Nascido em Blumenau, Santa Catarina, Sylvio Back é um dos mais destacados cineastas brasileiros em atividade. Filho de imigrantes – pai judeu húngaro e mãe alemã – construiu sua obra em cima da história nacional, contestando sempre as versões oficiais e buscando novas leituras e interpretações a partir de fatos polêmicos e muitas vezes esquecidos. Atuando também como escritor e poeta, tem prêmios em festivais como Brasília e Ceará, entre outros, além da APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte. Morando há anos no Rio de Janeiro, ele agora volta seu olhar para um importante episódio da sua terra natal em O Contestado: Restos Mortais, que está sendo lançado em todo o país. O Papo de Cinema conversou com o diretor em sua passagem por Porto Alegre para a estreia do novo trabalho, e falamos sobre o novo filme, sobre as dificuldades e as diretrizes da sua forma de fazer cinema e ainda antecipamos detalhes sobre seus próximos projetos. Confira!
Olá, Sylvio! Bom falar contigo! Vamos começar pelo princípio: de onde surgiu a inspiração para O Contestado: Restos Mortais?
Quando nasce a ideia de um filme é sempre algo nebuloso a posteriori. No entanto, algumas pistas ficaram pelo caminho. Explicando melhor: nesses quarenta anos que separam o filme de ficção A Guerra dos Pelados (1971) de agora, com a fruição nacional do gênero documental, O Contestado: Restos Mortais parte de uma sensação de lesa pátria que nunca deixou de me tentar, não apenas como cidadão, mas por ser um cineasta cuja obra é seduzida pela ânsia de reverter as falácias e o esquecimento da história oficial. O quão submersos, ignorados, omitidos, destorcidos e minimizados permanecem os fatos e os atos dessa verdadeira guerra civil no hinterland de Santa Catarina que foi a Guerra do Contestado? À época de sua eclosão, primeira década do século passado, na falta de melhor compreensão do inusitado levante e até pela proximidade histórica, logo se alcunhou o Contestado de “Canudos do Sul”. Claro, há semelhanças com a tragédia de Vaza Barris, principalmente, na crença da chegada de um Messias, no fanatismo dos caboclos e na feroz repressão militar, mas seu espectro místico, bélico e geopolítico, socioeconômico e demográfico extravasa em envergadura, recorrência e reflexos nas décadas seguintes (e até hoje), a epopeia de Antônio Conselheiro. Voltei ao tema talvez movido pelo desafio que tento responder em minha obra e por onde trafego impunemente, porque, afinal, qual a diferença entre a realidade bruta e o imaginário contemporâneo e sobrevivente depois de um e outro transformados em cinema? Nesse retomada do tema sob outro registro, vali-me como inspiração o substrato mítico e mitológico que cercava os monges João e José Maria (inspiradores do movimento, o primeiro, pacifista, o segundo, com vocação guerrilheira) e seus seguidores, cuja devoção espiritual era moeda corrente entre eles. Além de rezarem pela ressurreição de “são” José Maria, alçado à condição de santo depois de morrer desafiando a polícia militar do Paraná no combate do Irani (1912), os caboclos começaram a acreditar fanaticamente na vinda de um “exército encantado”, liderado por São Sebastião, para tirá-los da pobreza. E, igualmente, para enfrentar o “polvo” da modernidade, como alcunhavam a chegada do capitalismo à região através de uma estrada de ferro e de uma serraria multinacionais, que se instalava no planalto de Santa Catarina com todo ímpeto, expulsando-os de suas terras e transformando-os em operários ou, no caso da maioria, entregues à própria sorte, rima terrível para morte, seu único futuro. Ainda na fase das pesquisas, falando com o historiador Euclides Philippi, por sinal já falecido (estava com mais de 90 anos), expus que pretendia investir em médiuns para “ouvir” a história oculta, não-presencial de caboclos e soldados envolvidos na Guerra do Contestado. Sendo ele próprio espírita, lascou à queima roupa e em tom solene: “O senhor é espírita?” Mesmo pego de surpresa, consegui responder na lata: “Sou cineasta!” Ele abriu um lindo sorriso que, aliás, pode ser visto no filme em várias cenas, contando suas incursões à galáxia da mediunidade imperante entre as “meninas-virgens” que lideravam os fanáticos do Contestado.
O filme se apresenta no trailer como dono de uma proposta muito diferenciada. Isso se realiza através de um viés estético ou também na elaboração do conteúdo?
