Vinda de Recife, terra de onde tem surgido um dos cinemas mais estimulantes da atual produção nacional, Virgínia Cavendish deixou de lado os predicados de ser apenas mais um belo rosto na televisão para se firmar como um das artistas mais interessante do cenário brasileiro. Após uma participação não-creditada no drama Kuarup (1989), de Ruy Guerra, decidiu que era atuar o que queria para a vida. Desde então foram vários trabalhos na televisão, no teatro e também no cinema. Sucessos de público como O Auto da Compadecida (2000) e Lisbela e o Prisioneiro (2003), ambos dirigidos pelo ex-marido Guel Arraes, lhe tornaram conhecida em todo o país. Mas ela queria mais. E depois de um tempo afastada da telona, agora está voltando com tudo. De 2015 pra cá já foram três novos filmes, sendo o mais importante para ela o suspense Através da Sombra (2015), no qual retoma a parceria com o diretor Walter Lima Jr., tem sua primeira oportunidade como protagonista e, além disso tudo, também estreia com produtora! E foi justamente sobre esse desafio que a atriz conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Lembro que fiquei muito impressionado com a tua personagem em Lisbela e o Prisioneiro (2003), pois, ainda que não seja a Lisbela e nem o prisioneiro, é alguém com um arco muito forte no filme. Mesmo assim, você ficou mais de dez anos sem fazer cinema depois daquele trabalho. O que aconteceu?
Pois então, esta é uma pergunta que nem eu sei responder. Foi a vida que aconteceu, eu acho. Obra do acaso. Neste meio tempo fiz televisão bastante, talvez nem tanto assim, mas de forma frequente. Fiz também muito teatro. Mas não sei o que aconteceu com o cinema. Foi que não produzi nada pra mim, ninguém me mandou um convite irrecusável, não sei…
Mas agora, só no último ano você fez três novos filmes. Esse movimento faz parte de uma vontade de se dedicar mais ao cinema?
Cem por cento! Acho que o cinema, dos três veículos nos quais trabalho, creio que é aquele com o qual tenho mais intimidade. Eu e o cinema, a gente funciona melhor. No teatro corro muito atrás, adoro fazer, mas é mais difícil. Já a televisão é um relacionamento que não tem muita emoção, digamos assim. Até agora, pelo menos. Mas cinema, não, foi onde tive meus melhores papéis.
Até que a Casa Caia (2015) era uma comédia social, urbana, totalmente do dia-a-dia. É um tipo de cinema que a gente vê muito no Brasil, porque reflete o que a gente tá vivendo. O Califórnia (2015), por sua vez, tem uma proposta mais carinhosa. Já o Através da Sombra é completamente diferente, parte de um gênero que não se explora muito por aqui, o suspense. Isso colaborou na tua intenção de querer não só protagonizar, mas também produzir o filme?
Quando pensei nesse projeto com o Walter Lima Jr, nosso diretor, a gente vinha de dois trabalhos juntos no teatro. Estávamos pensando em uma nova peça, quando ele sugeriu: “vamos fazer Os Inocentes?”. Este é um texto com apenas dois alunos e uma professora, que até já virou filme, com a Deborah Kerr. Quando li, percebi que minha vontade maior era de fazer no cinema. Ele até se assustou, arregalou os olhos, mas logo concordou com muita euforia. Foi aí a gente resolveu fazer, porque, pensando como atriz, sem dúvida é um papel totalmente diferente de tudo que já tinha feito. E como produtora pensei que poderia funcionar, pois temos uma prateleira vazia no cinema brasileiro de filmes de suspense, e temos um público que consome muito esse gênero quando vem de Hollywood. Se a gente alcançar 20% desse público, já será um grande feito.
Você praticamente deram início a uma nova tendência, pois logo em seguida acabaram aparecendo outros projetos similares…
Mas nós fomos os primeiros (risos). Tem muita gente produzindo agora, e sou peixe pequeno ainda, mas sabe aquele carrinho que vai passando por todos? Acho que lá atrás, em 2010 ou 2009, quando comecei esse projeto, muita gente acabou pensando da mesma forma. Não sei se foi coincidência, mas acredito que pensei antes que todo mundo.
O Através da Sombra teve uma carreira longa por festivais. Inclusive foi premiado no Fantaspoa, que é o festival de cinema fantástico de Porto Alegre, numa mostra competitiva do gênero só de longas nacionais. Você tem acompanhado esses outros filmes?
Infelizmente, não, mas a maioria dos festivais que participamos eram normais. Teve apenas dois de gênero, esse e um exterior, na Inglaterra, o Horror Channel Fright Fest. E também não tive como ir até lá, por motivos profissionais. Mas é muito legal essa atenção diferenciada.
Como você tem percebido a reação do público até agora?
