Em Nazaré da Mata, Pernambuco, o Maracatu representa uma forte expressão cultural misturando a dança, o canto, o folclore e o misticismo. O diretor Tiago Melo decidiu embarcar neste universo para criar Azougue Nazaré (2019), drama sobre a vida de pessoas que se dedicam o ano inteiro para criar o Maracatu, apesar dos poucos recursos, até a apresentação no Carnaval.
O belo resultado, misturando drama e humor, fomenta o debate sobre o papel da cultura popular em tempos de opressão religiosa. Depois de passar por festivais prestigiosos como Roterdã, Azougue Nazaré está em exibição nos cinemas brasileiros, e o Papo de Cinema aproveitou para conversar com Tiago Melo sobre o projeto:
É correto dizer que a sua relação com o Maracatu veio da família?
Na verdade, não dá para dizer que veio de uma geração anterior. A minha avó nasceu em Nazaré da Mata, cidade onde eu filmei, e berço do Maracatu Rural. Ela acaba de completar 102 anos, a mesma idade do Maracatu Cambinda Brasileira, o mais antigo em atividade. Eu sempre gostei muito do Maracatu, desde criança. Acho uma das coisas mais bonitas que vi na vida. Então já tinha vontade de ir a Nazaré da Mata e fazer um filme na cidade da minha mãe. Já fiz um filme na cidade do meu pai, no sertão da Paraíba, que se chama Urânio Picuí (2011). Eu não imaginava, nem esperava que teria essa coincidência com a história da minha avó. Mas acabei encontrando as minhas raízes, e fui muito bem acolhido no Maracatu. Foi como voltar para casa.
Como descreve o Maracatu Rural entre dança, canto, folclore, religião?
O Maracatu Rural é uma força de vida. As pessoas vivem em função disso, se preparando ao longo do ano inteiro para sair no Carnaval. É muito intenso, e quis mostrar essa arte de resistência: o Maracatu foi proibido e marginalizado desde a sua criação. Ele demorou muito para ter alguma forma de incentivo, e mesmo assim, não é tão incentivado pelo governo. A persistência do Maracatu no Carnaval implica no esforço enorme de muitas pessoas.
A escolha de opor o Maracatu às religiões evangélicas vinha da vontade de reforçar esta resistência?
Este é um parâmetro. Eu quis representar algo que acontece no Brasil de modo geral, e que se torna mais visível numa cidade pequena como Nazaré da Mata: o avanço das igrejas evangélicas. Mas deixo claro que o filme não critica as religiões evangélicas, apenas a a vertente de dominação de alguns evangélicos pentecostais. É a ideia da dominação pelo poder. Quem segue o evangelho de verdade também se posiciona contra estes homens com sede de poder. Então eu vi que o Maracatu era muito forte na cidade e comecei a pensar o que aconteceria com a chegada dessas vertentes da igreja evangélica que querem acabar com tradições locais. É a pura intolerância contra religiões de matriz africana, sem respeito à História. Quis colocar isso em Nazaré, para criar um diálogo. Existem muitas igrejas evangélicas em Nazaré da Mata, e sei de muitos pastores que adoram o Maracatu Rural, enquanto outros realmente acreditam que seja algo do demônio. Quis jogar essa discussão para a cidade. Embora se trate de uma arte de resistência, cada geração resiste de uma maneira, então o Maracatu evolui. Queria que as novas gerações também pensassem a respeito.
Como a cidade acolheu o projeto do filme, e de que modo os Mestres do Maracatu integraram o elenco?
O Barachinha, que faz o pastor no filme, é um dos principais Mestres em atividade. Ele é o porta-voz do Maracatu: muitas coisas ainda são perguntadas a ele dentro dessa cultura. Quis pegar Barachinha e colocá-lo como pastor evangélico para ver o que iria acontecer. Pensei primeiro no público de Nazaré da Mata. É óbvio que eu queria que o filme passasse em vários lugares, mas pensei primeiro em Nazaré. Sabia que, para eles, ter Barachinha como pastor era um símbolo muito forte. Ele passou a fazer laboratórios, frequentando cultos evangélicos para entender este universo. Às vezes ele andava como um evangélico, e foi ele quem conseguiu todas as Bíblias para a cena da igreja. Algumas pessoas da cidade até se espantaram, achando que ele tinha virado evangélico mesmo!
De que maneira trabalhou com atores não profissionais?
Tivemos uma sessão incrível em Nazaré da Mata, com 1500 pessoas presentes. Nessa ocasião, Barachinha cantou um verso que dizia algo do tipo “O azougue me tirou do chão do anonimato”. De certo modo, o azougue tirou todos nós do chão do anonimato. Este foi meu primeiro longa como diretor, e foi o primeiro longa do diretor de fotografia, da atriz Mohana Uchôa, que fez muitos filmes depois, do Valmir do Côco, que desde então fez mais quatro filmes. O Edilson Silva só tinha filmado Brasil S/A (2014) na época. Todo mundo era muito cru, mas conseguimos equilibrar os atores profissionais com os não profissionais, porque ambos poderiam se ajudar. Trabalhei muito isso durante o processo de preparação, para não ficarem em tons diferentes. No final, nem dá para perceber quem é quem. Sempre me perguntam se eles são atores, e respondo que são atores, sim, porque neste processo eles se tornaram atores, e prosseguiram na carreira, com outros projetos. Não foi uma escolha ideológica de pegar atores não profissionais, apenas cheguei a Nazaré e comecei a perceber que aquelas pessoas do Maracatu são atores natos, porque todos eles interpretam personagens: tem o Rei, a Rainha, a Baiana, o Mestre… Todos estão acostumados com câmera desde criança, e não têm medo de ser filmados. Vi o potencial de todos enquanto artistas.
