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Neste 2020 transtornado por uma das maiores crises sanitárias da nossa história recente, uma das grandes notícias no ramo cinematográfico foi a realização do 1ª Festival de Cinema Russo no Brasil. Organizado pela Roskino, entidade estatal encarregada da promoção da cultura cinematográfica da Rússia, o evento trouxe ao nosso país, em âmbito online, com exibições na plataforma Spcine Play, oito longas-metragens que nos possibilitaram um contato mais íntimo com o cinema russo contemporâneo. E, sem dúvida, um dos nomes que sobressaíram nesse recorte foi o da jovem realizadora Nataliya Meshchaninova. Com menos de 40 anos – nasceu em 1982 – ela já se tornou uma das principais referências de um país que tem uma tradição cinematográfica enorme. Roteirista de Arritmia (2017) e roteirista/diretora de O Coração do Mundo (2018), ela nos concedeu gentilmente esta entrevista por e-mail para que pudéssemos ter um contato mais próximo ainda com seu processo criativo, além de acessar sua forma de conceber cenas e personagens. Confira, com exclusividade, a nossa entrevista com a cineasta russa Nataliya Meshchaninova.

 

Vamos começar falando de seu trabalho como roteirista em Arritmia. Mesmo que você não o dirija, o filme guarda semelhanças com O Coração do Mundo. Seus roteiros já são bastante visuais, no sentido de conterem uma possibilidade de pré-visualizar as imagens?
Não acho que Arritmia e O Coração do Mundo tenham muito em comum, além do visual. O dado cinematográfico sempre tem a ver com a direção de fotografia. Acredito que O Coração do Mundo possui uma história contada e filmada de forma bem diferente de Arritmia. Acho que devo responder a sua pergunta sobre o estilo visual que está incluído no roteiro. Nesse sentido, talvez você esteja certo, porque sempre tento dar a descrição máxima possível do espaço em que a ação está ocorrendo. Não exatamente do ponto de vista cinematográfico. Nunca menciono nada como o tipo do enquadramento. Mas, sim, tendo a fornecer uma imagem completa. Não é como se meus personagens existissem no vácuo, eles estão em ambientes específicos. Às vezes, posso até descrever as flores que estão lá ou algo sensual. Por exemplo, o que um personagem está experimentando no corpo enquanto olha para algo, ou ao sentir cheiros … É uma orientação ao diretor entender que tipo de impressão a cena deve causar no público.

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Há em Arritmia um retrato ácido da burocracia estatal, paralelo à história de um amor prestes a acabar. Essa dimensão estava lá desde o começo ou foi se impondo à medida que você mergulhou nessa realidade?
O filme não foi planejado como socialmente agudo. No início, apenas queríamos que fosse uma história de duas pessoas passando por um divórcio, mas, ainda morando juntas. Então, eles lutam e fazem as pazes lá. No início, queríamos que fosse uma comédia romântica, mas depois decidimos que ambos os personagens deveriam ser médicos, o que causou uma mudança no gênero do roteiro. Estávamos procurando materiais relacionados na internet, lendo vários fóruns profissionais, assistindo a vídeos do YouTube. A propósito, foi ali que descobrimos a série documental chamada The Ambulance. Ela foi filmada em Ekaterinburg e tem dezenas de episódios. Basicamente, cada parte é um documentário sobre determinada chamada de emergência, quando os cinegrafistas locais apenas seguem a equipe médica em seus trabalhos. Também conhecemos pessoalmente dois médicos de emergência, um da cidade de Yuliyanovsk e o outro de Moscou. Mais tarde, nosso produtor executivo também nos encontrou um médico para servir de consultor. Então, conseguimos ter um grupo bem grande de correspondentes. Nós simplesmente não podíamos ignorar a realidade de suas vidas e a verdade sobre nossa reforma médica. Não podíamos nos dar ao luxo de evitar isso. Porque tem um efeito forte nessas pessoas, a cada dia, a cada minuto.

 

Tanto em Arritmia quanto em O Coração do Mundo você olha para um universo masculino em ebulição e propenso ao declínio. De onde vem esse seu desejo de expressar-se a partir de uma perspectiva masculina?
Apenas foi assim que aconteceu. Meu filme de estreia, The Mill Hope, era sobre uma mulher. Em Arritmia o personagem principal é homem. Acho que foi fácil retratá-lo porque entendo bem como uma pessoa pode se identificar tanto com sua profissão ao ponto dela se tornar parte de sua personalidade. Já quanto a O Coração do Mundo, o motivo da história ser contada de uma perspectiva masculina foi que escrevi o roteiro junto com o ator principal, Stepan Devonin. Mas, não quero que seja apenas algo do tipo “visão masculina vs feminina”. Se você tiver a chance de ler Três Minutos de Silêncio, novo roteiro que estou co-escrevendo com Boris Khlebnikov, não tem nenhuma personagem feminina. É uma história de dois calouros que entram num barco de pesca, onde todos vivem como uma máfia de piratas. Foi muito emocionante escrever, pensar e tentar entender o mundo desses homens trancados num pequeno espaço com 15 outros homens. E, pode ser, quando você começa a analisar novamente, como e por que ela escreve sobre os homens? Qual é a razão? Não há razão. Meu próximo roteiro de longa-metragem será sobre o universo feminino. E assim por diante. Enfim, é trabalho dos críticos analisar essas coisas. A propósito, atualmente estou trabalhando em vários projetos sobre juventude. E daí? Todo mundo vai perguntar por que Meshchaninova se voltou para esse tópico? É apenas o caminho. Aconteceu. Simplesmente me interessei.

