Não é de hoje que Marco Ricca ocupa um espaço privilegiado na cena brasileira. E esse destaque, mais que merecido, é fruto das diversas personas construídas, seja no teatro, na televisão ou no cinema, que, então, comprovam seu talento e versatilidade. Ricca é paulistano, acostumado à correria da metrópole. Quando estreou na Rede Globo, em 1993, na novela Renascer, portanto, foi interpretando um tipo interiorano, distante de suas origens. José Augusto, um dos quatro filhos de José Inocêncio (personagem de Antônio Fagundes), o colocou na ordem do dia da teledramaturgia. Porém, ele já vinha trilhando um caminho sólido no teatro e, concomitante ao sucesso nas telinhas, dava seus primeiros passos nas telonas. Ricca tanto se apaixonou pelo cinema que passou a dirigir filmes, expressando por trás das câmeras a sua visão sensível de mundo. No Festival de Gramado deste ano, ele esteve presente com dois filmes. Em Bio (2017) interpretando um psicanalista, e em As Duas Irenes (2017) vivendo um pai de família. Por este papel, aliás, saiu consagrado da Serra Gaúcha, com o Kikito de Melhor Ator Coadjuvante. E nós, claro, conversamos com o ator/diretor. Confira este bate-papo exclusivo.
Encontrei similaridades entre o seu personagem do Canastra Suja e este do As Duas Irenes. Ambos são pais de presença forte, não é?
No Canastra Suja o pai é muito mais presente. Já no As Duas Irenes essa presença é quase simbólica. Aquele cara do filme do Caio Sóh quer manter a família, ter só aquela família. Este aqui tem duas famílias, ele consegue sustentar isso até determinado ponto da trama. No Canastra Suja o pai é um cara perturbado, alcoólatra, mas tenta o tempo inteiro se recuperar em prol justamente da família, busca recuperar ela de uma dinâmica absolutamente disfuncional. Ele ama aquela mulher do jeito dele, que é tosco, conservador. Esta aí, talvez isso estabeleça uma ponte entre os personagens.
São esses personagens familiares, partes de um elenco conjunto, que têm te atraído ultimamente?
Adoro. A dramaturgia mundial, cinematográfica ou não, é formada, desde as tragédias gregas, por questões familiares, pelas doenças familiares. Então, não tem jeito. A gente está sempre esbarrando nisso, por mais que possamos falar de grandes problemas, existe uma questão particular, do micro. Gosto de fazer esse tipo de filme pequeno, em todos os sentidos. Pois acabamos virando praticamente um grupo de teatro, unificado. Fico muito feliz de receber convites de jovens diretores, estou dando preferência a eles, sim. Não que eu não queira filmar com os nossos grandes mestres, inclusive já trabalhei com alguns.
Aliás, você fez há pouco O Fim e os Meios, do Murilo Salles…
Que é um gênio. Quero filmar muito com ele, mas realmente estou gostando muito de colaborar com a nova geração. Esses encontros estão reformulando a minha forma de pensar. Depois de muito tempo trabalhando com isso, a gente tende a se reproduzir. E a isso eu prefiro a morte (risos).
E esse desafio de construir um personagem com o mínimo possível, um homem que fala pouco, que responde de maneira monossilábica?
Isso é coisa do diretor. Ele conta história e ajuda a gente a contar a história. Um bom diretor pede o mínimo. Não precisa expressar tudo. É como acontece na vida, nas nossas famílias. Às vezes com um mero olhar as pessoas já sabem o que nós queremos. A gente tem muito uma cultura da novela, e isso não é uma crítica ruim, mas esse tipo de dramaturgia é calcado na palavra. Se o diretor é bom, está lá para captar, para nos ajudar a contar com pouco.
Parece que vocês combinaram, pois há pouco conversei com o Fábio Meira (o diretor) e ele disse que te convidou para fazer “um par de botas” e que você levou o personagem a outro patamar (risos)…
Quando li o roteiro, disse: “você não precisa mais do que um par de botas” (risos). O meu personagem é muito simbólico, o ronco dele, às vezes, fala mais do que sua aparição. Mas ele está lá, faz parte dessas meninas, fica ressoando na cabeça delas, das mulheres, e isso, querendo ou não, é narrativa cinematográfica. Esse cara é sensacional. Fábio é um grande diretor, um poeta, não dá para negar. Não sei como será o segundo longa dele, quero que seja ainda melhor, mas, convenhamos, o cara fez um puta filme, que surpreendeu demais.
