Sucesso de público, visto por mais de 300 mil pessoas nos cinemas até o fechamento dessa matéria, Bacurau (2019) começou a sua trajetória de sucesso no Festival de Cannes de 2019, quando recebeu o Grande Prêmio do Júri, uma láurea inédita para o Brasil. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, colaboradores contumazes em outros projetos, assinam juntos a direção desse verdadeiro fenômeno que se vale de uma série de referências cinematográficas para estabelecer uma trama repleta de ação e consciência político-histórica. De passagem pelo Festival de Gramado, os realizadores conversaram com o Papo de Cinema acerca de vários elementos que marcaram esses quase 10 anos de gestação de um projeto incomum na cinematográfica brasileira, especialmente a recente, um filme que abraça orgulhosa e vigorosamente os códigos de determinados gêneros, acessando abertamente seus cânones com referência. As entrevistas foram realizadas separadamente, mas aqui estão combinadas para dar a você, nosso querido leitor, uma ideia ampla da esfera diretiva de Bacurau. Confira mais este Papo de Cinema exclusivo.
Meu colega Marcelo escreveu sobre Bacurau e o Kleber comentou que ele, por meio da crítica, organizou algumas ideias caóticas. Gostaria que vocês falassem um pouco sobre isso.
Kleber Mendonça Filho: Quando você escreve um roteiro, é preciso ter prazer de reler. Claro que nessa releitura temos uma ideia de como as partes se conectam. Mas, fazemos isso de maneira instintiva. E esse instinto é natural, não explicado. Por exemplo. A gente não pensou previamente em conectar o esconderijo de Lunga e a falta de água na região. No roteiro os procurados viviam numa mina abandonada. Quando começamos a filmar, descobrimos represa de Gargalheiras, lugar incrível e absolutamente seco. Incorporamos isso ao filme. Uma crítica tão bem observada organiza inúmeros elementos que nos chegaram quase como o vento. Após ler entendi como certas coisas tinham sido feitas. Não sou uma pessoa cartesiana. Não sou caótico, mas também não sou cartesiano.
Juliano Dornelles: É engraçado (risos). Às vezes o roteiro tem uma dinâmica, uma história. Eventualmente, sabemos como é o começo, o meio e o fim. Às vezes intuímos como é o espírito, e noutras vezes não sabemos absolutamente nada (risos). Bacurau não tinha um começo, meio e fim definidos. Havia fim e começo. Conhecíamos bem os personagens. Essa impressão do caos deve vir daí. Nos surpreendemos muito. Uma coisa que o Kleber repete bastante é que nenhuma cena deve ser rodada mais ou menos a fim. Tínhamos de ter muita vontade de rodar cada cena. Na verdade é muito difícil de responder a essa pergunta, porque essa construção é feita no dia a dia.
Kleber, nos encontramos há uns dois anos, num almoço com amigos em comum. Me lembro de sair pensando “nossa, o que vai ser Bacurau?”. Ele me pareceu, de certa forma, próximo a O Som ao Redor. Seria uma espécie de volta às origens?
KMF: No que tange à estrutura tem algo de O Som ao Redor, sim. Mas, para mim, ele é a exploração de um território virgem. Eu e Juliano somos do Recife. Não nascemos no sertão, mas a mítica de lá faz parte da gente. A lógica do sertão está no Recife. No processo de investigação, de pesquisa de locação, não apenas confirmamos muito desse sertão que já existia na gente, como também angariarmos novas informações. O filme é um novo território para mim. O Som ao Redor eu fiz, literalmente, na rua onde moro, com meu apartamento servindo de locação. O Aquarius eu filmei a uns 3 km de casa. Já Bacurau é no sertão do Seridó, onde eu nunca tinha ido antes.
Juliano, Bacurau vai se desdobrando, reverberando, crescendo na experiência do espectador após a sessão. É isso mesmo que vocês queriam?
