Marina Willer é descendente direta de judeus tchecos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial. Brasileira de nascimento, radicada há muito em Londres, ela é uma designer mundialmente reconhecida, inclusive sócia da Pentagram, a maior consultoria global da área, e agora estreia dirigindo cinema com Árvores Vermelhas. O foco desse seu documentário repleto de poesia é exatamente a experiência do pai e do avô, que testemunharam a sanha nazista em contato com toda sorte de atrocidades na Europa, antes de migrarem ao Brasil, com o fim do conflito. Para falar de seu debute, que estreou no Festival de Cannes de 2017, já disponível na Netflix em boa parte dos territórios – no Brasil deve estrear no serviço de streaming em maio –, Marina nos ligou diretamente da capital inglesa, esbanjando simpatia e avidez por debater sua obra lírica. Este Papo de Cinema exclusivo você confere agora.
O filme fala de sobrevivência, inclusive das memórias, privilegiando o visual, criando uma beleza que busca o intangível. Como foi essa construção essencialmente imagética?
Sou designer, então meu trabalho é fundamentalmente marcado por imagens, algo que sempre me interessou. Tive o cuidado de pensar tudo antes das filmagens, inclusive os ângulos, até para valorizar certos silêncios. Quis demonstrar respeito. Mesmo que a imagem e a narração provoquem algum êxtase, isso era primordial. Sei que tal construção não é convencional no cinema documental. O Árvores Vermelhas é quase um livro na telona. O desafio era abordar um tema amplamente visitado, de maneiras tão distintas, mas com outra linguagem, para que as pessoas pudessem se interessar. E este é um momento relevante para o resgate, em virtude das questões dos refugiados, das grandes migrações e do crescimento da xenofobia, mesmo sentimentos que levaram aos horrores da Guerra. Desejava que a imagem fosse bonita, mas para dar ao espectador um espaço de participação. A ideia era fazer algo noutro ritmo, propenso à reflexão, oposto à pressa da era digital ou dos filmes hollywoodianos, por exemplo.
No documentário existem vários processos de mimese. Há o ator que empresta a voz às memórias de seu pai; as imagens que ilustram determinadas passagens. Por que essa opção pelas representações?
A ideia não era fazer um documentário típico, mas uma reflexão poética sobre a situação do mundo de hoje, partindo do passado. Por isso há certo distanciamento. Era importante permitir elementos mais evocativos, evidenciar espaços que pudessem ser preenchidos pelo espectador. Disso decorreu a necessidade de um contador de histórias, mais especificamente, aqui, um ator shakespeariano, cuja atuação buscou dar dignidade às vidas perdidas. Tim Pigott-Smith era um intérprete muito respeitado na Inglaterra e ele faleceu logo antes do filme ser lançado, uma verdadeira lástima. Minha ideia era demonstrar o respeito da minha geração para com a anterior. Inclusive, as reentrâncias de meu pai são justamente para evocar a realidade, exatamente nos momentos mais duros e cruéis. A voz dele não floreia a verdade.
Árvores Vermelhas é um documento íntimo e abrangente ao mesmo tempo. Você aprendeu, o realizando, mais sobre a História ou acerca da trajetória de sua própria família?
Não esperava aprender tanto sobre meu pai. Foi realmente um processo bem forte de descoberta. Essa geração sobrevivente do Holocausto tende a se fechar muito. Os remanescentes não gostam de falar do assunto, de lidar novamente com o sentimento de perda, com a dor imensa e certa culpa por ter sobrevivido, enquanto outros tantos não tiveram a mesma sorte. Essa complexidade é difícil. Portanto, o filme foi também um processo de conhecer meu pai, esse homem sempre reservado, que mencionava a guerra do ponto de vista histórico, como se estivesse lendo um livro, evitando episódios mais próximos. Para mim foi um reencontro, de fato, haja vista que ele teve câncer e hoje em dia, sofrendo do Mal de Parkinson, já está bastante debilitado. Descobri muito e fiquei absolutamente tocada.
Houve alguma passagem particularmente dolorosa nesse acesso às memórias familiares?
Nossa família teve muita sorte durante a Guerra, se comparada a tantas outras. Minha intenção não foi glorificar algo ou suscitar pena, tampouco transformar nossa história em exemplo. Quanto mais nos aproximamos, indo ao lugar onde as coisas aconteceram, mais sobressaia a sensação de incompreensão e abismo. Como episódios daquela crueldade puderam acontecer? São experiências que nos aproximam da verdade. É importante conhecer para evitar a reedição de capítulos assim. Nosso filme é uma gota muito pequena no oceano. Mas, acredito que se cada um contar suas histórias teremos esse resgate necessário.
Você acaba falando pouco do Brasil, especialmente da vida por aqui, criando um vácuo entre o passado e o presente europeus. Como se deu esse recorte?
Isso foi uma decisão. A situação do Brasil é muito complexa. Para tentar desvendar isso, somente com outro filme. Nem me sinto preparada para entrar nesses assuntos. A única coisa que tentei dizer é que, apesar de todos os problemas do país, existe muita inspiração no Brasil, especialmente no individuo. Os problemas da nação vêm mais da sociedade, da estrutura política. Esse é meu primeiro longa, ainda estou aprendendo. Meu pai chegou a perguntar por que não falei na nossa vida por aí. O tema não era estritamente minha família, mas algo mais universal, em paralelo ao que acontece hoje no mundo. No Brasil, a vida deles ficou mais normal.
Seu filme já está disponível na Netflix em outros países. Ele chegará ao streaming também aqui, após a carreira comercial nos cinemas?
Meu filme foi produzido e financiado pela Cohen Media Group, a mesma de Visages Villages, da Agnès Varda e do JR. Aliás, me senti muito honrada por estrear no Festival de Cannes ao lado deles. A Cohen Media Group tem um olhar para filmes mais artísticos. Resolveram investir no meu. Eles negociaram com o (Espaço) Itaú para exibição exclusiva nas salas de cinema, mas o longa deve chegar à Netflix brasileira em maio. Embora considere realmente excelente essa janela do streaming, acredito que o Árvores Vermelhas é um filme de tela grande, especialmente por conta das imagens, que foram feitas com muito carinho.
(Entrevista realizada por telefone, numa ponte Londres/Rio de Janeiro, em março de 2018)