Você filma corpos de maneira muito especial, entre a liberdade do Maracatu e a censura da religião cristã.
Queria mostrar as pessoas do Maracatu por trás da fantasia, ou seja, o corpo nu sem estar fantasiado. Muitas vezes se coloca a cultura popular num pedestal, como algo bonitinho, mas um tanto preconceituoso. O que diferencia estas pessoas humildes de grandes músicos? Apenas o cachê na hora de se apresentar. Considera-se a cultura popular como algo inferior por vir de pessoas humildes. Ao mesmo tempo, quis mostrar a vida real dessas pessoas. Por isso, temos a tecnologia entrando na vida das pessoas e as confusões diárias. É a natureza do ser humano. Em uma cena, por exemplo, temos a música “Bilu Bilu” do Pablo. Ele é um cantor baiano de arrocha, algo bem distante do Maracatu, mas a música tocava o tempo todo pela cidade enquanto a gente filmava. Eu não conhecia Pablo nessa época, em 2014, quando filmamos a primeira etapa do filme. Virei fã do Pablo e decidi colocar essa música no filme, quando eles estão na sede, fazendo as fantasias. Nesse momento, eles não escutam Maracatu, eles ouvem de tudo, inclusive música pop. Quando essa cena passou lá em Nazaré, as pessoas adoraram, foi apoteótico.
Como imaginava a presença de elementos fantásticos dentro de um filme realista?
Existe um desafio para mim: acredito que todo elemento sobrenatural deve ser filmado de maneira bastante séria, para não se tornar risível e difícil de acreditar. Então tive essa consciência ao filmar um Caboclo de lança. O que me interessava no Maracatu eram as histórias do passado envolvendo os Caboclos, para situá-las hoje em dia. Existem várias histórias, como a do Caboclo Zé de Rosa, que colocava o ouvido no chão e ouvia onde o Maracatu estava, depois ele sumia e aparecia em outro canto, voando sobre uma porteira. Quis colocar todos elementos da força do Caboclo como se acontecesse hoje em dia. Estes elementos fantásticos estão no nosso imaginário, e representá-los é muito importante, porque com toda a tecnologia que temos hoje, fica mais difícil acreditar nessas histórias. Faz mais sentido acreditar nessas lendas do passado, porque hoje as pessoas pediriam provas, vídeos, algo publicado na Internet.
A parte fantástica é distribuída ao longo de toda a narrativa…
Sempre pensei que os Caboclos precisariam ser uma costura para o filme. Sabia que terminaria a história num Carnaval, porque tudo culmina no Carnaval. Tenho essa ideia de que as entidades costuram as nossas vidas: elas não estão presentes o tempo todo, mas sempre aparecem em algum momento. Queria que a representação dos Caboclos fosse parecida. A preparação do Azougue, a bebida do Caboclo de lança, foi a última coisa que filmei. Ela não existia no roteiro, mas durante a montagem, senti a necessidade de começar no universo fantástico, fazendo a garrafa de Azougue. Assim, já entramos na história preparados para as questões sobrenaturais.
Qual é o papel de lançar o filme sobre uma cultura minoritária e nordestina no Brasil de 2019?
Começamos a filmar Azougue em 2014. Ele demorou muito para ficar pronto, por questões e editais e captação de recursos. Desde então, aconteceu esta reviravolta política no Brasil, desde a reeleição da Dilma até o impeachment, depois Temer e Bolsonaro. O filme se tornou até mais forte do que seria. Quando cheguei a Nazaré, não pensava em filmar uma cultura da resistência, mas depois o Maracatu me mostrou este aspecto. Primeiramente, existe a força de ser um filme que não aborda apenas a beleza de uma cultura popular, e sim a vida das pessoas que a fazem, misturando comédia, ação a cultura fantástica. Para Nazaré da Mata, isso é algo muito forte. Azougue Nazaré também é pop, atual e moderno, capaz de dialogar com jovens e idosos. Eu sempre olho para as bases. Acredito que podemos aprender muito ao olhar os artistas do Maracatu, porque eles sim são resistentes, e ninguém é capaz de matar o que eles amam. Nós, artistas brasileiros, podemos ter o Maracatu como inspiração. Nenhum governo, nenhum político vai poder parar o que estamos fazendo, ninguém vai interromper a onda do cinema. Podem atrapalhar muito, mas nunca vão nos calar. Essa também é a força do filme, e precisamos hoje deste sopro de esperança.