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Argentina, 1985 (2022) passou recentemente pelo Festival do Rio como um de seus principais destaques e estreia nessa sexta, 21 de outubro, na plataforma de streaming da Prime Video. A trama aborda o histórico Julgamento das Juntas, realizado na Argentina, pioneiro no que diz respeito a um tribunal civil ponderar sobre os crimes de militares que ocuparam o poder. Em meio ao processo de redemocratização argentina, o promotor Julio Strassera (Ricardo Darín) tem a árdua missão de apresentar centenas de acusações a membros dos altos escalões das Forças Armadas. E duas figuras desempenham funções fundamentais para o sucesso do promotor. O primeiro deles é seu jovem assistente, Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), criado numa família de militares e incansável em sua missão de propiciar que o passado revisto não permita um futuro de atrocidades. Já Silvia (Alejandra Flechner) é a esposa do advogado que passa a se tornar uma das pessoas mais visadas e em risco da Argentina, aquela que sofreu na pele os horrores da ditadura e serve como um porto seguro vital. Peter e Alejandra estiveram no Rio de Janeiro para acompanhar as sessões de Argentina, 1985 no Festival do Rio. A Amazon Studios convidou o Papo de Cinema para uma entrevista exclusiva com ambos num hotel luxuoso da Zona Sul da Cidade Maravilhosa. E o resultado desse bate-papo sobre cinema, passado, presente e futuro você confere logo abaixo.

 

O que mais atraiu vocês durante a primeira leitura do roteiro?
Peter Lanzani: Bom, evidentemente a história que é muito potente. O roteiro estava escrito com uma precisão impressionante. Outro ponto que me chamou a atenção foi a perspectiva, ou seja, de que ponto de vista essa história é contada. Acredito que isso seja o mais interessante. É um filme que fala de humanidade, que tocas as emoções, seja qual for o pensamento político que você tenha. Ele é feito de seres humanos e por isso acredito que funciona. Pelo menos a mim aconteceu isso quando li o roteiro pela primeira vez. Saí caminhando pelo meu bairro para assimilar toda a informação que havia recebido. Gosto desse cinema que emociona. Aliás, era uma oportunidade de trabalhar com Santiago, um diretor que admiro, e também de contracenar com Ricardo, um mestre da atuação.
Alejandra Flechner: O roteiro me pareceu alucinante quando o li pela primeira vez. Acredito que esse roteiro seja um pilar absoluto do filme que fizemos. Sou mais velha do que Peter, vivi a ditadura e esse período de retorno da democracia na Argentina sendo muito jovem. Então, de certa maneira, o filme contava algo da minha vida. Esse roteiro abriu uma quantidade enorme de comportas na minha cabeça, de memórias, de coisas que vivi em minha própria carne. Isso era um extra para me interessar. Ademais, era importante contar essa história. E havia uma noção muito cinematográfica nesse julgamento das Juntas. Não estamos diante de um documentário, mas de uma ficção que se utiliza da realidade. É um objeto cinematográfico e como tal é formidável, pois conta essa história com um trabalho de investigação com tanto de realidade, além de lançar perguntas que o conectam com a atualidade.

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Alejandra Flechner e Peter Lanzani – Foto/Roberto Filho

O filme tem um subtexto geracional muito forte, levando à ideia de uma nova Argentina que pede passagem a uma velha Argentina. Gostaria que vocês falasse um pouco dessa lógica geracional.
Peter:
Acredito que esse filme fale especialmente às novas gerações, as convidando a aprender sobre a História, até mesmo porque atualmente há muita desinformação. É preciso ratificar certos conceitos. Meu personagem representa essa nova maneira de pensar fundamental à transição. Ele pleiteia uma nova forma de encarar. Quando o julgamento estava acontecendo, apenas alguns minutos eram televisionados e sem som. A desinformação era imensa, exatamente como acontece nas ditaduras militares. É por isso que hoje talvez seja mais difícil chegarmos a tal extremo, pois a forma como a informação circula é diferente. Acredito que uma das missões de meu personagem é não somente convencer classe média, mas informá-la sobre o que havia passado e o que estava realmente acontecendo naquele julgamento.
Alejandra: Realmente, na época, o julgamento podia ser escutado na rádio, mas não na televisão. Nesse momento felizmente não havia mais sequestros, torturas e roubos de bebês. Mas, as pressões continuavam muito grandes, até porque os militares gozavam de poder. Havia temor em torno do julgamento, se ele seria finalizado. Minha personagem é a companheira desse promotor que estava mais próximo de se aposentar do que de se transformar naquilo que acabou se transformando. O momento era muito complexo, de tensões constantes, até porque os militares estavam soltos. Existia uma dúvida sobre avançar ou não, se aquilo tudo não passava de uma farsa. Esta mulher acompanha seu marido nessas áreas de luz e sombra, em seus medos e temores humanos que ele poderia ter.

Confesso que fiquei com inveja de vocês, pois a Argentina lida muito melhor do que o Brasil com essa história sangrenta da ditadura militar. Seu filme  fala do passado mas que, de certa forma, também se comunica com o nosso presente de ascensão do autoritarismo, não é mesmo?
Alejandra:
Acredito que o filme realmente dialoga com o presente. Um trecho do passado iluminando o presente e o nosso presente ajudando iluminar de outros modos o passado. Sinto que algo acontece com esse filme que o faz transcender sua natureza como documento histórico, especialmente por conta dessa capacidade de dialogar com o nosso momento atual tão duro e complexo, repleto de discursos de ódio. E esses discursos são organizados para cancelar, para suprimir o outro ou algum grupo social contrário. Isso que estamos vivendo no mundo é horroroso. É doloroso testemunhar coisas que julgávamos superadas. Há algo no filme que nos permite revisar os pactos sociais e ficar alertas para coisas que nunca mais deveriam acontecer. Nunca mais uma ditadura militar, nunca mais torturas, nunca mais um terrorismo de Estado, nunca mais um Estado que elimina civis. Isso é inaceitável. Oxalá esse filme possa se conectar com os jovens. Oxalá a arte traga luz e dê essa contribuição ao mundo que vivemos. Oxalá.
Peter: Não tenho muito a acrescentar, a não ser reafirmar essa crença no poder da arte.

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E vocês sabem que o Brasil adora Ricardo Darín. Como foi contracenar com ele?
Peter:
Quem não adora o Ricardo? Trabalhar com ele foi algo alucinante, até porque cresci assistindo aos seus filmes. Ter a possibilidade de contracenar com ele me fez crescer muito como ator. Ele me deu inúmeras ferramentas sem querer me ensinar nada, sem se transformar numa figura professoral ao longo do processo. Além do mais, conheci uma pessoa generosa, companheira e extremamente profissional. Ricardo sempre foi carinhoso comigo.
Alejandra: Além de um grande ator, Ricardo é uma pessoa absolutamente sensível e comprometida com seu trabalho. Nós somos parecidos nesse sentido. Vivemos do nosso ofício e genuinamente ele nos convoca a um lugar repleto de desejos e conexões. Nesse sentido, Ricardo estava bastante envolvido nesse projeto. O cinema é um trabalho essencialmente coletivo. O teatro também é, mas no cinema o coletivo é mais vital. E Ricardo nunca exerceu uma posição superior hierarquicamente falando por ser protagonista e reconhecido mundo afora como um dos grandes atores de sua geração. Trabalhamos mano a mano, dialogando e chegando a um resultado comum.

Entrevista feita presencialmente durante o Festival do Rio, em outubro de 2022.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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