Para o bem e para o mal, o que eu imaginava que jamais fosse acontecer, aconteceu: A Guerra dos Pelados e este O Contestado: Restos Mortais, ambos parecem filmes feitos por dois cineastas diametralmente opostos. Não apenas quanto à narrativa e realização cinemáticas, mas em todos os sentidos: da apreensão crítica da sua linguagem, que ensejou uma estética supra-real, ao sentido político-ideológico do conteúdo; do questionamento existencial às mais pertinentes incursões filosóficas e morais que sacudiram o país e o mundo nas últimas décadas. Como você sabe, pois conhece minha obra, meu cinema tem se caracterizado pelo desmonte de tabus, mitos e utopias da história do Brasil, seja tematizando o conluio do nazismo com o integralismo (Aleluia, Gretchen, 1976); a evangelização autoritária dos guaranis nas missões jesuíticas do Cone Sul (República Guarani, 1981); o genocídio da Guerra do Paraguai (Guerra do Brasil, 1987); a tragicomédia da presença da FEB na II Guerra Mundial (Rádio Auriverde, 1990); seja denunciando a militarização do índio brasileiro (Yndio do Brasil, 1995), revelando a magnitude do criticado maior poeta negro da língua portuguesa, o catarinense Cruz e Sousa (Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro, 1998); ou seja confrontando e colocando sob suspeita as próprias convicções e certezas politico-ideológicas de toda uma vida e carreira. Para tanto busquei formatar com O Contestado: Restos Mortais uma debate com a ficção de A Guerra dos Pelados, lançando mão de uma narrativa que chamaria de insólita: a inserção do depoimento de médiuns em transe. Um discurso imagético que fosse ao âmago dessa história insepulta que o Brasil precisa homenagear com as merecidas exéquias morais. Assim, por vias transversas e transformando o invisível e o indizível em visibilidade e oralidade, frequentei cinematograficamente um pretérito mágico na pele de personagens que poderiam ter existido. O transe, como uma insondável camada do inconsciente coletivo e da história do homem, por isso mesmo matéria prima de altas indagações no campo da física quântica (a matéria perece, mas a consciência jamais desapareceria!), para mim, é a mais pura e límpida poesia. Não sou espírita, nem cientista, sou poeta. Nada no transe é real ali, tudo imaginação e imaginário, um salto no escuro na invisibilidade de fatos e feitos primevos, eu diria, como se prestidigitação fora rumo ao mais denso dos mistérios da alma humana! Em O Contestado: Restos Mortais a aposta é nessa direção, imiscuir-se, resgatando através da palavra, pela sua verbalização cifrada e entrecortada pela fluidez do tempo e do espaço, no que foi esquecido e no que é preciso lembrar.
O Contestado já estreou em algumas cidades do país. Como o público tem recebido este novo trabalho?
Com esta estreia gaúcha, prestigiosamente em Porto Alegre e Novo Hamburgo, também comemoramos o sucesso dos lançamentos em Florianópolis e Curitiba, já em sua terceira semana em cartaz. Dia 23 próximo. simultâneo, O Contestado: Restos Mortais estreia no eixo Rio-São Paulo dentro do mesmo circuito Espaço Itaú de Cinema. As próximas telas previstas para o filme são Brasília, Belo Horizonte e Salvador.
O nome Sylvio Back é uma marca do cinema nacional, um dos diretores mais consagrados do nosso país. Como é lidar com essa responsabilidade e com a expectativa do público e da crítica ao lançar cada novo filme?
Antes que tudo, muito obrigado pelos seus mimos verbais! Não mereço tanto, sério! O que posso lhe afiançar é que cada filme, cada lançamento, uma nova emoção, novo frisson, novas expectativas de público e crítica. Sempre como se fosse o primeiro filme! Na verdade, o melhor de tudo é ver faiscando na tela, epifanias e intuições audiovisuais com as quais você sonha e convive às vezes por muitos anos. E, agora, para quem investe num cinema na contramão da história oficial, em temas polêmicos e esquecidos, e procura uma linguagem que tanto homenageie a inteligência do público quanto o próprio cinema, estou preparado até para os elogios…
Qual o atual cenário da produção cinematográfica hoje em Santa Catarina?
Desculpe não poder lhe responder com dados atualizados sobre o atual cinema em Santa Catarina. É que a produção de O Contestado: Restos Mortais foi toda formatada a partir do Rio de Janeiro, onde moro há 26 anos, depois de ter vivido 30 anos em Curitiba que, aliás, me deu regra e compasso para realizar a maior parte da minha filmografia, constituída de 38 longas, médias e curtas-metragens. Isso, sem falar dos 21 livros publicados, 10 roteiros e sete livros de poemas. Por sinal, sobre o 38o. filme, respondo na próxima pergunta. As pesquisas de campo e as filmagens no centro-oeste de Santa Catarina se estenderam por mais de três anos; filmamos mais de sessenta horas, só com os médiuns foram dezessete horas. Tanto é que a montagem e a edição levaram quatorze meses. Como odeio miséria tecnológica (o cinema nasceu com a luz elétrica), e como só a posteridade poderá carimbar a sobrevida ética e estética de uma obra, este O Contestado: Restos Mortais, todo gravado em digital, prima por uma invejável excelência técnica. Sou um perfeccionista.
Quais seus próximos projetos?
Acabo de concluir o docudrama (misto de ficção & documentário) O Universo Graciliano, um longa-metragem que vai no encalço de sombras, rastros e escombros memoriais sobre e em torno do genial escritor alagoano, Graciliano Ramos (1892-1953). Seu lançamento nacional está previsto, inclusive em Porto Alegre, para março de 2013, coincidindo com os sessenta anos de sua morte no Rio de Janeiro. A ideia de fazer esse filme nasceu, justamente, durante a pesquisas e a escritura do roteiro de A Angústia, baseado no romance Angústia, de Graciliano, um projeto que venho acarinhando em segredo há décadas. E, agora, devidamente habilitado na ANCINE, CVM e nas leis do Audiovisual, planejo suas filmagens para o segundo semestre do próximo ano. A propósito de O Universo Graciliano: trata-se do primeiro filme sobre a vida, obra e morte de Graciliano, cujas filmagens foram realizadas em Maceió, no Agreste alagoano e no Rio de Janeiro.
(Entrevista realizada em Porto Alegre em 07 de novembro de 2012)