O ano de 2020 marca o retorno do diretor João Jardim ao ambiente da educação, após o belo Pro Dia Nascer Feliz (2005). Em Atravessa a Vida, ele acompanha três meses de preparação dos alunos do terceiro ano do Centro de Excelência Dr. Milton Dortas, em Simão Dias, Sergipe, para descobrir como se preparam para o ENEM, e que expectativas têm para o futuro. O encontro aborda temas muito mais amplos, como a percepção dos jovens sobre a política nacional, as opiniões sobre o aborto, a pena de morte…
O documentário está disponível online e gratuitamente no festival É Tudo Verdade, ainda que o cineasta tenha a pretensão de lançá-lo nas salas de cinema em breve. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com João Jardim sobre o filme:
O que te levou a esta escola específica em Sergipe?
Escolhi essa escola porque queria que fosse longe de uma grande capital. Ao mesmo tempo, buscava uma escola com mais de mil alunos, além de um índice de aprovação no ENEM semelhante à média nacional, que oscila ente 20% e 25%. Esta escola é uma das poucas dentro deste perfil. A maioria das escolas com bom índice de aprovação, fora das grandes cidades, é muito pequena. Encontrei escolas interessantes no interior do Ceará, mas com apenas 400 alunos. Enquanto eu estava procurando, a Folha de São Paulo publicou uma matéria falando desta escola. Procurei o repórter que escreveu a matéria, e ele me aconselhou a conhecer lá. A geografia da escola também é bastante particular, porque as salas de aula não dão para um corredor, e sim para um grande pátio a céu aberto. Isso é muito cinematográfico, porque elimina a ideia dos corredores dentro de prédios.
Esta configuração me dava oportunidade de circular por este jardim interno, o que daria boa liberdade para o filme. Já filmei em escola antes, e você costuma ficar espremido no corredor, com as pessoas passando. Além disso, fui muito bem recebido neste local. A diretora entendeu a proposta e gostou da ideia de um filme lá dentro. Isso é fundamental: quando você tem planos de ficar visitando uma escola durante uns três meses, como a gente fez, existe a preocupação de não ser interrompido no meio. Imagina se, depois de três semanas, eles dizem: “Não quero mais”? Mas a cumplicidade e o entendimento foram ótimos. Eles sabiam que a intenção não era fazer publicidade da escola, porque a gente tocaria em aspectos positivos, mas também muitos aspectos negativos. Era importante deixar isso claro desde o início.
Que contato aqueles jovens tinham com o cinema, e como receberam a presença da câmera dentro da sala de aula?
Eles são muito espertos, mas demoraram para entender o que a gente queria. Os meninos pensaram que a gente faria uma reportagem, a exemplo de outras que já foram feitas ali dentro. Depois de vários dias, eles perguntavam: “Mas vocês continuam aqui?”. A partir do momento que você começa a filmar, a dinâmica demora para acontecer de fato. É preciso ganhar intimidade com o espaço, com as pessoas, assim como elas ganham intimidade com a gente. É uma troca. Eles foram entendendo aos poucos, à medida que a gente ficava lá trabalhando. Ao mesmo tempo, a gente entendia quem eles eram. O processo foi longo, mas posso dizer que nos receberam bem, apesar de uma desconfiança inicial. Logo a desconfiança aumentou, por causa da duração do projeto, até eles entenderem e então ficarem bem confortáveis.
Em que medida a câmera interferia naquele espaço?
A câmera sempre interfere. A partir do momento que você coloca a câmera, as pessoas sempre se arrumam um pouquinho mais, ou pensam no que elas querem mostrar. Inclusive, algumas situações ruins aconteceram porque a gente estava lá. Então a câmera sempre interfere. Mas a gente tenta ficar invisível, algo que só se conquista com o tempo. A gente estava com uma câmera grande, com lentes grandes, então essa presença podia intimidar. Mas nós fomos aos poucos, até eles entenderem como funcionaria. No final, nós tentamos várias coisas. Temos quase 60 horas de material. Tentamos dos dois jeitos: às vezes a gente tentava ficar de longe, para pegar algo que não seria revelado para a câmera. Em outros momentos, a gente buscava estabelecer uma intimidade entre a câmera e os jovens.
Existem depoimentos de alguns jovens em paralelo. Por quê?
