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As Linhas da Minha Mão :: “Neste filme os atores têm prioridade sobre a câmera”, diz o diretor João Dumans

Vencedor do prêmio principal da Mostra de Tiradentes 2023, As Linhas da Minha Mão (2023) é um documentário sobre Viviane de Cássia Ferreira, atriz da trupe Sapos e Afogados, um dos principais grupos teatrais do Brasil dedicados à interseção entre criação artística e saúde mental. Dirigido por João Dumans, o longa-metragem é um retrato austero do ponto de vista da linguagem. Nele, a câmera é subordinada à movimentação dos personagens, sobretudo a de Viviane. Observando essa protagonista falante e fascinante sempre muito de perto, o realizador registra Viviane falando sobre a sua convivência com transtornos de ordem psiquiátrica, divagando sobre aspectos que interligam de modo instigante arte e processo criativo, bem como expondo as frustrações e alguns episódios eróticos de suas andanças. Para saber um pouco mais a respeito dos bastidores desse documentário com inclinações experimentalistas, conversamos remotamente com João Dumans. O resultado você confere neste Papo de Cinema exclusivo sobre o filme que chega em 11 de abril aos cinemas brasileiros.

Como você conheceu a Viviane? Como se deu o processo de encontrar essa personagem fascinante?
Meu primeiro encontro com ela foi em 2019, já em função do cinema. O Tiago Mata Machado, realizador aqui de Belo Horizonte, queria fazer filmagens no sítio dele para um projeto independente e me convidou para dirigir a fotografia. Na carona rumo ao local estava a Viviane e eu não a conhecia. Mas a impressão que tive de cara, por seu silêncio e elegância, era de estar diante de uma atriz muito importante e que era uma vergonha não a conhecer. Essa presença que ela tem se impôs a mim naquele momento, de modo imediato. Na filmagem, em determinada cena, o Tiago pediu para cortar e acabei não cortando por achar que a ação da Viviane ainda estava se desenvolvendo. Aí logo depois conversamos fumando um cigarro, ela achou legal que não cortei a cena e rolou uma cumplicidade.

E essa parceria começou ali…
Depois disso chamei a Viviane para ser atriz num filme de ficção que eu estava realizando, mas que não está pronto até hoje. Minha pretensão é terminá-lo até o fim deste ano. Nas conversas para compor essa personagem ficcional fui me aproximando cada vez mais dela. Para você ter uma ideia, inicialmente a personagem teria 24 anos. Mudei a idade, o perfil e fui aproximando o papel da atriz, até um ponto, no meio da pandemia, em que disse que gostaria de fazer um filme sobre a Viviane pessoa real. Isso pela convicção de que ela tinha vivido experiências muito particulares nesse mergulho na loucura e na depressão. Viviane tinha conseguido não somente sobreviver a isso, mas também trazer um conhecimento precioso dessa vivência. Achei que isso precisava ser compartilhado. Juntei  um pouco esse interesse pela vida dela com o meu interesse cinematográfico de pensar e desenvolver outras formas de colocar vidas em cena, limites que a gente gosta de explorar entre ficcional e documental, com o documentário vindo um pouco envelopado numa dinâmica mais ficcional do que testemunhal.

Como foi o processo colaborativo de construção desse recorte da vida da Viviane que vemos no filme?
Foi um processo ambíguo. Por um lado prazeroso e leve, até porque não teve muita preparação. Por exemplo, a primeira cena que vemos, a da ioga, é de fato a primeira cena que filmei. Falei para eles que estava fazendo um teste de câmera. Tinha trabalhado com a Viviane e algumas dinâmicas preparatórias que fizemos para a ficção já tinham me mostrado a espontaneidade e a inteligência dela como atriz quando a deixamos livre. Então, o filme tem uma aposta radical na liberdade e na inteligência da atriz. Tudo era um jogo e tínhamos muito prazer. Por outro lado, naquele período a Viviane estava vivendo uma escalada maníaca, acho que isso está presente no filme, e isso gerava uma tensão e uma insegurança muito grandes da minha parte. Não sabia se o filme estava fazendo bem ou mal a ela. Algumas cenas não fui em quem bolou, foi ela que me convocou a fazer. O segundo bloco e a performance final foi a Viviane que me convocou a filmar.

Você demora um pouco a dar a informação de que estamos falando também sobre saúde mental. Em que ponto do processo você decidiu postergar essa revelação ao espectador?
Essa é uma questão frequente, sobre esse início tateante. Acho que os filmes que fazemos tem um pouco disso. Em Arábia (2015) também era um pouco assim, com uma pequena montanha que temos de subir antes de chegar a determinado lugar e compreender sobre a natureza do filme. É uma forma de acreditar na disponibilidade do espectador, na forma de construir representações dentro do cinema que exijam certa disponibilidade para a escuta. Conhecer alguém é um processo de tateamento, então tentamos reproduzir isso. Esse gesto lento de construção permite que não façamos um filme de classificações e diagnósticos simples. É preciso que a personagem se construa aos poucos por outros terrenos, para além da patologia. No fundo, do ponto de vista da estrutura dramatúrgica faz sentido. Me interessa o espectador começar hesitante e ir sendo tragado pela inteligência e pela empatia dessa personagem. É um modo de deixar o espectador um pouco vulnerável. Esse encantamento que temos por ela ao longo do documentário não seria possível sem uma hesitação inicial.

Indo ao encontro da radicalidade, temos a construção visual do filme, sempre próxima da personagem, com baixa profundidade de campo e a câmera procurando a personagem. Como foi a construção dessa linguagem visual?
Sempre tive um encantamento muito grande pelo modo como a Viviane formula suas questões, mas também por suas expressões, o rir, o errar, a contradição e como isso se reflete numa gestualidade. Isso constitui um pouco a fascinação que ela exerce. Uma vez que o espectador está ali, imagino que em algum momento ele comece a se ligar nesse jeito da pessoa que está falando durante muito tempo. Então, esse trabalho foi muito no sentido de tirar todas as variantes, em termos de decupagem e de intervenção cinematográfica, para que pudéssemos ver a interlocução entre fala e gestual em sua plenitude. Uso uma lente zoom teleobjetiva, fico mais distante e me movo de acordo com a cena. Quando pensamos em direção de cinema, há uma coisa para mim clara. Em certos momentos, a câmera tem prioridade sobre os atores e em outros os atores têm prioridade sobre a câmera. Neste filme, os atores têm prioridade sobre a câmera.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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