Acho que estão gostando bastante. As pessoas tem medo (risos), e num filme como esse, isso é muito bom. A melhor experiência foi na Mostra de Tiradentes, onde a exibição foi um teatro ao ar livre, numa tenda com 500, 600 lugares, e ninguém levantou! Tava todo mundo hipnotizado, com medo do que ia acontecer. Ou seja, tem sido muito bem recebido. A minha proposta nunca foi fazer um filme-cabeça. Queria fazer um filme de mercado, de porte médio, mas que pegasse esse público mesmo assim. Temos no Brasil um potencial gigante de espectadores, e, ao mesmo tempo, muito pequeno relativo ao cinema brasileiro. Ou seja, temos um lugar pra conquistar, mas pra isso é preciso fazer filmes que o público goste. Não é preciso cair no nível, mas fazer filmes tão bons quanto os estrangeiros. É um desafio grande, mas precisa ser feito.
Estamos falando bastante sobre o aspecto mercadológico. Mas e sobre a tua personagem? Afinal, além de todas essas preocupações como produtora, você ainda assumiu sua primeira protagonista no cinema.
Não pensei muito, foi só na hora de filmar que pensei: “caraca, vou ter que dar conta agora, né?” Porque, caso contrário, iria tudo por água a baixo. Deu um pouco de pânico, mas entendi quem era aquela personagem, que ela era também meio “panicada”. A partir do momento das leituras com todo o elenco, não fiz mais nada de produção. Só peguei depois, quando o filme estava pronto, na lata. Foi quando voltei a pensar em todo o resto, cuidar da arte, cartaz e tudo mais. Foi um processo bem difícil, muito diferente de tudo que tinha feito, sem a bengala da mulher sensual, do batom, roupa, decote, aquele tipo que a pessoa já pode gostar um pouco só de olhar, entende? (risos). Essa mulher não tinha nada, então foi um pulo no abismo.
Você mencionaste em outra ocasião, como referência, o filme O Silêncio dos Inocentes (1991). Como ele serviu de referência pra você?
É uma coisa mais instintiva. Acho esse filme maravilhoso, por exemplo, mas a minha personagem é mais maluca. Foi preciso colocar mais camadas nela. Vimos também O Orfanato (2007), que é incrível. Passei todos esse anos prévios vendo muito esse cinema, dos mais trashs aos imperdíveis.
O fato de ser o Walter Lima Jr, um veterano do nosso no cinema, acredito que deve ter te dado uma certa tranquilidade pra trabalhar, não?
O meu personagem é quase eu e ele juntos. Uma hora o Walter dizia algo, e eu apenas ia atrás. No final, teve uma cena que disse: “não vou fazer isso, não vai ficar legal”. Ali já era eu mandando, mas primeiro ele me ganhou. Foi muito na parceria, desde o começo.
A Nicole Kidman fez um filme tempos atrás chamado Reencarnação (2004), que tem um cena muito íntima dela com um menino, que por mais que seja lógica dentro do filme, gerou muita polêmica na época. O Através da Sombra também corre esse risco por causa de uma das suas sequências. Enquanto produtora, essa abordagem chegou a lhe gerar alguma preocupação?
Não, porque confio plenamente no que o filme quer falar, nem passa perto de uma visão equivocada. Mas tudo é possível, né? A minha distribuidora na Inglaterra até queria tirar algumas cenas, com medo de uma má interpretação. Daí nos sentamos e expliquei tudo, mostrei porque não dava pra cortar essa cena em particular, por exemplo. E ficou do jeito que estava, sem alterações.
O Através da Sombra foi também um dos últimos trabalhos do Domingos Montagner, e você é a única do elenco que divide a cena com ele. Esse filme chegando aos cinemas é também uma forma de homenagem a ele, certo?
Totalmente, ele era muito generoso, um grande parceiro. Foi apenas um dia de filmagem com ele, mas muito intenso. Foi como um balé de sintonia entre nós durante as gravações. A gente ia encaixando, tudo muito certinho. Dançamos esse balé juntos, e foi inesquecível, algo que guardarei pra vida toda. Só sentindo um ao outro.
E a expectativa de entregar o Através da Sombra ao público? Como tá o coração?
Bom, espero que a maior quantidade possível de espectadores vá aos cinemas. Afinal, se trata do lançamento de um filme pequeno, e o mercado brasileiro é muito selvagem. Por mais que a gente tenha muita qualidade, a parte de distribuição brasileira anda está muito aquém do que poderia ser. Tem muito transatlântico chegando ao mesmo tempo, e o filme brasileiro é só uma jangada. Temos que arrumar uma fórmula, pensar fora da caixa. Temos um público gigante no Brasil, só que ainda não estamos vendo a nós mesmos. Existe uma formula de distribuição a ser descoberta. Quem sabe chegamos perto?
(Entrevista feita ao vivo em São Paulo em outubro de 2016)