Juliana Rojas e Marco Dutra, membros da produtora/coletivo paulista Filmes do Caixote, começaram sua parceria ainda na universidade. Depois de dirigir curtas-metragens, entre eles O Lençol Branco (2004), incluído na mostra Cinéfondation do Festival de Cannes, eles voltaram à Croisette em 2011 para apresentar o seu primeiro longa-metragem, Trabalhar Cansa, na prestigiada seção Um Certo Olhar. Lidando com diversos gêneros cinematográficos, algo não muito comum na produção brasileira, a dupla continua realizando à margem das chamadas tendências mercadológicas, mesmo assim encontrando espaço para, inclusive, comercializar seus filmes, não apenas no território brasileiro. Juliana encabeçou sozinha o musical (premiado) Sinfonia da Necrópole (2014); Marco fez o mesmo, com Quando Eu Era Vivo (2014) e O Silêncio do Céu (2016). As Boas Maneiras (2018), retomada da dinâmica “dirigido a quatro mãos”, é uma história de lobisomem cuja première nacional aconteceu no Festival do Rio 2017. Eles nos atenderam para este Papo de Cinema em meio à correria da divulgação do longa-metragem que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 07. Confira mais este bate-papo.
Vocês geralmente recorrem ao cinema fantástico, não raro mesclando gêneros, como neste filme. O que os leva a trabalhar nessa seara pouco associada à produção brasileira?
Marco: Há um aspecto, que é a nossa atração pela ideia dos gêneros, seja o musical, o horror ou a ficção científica. Cada um deles possui lógica própria, códigos bastante específicos. Crescemos vendo filmes assim, portanto nosso amor pelo cinema passa por esses diversos tipos de abordagem. Não há hierarquias, são simplesmente formas distintas de fazer dramaturgia. O cinema fantástico nos atrai porque propicia trabalhar questões da vida, da experiência humana e social, mas de maneiras alegórica e metafórica. Isso nos permite aproximação de questões como maternidade e abismo de classes, desta vez, de formas ainda mais excitantes.
Sobressai em As Boas Maneiras uma construção atmosférica que sustenta o horror, que o antepara, o oposto de obras que apostam em sustos fáceis. Como se dá essa construção?
Juliana: Para a gente, é sempre muito importante o espaço onde as histórias se dão. Tem uma coisa muito física no trabalho com esses locais, especialmente no sentido de construir tensão em ambientes nem sempre associados aos filmes de terror. Em As Boas Maneiras, por exemplo, fizemos uma sequência num shopping, lugar que, quando cheio, é associado à vida, inclusive por ser bem iluminado. Tentamos filmar esse cenário a fim de que ele ganhasse outra personalidade. Temos interesse em buscar o horror em cenários não tão convencionais. Como fazer um filme de terror na casa de uma milionária rural da atualidade, que mora numa região com apartamentos claros, com muita informação, e igualmente na periferia, no Capão Redondo? Somos guiados por esse tipo de questionamento.
Quais foram os desafios para lidar com os efeitos visuais, principalmente com a impressionante construção do lobisomem-menino?
Marco: Foi um processo bem complexo, sobretudo porque se tratam de efeitos de naturezas distintas. Quando começamos a construir esse universo, vimos que o filme pedia técnicas diversas, a fim de chegarmos onde queríamos. Aqueles horizontes foram pintados à mão pelo Eduardo Schaal, finalizados e aplicados no Brasil. Trabalhamos com duas empresas francesas de efeitos visuais. Uma fez o bebê e as barrigas. A outra ficou responsável pelo CGI. Antes de qualquer coisa, desenvolvemos o conceito do Joel, como seria esse lobisomem criança. Foi feito um bebê animatrônico e um modelo virtual. Miguel Lobo atuou com uma roupa verde e o modelo digital foi criado em cima de sua interpretação. Eram duas empresas com equipes muito grandes para fazer tudo dar certo.
O lobisomem aqui é uma besta, mas frágil pela pouca idade. O que representa para vocês essa dualidade imprescindível?
Juliana: O filme todo está construído sobre dualidades, contrastes e oposições. A própria estrutura, dividida em duas partes com identidades bastante próprias, mas com elementos que se conectam. Em todas as camadas do filme há a presença desses contrastes sociais, raciais, e mesmo sentimentos opostos. A ideia de amor, que pode ser puro, mas também perverso e castrador. Matéria versus alma. Emoção versus razão. Componentes que fizeram as histórias de lobisomem tão presentes em várias culturas. Era importante o fato desse personagem que sofre metamorfose ser um menino com quem pudéssemos nos identificar. Ele está na idade de começar a tomar consciência e ter vontade própria. Além disso, associamos crianças ao conceito de pureza, mas há também uma carga instintiva muito forte nelas.
Outro traço sobressalente é a carga cinéfila que exala dos filmes de vocês. Dá para dizer que as obras de ambos não existiriam sem esse alimento prévio?
Marco: Gostamos muito de filmes, então é natural isso virar inspiração. Mas, de toda forma, nunca usamos referências como, por exemplo, faz o Quentin Tarantino. Não buscamos emular ou evidenciar a inspiração. Nos alimentamos do que vimos. Fazemos o tipo de filme que gostaríamos de assistir. No caso de As Boas Maneiras, compartilhamos com a equipe e o elenco alguns longas-metragens dos quais gostamos, como Sangue de Pantera (1942) e A Morta-Viva (1943), ambos do Jacques Tourneur, para discutir elementos como sugestão, sombra e clima. Também gostamos muito de O Mensageiro do Diabo (1955), pela atmosfera gótica bem especifica. Os primeiros longas da Disney, especialmente Bambi (1942), Dumbo (1941) e Branca de Neve e os Sete Anões (1937), apropriações de contos de fada, também serviram de inspiração.
Juliana, como é colaborar com o Marco?
Trabalhamos juntos desde a faculdade. Quando o conheci, tinha 17 anos. Já temos uma amizade presente em mais da metade da minha vida. E contando (risos). Fomos amadurecendo e crescendo juntos. Gostamos de filme de terror e musical, e essas afinidades nos aproximaram. É uma relação constante, feita de concordâncias e discordâncias. O interessante da nossa colaboração é justamente a existência de diferenças, o que nos obriga a buscar coisas únicas. É bastante estimulante ter com quem discutir, especialmente alguém que você conhece há tempos e te encoraja a fazer coisas aparentemente malucas. Muito bom trabalhar com ideias não convencionais, e nossa parceria permite isso.
Marco, como é colaborar com a Juliana?
É isso aí que ela disse (risos). A parceria acarreta o aprendizado de ouvir o outro. Quando dirigimos sozinhos, a intuição se manifesta de maneira diferente, não necessariamente tão consciente. Quando estamos juntos, ela tem de ser mais consciente, pois precisamos expressar para o outro. Aprendo muito sobre mim e minhas limitações quando trabalho com ela. O fato de sermos homem e mulher é também interessante, pois ajuda a questionar pontos de vista, algo que talvez eu não questionaria se estivesse realizando o filme sozinho.
(Entrevista concedida por telefone, numa ponte São Paulo/Rio de Janeiro, em junho de 2018)
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