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As Filhas do Fogo :: Entrevista exclusiva com Albertina Carri

Publicado por
Marcelo Müller

Nascida em Buenos Aires, capital argentina, a cineasta Albertina Carri se formou roteirista na FUC – Fundación Universidad del Cine. Depois de colaborar com diversos colegas, fez sua estreia na direção com No Quiero Volver a Casa (2000), filme selecionado para os festivais de Roterdã, Londres e Viena. Também teve êxito no circuito dos eventos de cinema o seu segundo longa-metragem, Los Rubios (2003). Gêminis (2005), terceiro longa de sua já então celebrada carreira, foi premiado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Portanto, Albertina foi galgando, degrau por degrau, seu espaço entre os nomes mais importantes da atual cinematografia argentina. Com As Filhas do Fogo (2018), ela propõe uma narrativa ousada, em que há sexo explícito e o próprio cinema é investigado enquanto reprodutor de objetificação. Conversamos brevemente com ela por telefone, numa ponte Rio de Janeiro/Buenos Aires, para saber um pouco mais sobre a produção que chega aos cinemas brasileiros pela Vitrine Filmes no dia 14 de março. Confira este Papo de Cinema exclusivo, com a cineasta argentina Albertina Carri.

Por que você escolheu a estrutura de road movie para contar essa história?
Porque a viagem não é apenas real, mas também simbólica. Pareceu-me relevante contar esse movimento, bem como a intervenção da paisagem, na medida em que o cenário se transforma em território.

Como foi o trabalho com o elenco, sobretudo o desenvolvimento da cumplicidade com a câmera, a intimidade que gera esse bem-vindo despudor?
Trabalhamos muito antecipadamente, fizemos vários workshops com todas, a fim de que se conhecessem e nos conhecessem. Conversamos bastante, definimos com as atrizes o que queríamos contar, como queríamos nos posicionar diante de tanta visibilidade. Mas, acima de tudo, tivemos várias trocas e isso me deu confiança suficiente para fazer parte da cena com a câmera. Meu grande medo era me sentir uma invasora, devassar a intimidade dos outros, então meu trabalho anterior foi muito no sentido de construir essa intimidade junto delas, fazer da câmera parte da cena e não mera observadora. Ou, no caso de ser observadora, virar aquela voyeur convidada, não é uma espiã, mas uma cúmplice. Serei eternamente grata por fazer parte dessa celebração de corpos e subjetividades.

Excetuando a da cineasta, as “missões” individuais vão perdendo importância ao longo do caminho. Por que você optou por essa trajetória convergente a algo simbólico?
Porque, caso contrário, o filme deveria durar umas sete horas (risos). E porque já estamos pensando em As Filhas do Fogo 2. Talvez aí resolvamos a questão do carro do pai (mais risadas). Falando um pouco sério, porque as missões são, de alguma forma, o MacGuffin do filme, a verdadeira questão está no movimento, na falta de resolução, na continuidade dos orgasmos esquecidos. Ter relações sexuais é como meditar, serve também para esquecer um pouco de quem você é, onde você está. Durante o ato não há tempo nem a geografia. As histórias esvanecem quando o sexo realmente acontece. Gostei da ideia de brincar com esse tipo de anti-trama. Também escrevemos nossa própria trama que, às vezes, suprime coisas e é desbotada. Não faria um road movie de enredo certinho e infalível. Reescrever um gênero (como pornográfico, neste caso) também é entregar-se às pesquisas de outros recursos, um deles o esquecimento, a desatenção com relação aos tópicos que não se somam, mas cujos preceitos geram carga (no melhor dos casos) e até sofrimento (em tantos outros).

No filme há uma relação estreita do sexo com o sagrado. O feminino é visto, especialmente, como se uma manifestação sublime da natureza? É por aí?
Acredito que o sexo, quando praticado de forma cuidadosa e celebratória, é uma possibilidade de encontro entre pessoas que praticam realmente algo sagrado. Acontecem coisas da ordem da verdade, daquilo que não pode ser contado, senão somente através de todo o corpo. Como o luto e o parto, o orgasmo é um momento único. Esses são marcos que modificam o corpo, devolvendo um poder a ele que na vida cotidiana, em geral, é canalizado à destruição por conta de suas demandas medíocres.

Nas diversas exibições de As Filhas do Fogo em que esteve presente, como percebeu a diferença de sensibilidades entre homens e mulheres diante do filme?
Eu não tenho isso bem claro, porque não consigo fazer essa diferença binária de mundo.

Qual a pergunta sobre o filme que mais te incomodou até hoje?
“Por que todos os homens são maus no seu filme?” E minha resposta para é: “nem todos, o pai morto parece ter sido adorável”.

(Entrevista feita por telefone em março de 2019)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.