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Cena de “Arritmia”

Em ambos os filmes, atualmente em cartaz no Brasil no 1º Festival de Cinema Russo, há muito não verbalizado, os personagens não conseguem expressar-se e se resolverem por meio do diálogo. Você acredita que essa seja um dos grandes males contemporâneos?
Não saber como resolver conflitos por meio de conversas é algo bastante antigo, não me parece um fenômeno estritamente contemporâneo. Sempre dizemos coisas que não deveríamos. É um problema constante, não apenas moderno. É preciso que o ressentimento e o ego não prevaleçam sobre a vontade de fazer/manter a paz. Mas, foi assim em qualquer época, pelo menos na Rússia. As pessoas não têm essa habilidade. Ficar calado também não é um problema unicamente moderno. É um problema eterno. Os personagens de Arritmia e O Coração do Mundo são simplesmente incapazes de consertar as coisas, sobretudo porque completamente tomados pelas emoções. Quanto mais fortes e dolorosas são as emoções, menos podemos dialogar sobre elas e/ou agir de maneira eficaz. Todos tememos ser honestos e abertos com nós mesmos, em primeiro lugar. E os personagens em minhas obras têm medo de um contato direto com eles próprios e com as outras pessoas. É apenas uma parte da condição humana.

 

A sua direção em O Coração do Mundo valoriza muito o gesto, as revelações sutis, deixando o mais importante para ser descoberto pelo espectador atento aos detalhes. O cinema mais direto, falado, esmiuçado, explicado não te desperta atenção como esse calcado em sutilezas?
Não sou fã de objetividade no cinema, das narrativas frontais. Tento fazer meio que um contorno fora disso e dizer as coisas nas entrelinhas a fim de atingir alguma profundidade. Pode ser tem isso tenha a ver com minha experiência no documentário. Gosto quando o personagem se apresenta como um mistério. A maioria das situações em nossa a vida é multidimensional e a própria vida não é uma coisa linear ou mesmo simples.

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Cena de “O Coração do Mundo”

Você já escreveu O Coração do Mundo pensando no seu marido Stepan Devonin como protagonista?
Stepan Devonin não é apenas meu marido, mas também um bom amigo e co-roteirista. Sabíamos desde o início que ele seria Egor. Nós meio que construímos todo o personagem em torno de sua personalidade. Stepan colocou muito da própria infância ali. Alguns detalhes específicos são impossíveis de inventar propositalmente … por exemplo, a cena em que as crianças se sentam, com as bundas nuas, no balde cheio de pintinhos… era assim que ele brincava quando criança. E toda a conexão com os cachorros e os demais animais domésticos, tudo vem de sua experiência pessoal. Então, estávamos criando a história juntos para ele posteriormente a incorporar na tela. E o personagem também era meio arranjado em torno de seus traços pessoais e reações emocionais. Egor é meio psicótico, não se sente confortável em sua própria pele. Quero dizer, o personagem, claro, é muito mais instável que Stepan, mas Stepan entende essa mentalidade. Então, gastamos quase um ano trabalhando. Além disso, Stepan estudou veterinária e desistiu. Ele não teve de aprender a agir como veterinário. Stepan é quem cuida dos nossos cachorros.

 

O cinema está repleto de filmes que colocam humanos em contato com a natureza como que para, a partir disso, revelar suas dores mais íntimas. Há algum título específico dessa tradição que lhe serviu como inspiração?
O Morro dos Ventos Uivantes, de Andrea Arnold.

 

Em última instância, O Coração do Mundo fala de um sujeito disposto às últimas consequências para proteger o espaço no qual se sente acolhido, mesmo que isso signifique deixar aflorar uma violência desproporcional e incontida, correto?
Em algum ponto, sim. Acredito que o filme dê ao público a chance de ler várias mensagens contidas nos diversos níveis da trama. Por exemplo, você certamente pode aderir à camada mais superficial e determinar coisas como: “a diretora quer dizer que viver numa gaiola é melhor do que viver livre”, ou “os animais são melhores que os humanos”. Mas, é importante sentir os personagens principais (não apenas Egor). A partir disso você pode realmente entender sobre o que é a história. Nosso filme desafia o público a ir mais fundo. Se eu tivesse que falar sobre ele numa frase, seria “um filme sobre como encontrar um lar a todas as crianças abandonadas do mundo”.

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Como você definiria o cinema russo contemporâneo?
Não gostaria de fazer nenhum julgamento sobre o cinema russo atual. Como diretora, ajo sem pensar muito nisso, apenas faço o que gosto. Tenho sorte de ter uma chance disso.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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