Fábio Meira é um “estreante”. As Duas Irenes (2017), de fato, é seu primeiro longa-metragem. Contudo, a bagagem cinematográfica prévia desse goiano não deixa muito espaço à surpresa quanto ao sucesso que seu debute vem alcançando. A estrada até aqui foi longa, percorrida por ele nas condições de roteirista e diretor de curtas-metragens. Mas, a experiência como assistente de direção de Ruy Guerra, um dos grandes expoentes do Cinema Novo, em O Veneno da Madrugada (2005), é outro capítulo em sua filmografia que merece atenção. Coincidência, ou não, Gabriel García Márquez, autor do original literário no qual Ruy se baseou, atravessou determinantemente o caminho de Fábio em outro momento, como ele nos conta nesta entrevista exclusiva, concedida durante o Festival de Gramado. Aliás, na Serra Gaúcha As Duas Irenes se consagrou com o Prêmio da Crítica de Melhor Filme e os Kikitos de Melhor Roteiro e Melhor Ator Coadjuvante (Marco Ricca). Nada mal para esse jovem cineasta que já havia encantado Berlim com essa história de duas meninas que se encontram em meio a uma situação familiar, no mínimo, singular. Confira o nosso bate-papo inédito com Fábio Meira.
Fábio, como se deu a construção do roteiro de As Duas Irenes?
O roteiro foi construído durante muito tempo. Comecei a escrevê-lo em 2008. Sempre me interessei por deixar um espaço grande para o espectador. Queria que o filme fosse simples, não algo para o circuito alternativo, mas tampouco estritamente para festival. Desejava que ele se comunicasse com diferentes públicos, que, por exemplo, nossos avós pudessem assistir e se emocionar. Ao mesmo tempo, procuro deixar um espaço ao espectador, para ele colocar ali coisas de si mesmo. Tem sido muito interessante a exibição do filme nos festivais. Por exemplo, no México as pessoas agradeciam o fato dele não ter violência. Ontem, aqui em Gramado, uma criança de 7 anos disse que o filme era muito interessante porque não tem ódio. São coisas que nunca nem passaram pela minha cabeça. Fico pensando agora em como a gente está treinando por essa dinâmica da televisão, desses conflitos levados ao expoente máximo. Interesso-me por esse lugar do tom menor, onde cada um aporta com a própria bagagem.
O filme tem doses de inspiração pessoal, correto?
Quando eu estava com 13 anos, minha mãe contou que meu avô tinha uma filha com o mesmo nome de uma tia minha. Isso me impressionou bastante. Mais tarde, fui convidado para fazer um curso em Cuba com o Gabriel García Márquez, o último que deu lá, e essa história me cruzou justo naquele momento especial, em que eu estava diante de um autor que tinha lido muito. Essa história me voltou à cabeça. Decidi que iria investigar aquilo e escrever um roteiro, fazer um filme sobre algo parecido. Então, a inspiração parte de um conto familiar, mas tudo que vem depois é ficção. Minha tia nunca quis conhecer essa outra pessoa que, para ela, nem existia. Porque o nome era só dela.
E como foi a construção, especificamente, da figura enigmática do pai?
Teve a ver um pouco com isso de não explorar os conflitos ao máximo. Há uma camada subterrânea muito forte, exatamente porque não sabemos o que está se passando na cabeça dele. É um universo interior muito forte. Uma das Irenes também fala pouco durante o filme, às vezes nem chega a responder às perguntas. Mas a cabeça dela está fervilhando, a gente vê na expressão da Priscila (Bittencourt) que algo está acontecendo. Isso ocorre também com o pai. Somos capazes de sentir aquele homem. Eu não queria, em momento algum, que aquilo fosse estereotipado. Não queria um ator que passasse uma coisa cafajeste, que ele fosse facilmente julgado pelo espectador. Queria um pai doce, que fugisse do óbvio. Queria que o público pudesse questionar porque ele tem duas mulheres. Quem são elas? Que sociedade é essa? Porque que a menina questiona essa sociedade? São perguntas que eu quis fazer.
E isso te levou a escolher o Marco Ricca, sem dúvida, o ator mais conhecido do elenco?