Esses testemunhos nem estavam planejados. A minha intenção era só fazer um cinema direto. Mas aconteceram duas coisas: primeiro, a gente percebeu, enquanto conversava com eles paralelamente às filmagens, a temática recorrente da ausência do pai na vida destes alunos. Muitos meninos foram só criados pela mãe, e achei importante acrescentar este componente à realidade dos adolescentes, para entender como estavam lidando com esta questão. Não por acaso, os três depoimentos falam sobre a ausência do pai. Segundo, a escola era usada como local de votação, e a gente filmou em período de eleições. Por isso, ela precisou ser fechada enquanto o projeto acontecia, para o primeiro e o segundo turnos. A escola ficava fechada três, quatro dias seguidos, e eu pensava: como vou aproveitar esse tempo? No primeiro turno da eleição, decidi gravar uns depoimentos para ver o que acontecia. Gravamos doze conversas. Foi uma tentativa, a gente não sabia o que ia dar. Ficamos surpresos porque a fala deles era muito forte. Incluímos apenas três conversas porque a intenção não era ser um filme de depoimentos, mas isso veio das decisões do acaso. Além disso, os meninos não queriam que a gente fosse na casa deles. Até fizemos algumas visitas, mas o resultado não era bom: eles não estavam confortáveis. Os jovens preferiam afirmar suas identidades na escola. Percebemos que, se a gente pedisse a todos para entrar na casa deles, não daria certo – muitos tinham vergonha. Quando fizemos o primeiro depoimento e vimos a potência destas trocas, apostamos neste recurso.
Por que o filme privilegia aulas de História, Sociologia e Filosofia, ao invés das ciências exatas, por exemplo?
Estas aulas acabaram funcionando melhor. Não foi algo muito preconcebido. Quando você chega à ilha de edição, acaba tentando vários caminhos. Queria muito ter incluído mais aulas de matemática e inglês, mas não funcionava na montagem. Sempre que chegava a esses momentos, o filme parecia artificial, intencional demais. Virava didático, como se eu quisesse mostrar algo específico. A montagem é um processo de meses. No início, você imagina todas as coisas que pretende colocar no filme, e monta dentro do que quer mostrar. Depois o filme ganha vida própria, e passa a expulsar o que não faz sentido. Isso aconteceu em todos os meus filmes: chega o momento em que você elimina aquilo que não pertence, porque o filme fala o que precisa. É evidente: você começa a assistir e sempre que chega naquele trecho, ele fica parado, fica estranho. Às vezes, o filme está fluindo, mas você percebe que falta algo em determinado momento. Eu amava muito um personagem do ensino noturno da escola, e fiz de tudo para que ele ficasse na versão final. Mas não tinha jeito: sempre que chegava nessa parte, o filme travava. A gente jogava a cena para o final, puxava para o começo, não funcionava. É preciso respeitar isso. Vejo muitos filmes nacionais, e mesmo estrangeiros, em que quase tudo é bom, mas existe um trecho ruim, como se a pessoa não tivesse entendido que aquele pedaço tinha que cair na montagem. Preciso fazer um exercício de humildade: abro mão de muitas coisas que parecem importantes para mim, mesmo depois de três meses de trabalho.
Como Atravessa a Vida dialoga com o Brasil de 2020, que ainda discute doutrinação ideológica, Escola sem Partido etc.?
Graças a Deus, o Escola sem Partido foi abandonado de vez. Neste momento bem específico em que as escolas estão fechadas, acredito que o principal diálogo ocorra a respeito do fechamento. Os alunos do terceiro ano de 2020 não estão vivendo aquela mesma realidade do filme. Independente da questão da Covid-19, não tentei fazer qualquer crítica específica. Queria apenas falar sobre o momento de sair da escola, sobre como aquele momento de transição é relevante para o futuro dos meninos, e o quanto os professores são fundamentais para essa fase. O filme não aponta dedos, apenas provoca uma reflexão. Queria mostrar como o ENEM é importante para eles, enquanto possibilidades futuras de ensino. Se existe uma escola como aquela, que de fato permite o acesso a universidade, a gente não pode perdê-la de jeito nenhum. Antigamente, a situação era diferente: muitos jovens iam à escola sem saber o porquê, já que jamais entrariam numa universidade. Esta situação mudou. Nem diria que foi por causa do PT. Essa foi uma conquista muito longa, desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Também não diria que esta foi a conquista de algum governante específico, e sim uma vitória de quem trabalha com educação. Nenhum Ministro conseguiria fazer isso sozinho, foi preciso uma mobilização imensa de muitas pessoas ao longo do tempo.
O documentário chega a um festival online, muito diferente das exibições habituais do É Tudo Verdade. Como percebe este momento?
É muito importante que as exibições de filmes não parem por completo. Mesmo psicologicamente, é fundamental que a arte continue chegando às pessoas. Estou muito contente que o É Tudo Verdade esteja acontecendo, e este filme realmente pertence a um festival de documentários. Mas ainda espero lançar o filme nos cinemas no fim do ano, ou em janeiro. A ideia é colocá-lo nas telas do cinema junto do ENEM. Ele foi feito para o cinema, e fica super bonito na tela grande. Faço filmes para o cinema, mas ao mesmo tempo, acho importante que ele esteja no festival online. Precisamos continuar a troca com o público. Isso estimula as pessoas a estarem vivas, e para mim, não dava para esperar mais: o filme precisava sair. Por isso, é muito bom que as exibições aconteçam online. É uma experiência nova para mim.