As Duas Irenes é muito feminino e tem situações bem características do interior. Você acha que esse filme poderia ser contemporâneo, se passar numa grande cidade, ou mesmo ter, ao invés de um pai, uma mãe com duas famílias?
Tudo isso seria possível. Vejo a história mais como o amadurecimento de duas adolescentes. Poderiam ser meninos, sem dúvida. O filme lida muito bem com esse começo de maturidade, aborda como se dá essa passagem quase diária de perspectiva de mundo, as diversas transformações. Na leitura, ele me conquistou pelo fato de ser um filme de formação, mais que propriamente feminista. Mas, é um filme feminino, sem sombra de dúvida. O pai é aquela figura simbólica, própria de num país machista como nosso, com essa coisa de ter duas famílias. Felizmente, o mundo está sendo empurrado pelas mulheres. Somos convidados diariamente a olhar para o mundo de outras formas. Temos uma formação cultural contra a qual precisamos lutar diariamente. Isso é sensacional, sair da zona de conforto. É a mulher se impondo, expressando seus pensamentos. O cinema está cada vez mais rico. Aliás, a sociedade está ficando melhor e, com isso, o cinema fica melhor.
Em Gramado você está em dose dupla, pois também no elenco do Bio. Como foi sua participação do filme do Carlos Gerbase?
Aliás, estava louco para ver o Bio, mas não consegui, infelizmente. É um falso documentário. Quando o Gerbase me convidou, pensei: “que cara maluco” (risos). Estou muito curioso para ver essa maluquice, pois ali há um protagonista oculto. Interpreto o psicanalista. Em dado momento, esse protagonista foi à análise e eu dou depoimento depois sobre ele. Era é uma coisa gostosa e, ao mesmo tempo, difícil de fazer, porque não havia exatamente personagens, todos são arquétipos: o psicanalista, a professora, o amigo. Então, tivemos uma conversa prévia e fomos brincando nessa construção. Fiz até uma brincadeirinha, mas basicamente segui o texto do Gerbase, que é sensacional.
Passados a espera, a polêmica e o lançamento, como vê a sua participação em Chatô: O Rei do Brasil?
Fiquei muito impressionado com o filme. Primeiro, há uma tradição brasileira de filmes históricos, mas sempre com uma forma muito cartesiana. De uma maneira muito lúdica, o Chatô expressa o Brasil, a vida desse cara, mas sem uma obrigação histórica, isso já percebíamos nas filmagens. Quando fechei o livro, muito antes de começar os trabalhos, pensei: “existe aí um excelente personagem”. Fiquei muito surpreso com a condução do Guilherme Fontes, Chatô é um dos grandes filmes que eu vi recentemente, e não falo isso porque estou nele. Acho que ele foi mal lançado, uma pena não ter ido de forma adequada ao cinema, para o povo conseguir assistir. É um filme divertido, dramático, o personagem é interessantíssimo. Eu estava com muito medo, pois foi a minha primeira grande composição. Eu vinha de muitos filmes com um registro menor. Isso foi há 20 anos. Foi um risco. Gostei demais. Inclusive, na sessão, cheguei a esquecer que era eu. Engraçado, pois num momento tão “café com leite” como o que estamos vivendo, surge esse filme que grita. Paulo Betti faz uma figura histórica e icônica, mas a cara dele está ali. Tem aquele glamour da Andréa Beltrão. A Leandrinha (Leandra Leal). Realmente fiquei muito impressionado, tenho muito orgulho de ter feito.
Você tem planos para voltar à direção?
Estou fazendo, em coprodução com a Drama Filmes, do Beto Brant e do Renato Ciasca, uma adaptação do K: Relato de Uma Busca, livro do Bernardo Kucinski. Esse é meu próximo projeto de cinema. Não sei quando vou filmar, mas já estamos em processo de captação, então posso falar. Quando fiz o Cabeça a Prêmio (2009) saí que nem um louco com a bandeja na mão. Agora, quero fazer com calma. A história é muito linda, forte, de um pai e de uma filha, também. Espero conseguir filmar no ano que vem.
(Entrevista concedida ao vivo, no Festival de Gramado, em agosto de 2017)
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