Com certeza. Primeiro, havia uma coisa importante para mim. Ele precisava ser o único ator amplamente conhecido pelo público. Ele tem poucas cenas, embora seja muito importante. Todavia, o pai não é um personagem tão forte ali, efetivamente dentro do filme. Mas, na verdade, é o pai que gera tudo aquilo. Então, eu precisava de um ator que, ao entrar em cena, já fosse prontamente reconhecido, como qual o público tivesse uma identificação. Fora isso, o Marco é um grande artista, capaz de gerar esse universo interior complexo. No roteiro era muito forte isso do par de botas. O Marco chegou dizendo: “vim aqui fazer um par de botas”. E eu dizia: “você veio aqui fazer um par de botas e um ronco” (risos). Só que ele pegou o personagem e o ampliou com a sua experiência, o seu talento e a sua generosidade.
Já as meninas são novatas, estão começando, mas acabam carregando o filme nas costas. Como você chegou a elas?
Foi um processo longo, de quase dois anos. Testamos 250 meninas. Levamos 20 delas para a oficina de uma semana com a Verônica Veloso, preparadora de elenco e diretora de teatro de São Paulo. Mas, por exemplo, encontrei a Priscila, intérprete da Irene da casa principal, numa escola de artes em Goiânia. Ela estava na escada, mencionei que estávamos tirando fotos para um teste e ela disse? “tio, por favor, quero muito fazer”. É como se ela tivesse me esperando. Quando fez o teste, fiquei impressionado. À noite já estava mostrando para todo mundo, porque a Priscila fez uma coisa fora de série. Ela é brilhante. A Isabela (Torres) encontrei por acaso. Já tinha esgotado o processo em Goiânia. Fui para Brasília, sozinho, de ônibus. Investiguei num site de atores e achei ela igual a Inês Peixoto, a atriz escolhida para interpretar a Neusa. Então, decidi aproveitar a semelhança. Aí me deparo com uma menina incrível, com uma família idem, super talentosa. Curioso, pois há uma inversão na vida real.
Como assim?
A Isabela, que interpreta a avançada, a segura, é super tímida. Já a Priscila é extrovertida, engraçadíssima, faz piada o tempo inteiro (risos).
As Duas Irenes vem tendo uma carreira internacional bem interessante. Como você percebe as diferentes recepções por onde o filme passa?
Tem me surpreendido muito. Em Berlim, tivemos 2500 espectadores em quatro sessões. As pessoas adoraram as meninas. Elas eram reconhecidas no metrô, davam autógrafo no Starbucks, viraram estrelas. Até porque estávamos na Mostra Generation, para um público jovem. Se bem que vários pais vieram depois falar com a gente, também. Isso me impressionou, porque imaginamos que o público alemão é mais frio, mas ele se envolveu. Aí partimos à América Latina, onde o filme funciona muito. Acabei de voltar do Festival de Lima. Os ingressos estavam esgotados e metade das pessoas ficou para o debate, fazendo perguntas incríveis. Essa recepção tão boa me impressiona realmente. E alguém sempre tem uma história para contar relativa a isso de duas famílias.
Então não é uma particularidade brasileira…
De jeito nenhum. Lá em Berlim, por exemplo, demos entrevista para uma rádio italiana e o locutor falou que Vittorio De Sica, o grande diretor italiano, tinha duas famílias. Isso é mundial tem a ver com a estrutura patriarcal das sociedades.
E como foi esse convite para exibir o filme no Festival de Gramado? Qual a importância de estar em Gramado?
Inscrevemos o filme no festival e, por sorte, fomos selecionados. Os curadores gostaram. Foi incrível para a gente. Só íamos estrear em janeiro, por questões de verba e tudo mais. Mas, para aproveitar essa exposição em Gramado, resolvemos adiantar a estreia. Estou muito feliz com isso. O trailer recém-lançado foi bem visualizado, bastante compartilhado. Na fanpage do filme no Facebook tem gente contando histórias parecidas. Acredito que o filme vai dar bastante o que falar. Lá em Guadalajara, uma menina, em meio a sessão de perguntas e respostas, levantou a mão e começou a contar a história dela, semelhante a do filme, para pessoas desconhecidas. Isso é tão bonito. Isso de conseguirmos resolver questões nossas diante de uma obra de arte me interessa muito.
(Entrevista concedida ao vivo, no Festival de Gramado, em agosto de 2017)