trabalhar com pessoas novas. Nós temos excelentes atores e atrizes no Chile, mas queria ter contato com estas outras pessoas também. Foi um grande desafio. Acabei de filmar esta série baseada em Gabriel García Marquez, e tenho uma visão diferente daquela dos colombianos. Através deles, eu compreendi a real importância do projeto. Foi o oposto deste caso, em Aranha. Eu aprendi muito com Caio, Mercedes e María. Tenho muito orgulho da atuação deles. O sotaque chileno é bastante complexo, mas nenhum chileno reclamou do resultado.
Você tem reconstruído o passado do país em vários filmes. O que o atrai nestas reconstituições de fatos?
O presente só pode ser compreendido pelo passado. As sombras da ditadura influenciam nossas relações pessoais e a organização dos governos. Não tinha uma tese muito desenvolvida a respeito, foi minha necessidade intuitiva. Enquanto o país vive esta transição, eu também faço minhas transições como artista – nunca pensei que trabalharia numa série sobre a Colômbia, por exemplo. Uma das coisas que me marcou quanto tinha 15, 16 anos, foi assistir a A Batalha do Chile (1975), de Patrício Guzmán. Ele mostra a vida e a expressão das pessoas nas ruas. Sempre tento captar isso, porque nunca vamos conseguir captar a vida real. Bom, Machuca (2004) teve alguns momentos que chegaram muito perto de uma cópia da vida real. Eu tento capturar a vida, mais do que as ideias. Enquanto cineasta, e também como espectador, isso é o mais importante: às vezes o filme não é excelente, mas ele tem vida. É impossível competir com a realidade. Dou muito valor a isso, e tenho trabalhado sempre com o mesmo diretor de arte, Rodrigo Bazaes, que também é roteirista e diretor. Nós gostamos muito desta recriação, para atribuir profundidade e complexidade aos cenários.
Aranha é um filme explicitamente político, mas como isso se equilibra com os relacionamentos amorosos?
Nosso principal desafio era atingir este equilíbrio. Tentamos fazer com que passado e presente fossem conectados, assim como o privado e o político. O principal, para mim, é mostrar como nossa vida particular invade a vida pública. Por isso mostro esses personagens que são avós carinhosos, mas fizeram coisas horríveis no passado. É horrível para quem é próximo deles. Muito da impunidade no Chile decorre disto: você conhece as pessoas, e hoje são pessoas de família, jogamos futebol como eles, encontramos nos parques. Por isso, quis dar bastante atenção aos aspectos privados.
Como enxerga o lançamento do filme, ainda durante a pandemia?
Lançar o filme agora é um verdadeiro presente. Para mim, pelo menos, a pandemia tem sido um momento em que pude ficar com a minha família. Sinto falta das relações sociais, e não falo apenas dos amigos, e sim das pessoas nas ruas, dos rostos dos anônimos. Eu jamais poderia imaginar que isso aconteceria. Por isso, conseguir lançar Aranha nestas circunstâncias é um presente. Este não é o melhor momento para se lançar um filme, mas estamos dando o nosso melhor. Talvez a nossa relação com o cinema mude para sempre, não sabemos. A grande dúvida agora, para todos, é saber como nossa vida continuará depois disso.