JD: Esse tipo de coisa a gente não tem o direito de querer. Como cinéfilos, procuramos fazer filmes que provoquem essa sensação, claro. A vontade sempre foi trabalhar com cinema de gênero. Eu e o Kleber nos divertimos há muitos anos falando sobre cinema de gênero. Foi por meio disso que adensamos a nossa amizade. Até porque se você não gosta de cinema dificilmente ser amigo de Kleber (risos). E eu gosto muito. A gente é muito amigo (risos). Simplesmente fazemos os filmes que gostaríamos de assistir.
Isso de vocês fazerem os filmes que gostariam de ver guia totalmente Bacurau, não é, Kleber?
KMF: Absolutamente. Tenho uma memória afetiva muito forte com filmes importantes. No meu caso, esses longas vêm associados àquela sessão específica, naquele cinema específico. Isso acabou sendo desativado com o fim das grandes salas e a chegada dos multiplexes. Não sei você, mas não tenho a capacidade de associar o que vi a determinado filme na sala sete no lado direito de um multiplex qualquer. Houve uma pulverização da personalidade da exibição. Sou 12 anos mais velho que o Juliano, então ainda tive essa experiência que ele não teve. Fui assistir à RoboCop: O Policial do Futuro na primeira sessão, em 1987, no cinema São Luiz, no Recife. Tive uma sensação forte, de ver algo impressionante. Nunca tinha assistido a algo de tamanho impacto emocional e popular. É exatamente esse tipo de reação que gostaria que as pessoas tivessem com Bacurau, principalmente pela questão do âmbito popular, que não precisa ser estúpido. RoboCop é um filme incrivelmente inteligente, incrivelmente violento e com estilo muito próprio. Quando acabou, fiquei pensando: “caralho, o que foi isso? Que caminhão passou sobre mim”.
Lembrei-me bastante do Quentin Tarantino durante a sessão, até por ter visto recentemente seu último filme. Quais as suas principais referências para Bacurau?
KMF: Essa questão do Tarantino é interessante. Ele é um cineasta vivo, que realiza um cinema popular há 25 anos. Para uma nova geração, é uma referência imediata. Mas é muito importante deixar claro que quando eu e Juliano sentamos para pensar Bacurau, a gente estava voltando um pouco mais, pensando em Brian De Palma, Paul Verhoeven, George Romero, John Carpenter, Roberto Santos, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Glauber Rocha, Joe Dante, Steven Spielberg, Michael Cimino, além do fotógrafo húngaro Vilmos Zsigmond. Acho o primeiro Duro de Matar (1988), do John McTiernan, um puta filme de entretenimento popular. Então, há todas essas coisas que, para gente, são muito mais importantes do que simplesmente mirar o Quentin Tarantino, cineasta que, aliás, admiro bastante. Já escrevi sobre vários filmes dele, inclusive acho o Era Uma vez em… Hollywood (2019) um filme bem curioso, uma anomalia na produção norte-americana.
E essa sua parceria com o Juliano?
KMF: Juliano é um grande amigo. Tivemos a ideia do filme juntos. Estávamos no Festival de Brasília com Recife Frio (2009). Desenvolvemos nesse meio tempo outros projetos, cada um teve sua vida pessoal, mas continuamos a trabalhar em Bacurau. Depois de Aquarius, para mim era muito claro, até pelo estágio de desenvolvimento, que esse seria meu próximo filme. Tivemos um período que chamo de “maníaco”, com o Juliano lá em casa das 9 horas da manhã às 5 horas da tarde para trabalharmos no roteiro. Toda vez que tínhamos um “branco”, assistíamos a um filme. Minha preocupação era como funcionaria a nossa dinâmica no set, diante de decisões que precisam ser tomadas. Como funcionaria aquilo com duas pessoas? Felizmente tudo se deu muito bem. Continuamos grandes amigos (risos). Estamos viajando para promover o filme e nos divertindo bastante.
JD: Assistimos a muitos westerns. A estrutura desse gênero meio que ditou o fio condutor do filme. Mas não tanto os exemplares mais clássicos, até porque tínhamos uma ideia de romper com eles, especialmente quanto à apresentação dos índios quase como invasores. Os índios não são invasores, isso está historicamente errado.
Juliano, o Thomas Aquino nos disse que você pediu para ele assistir a alguns filmes do Clint Eastwood…
JD: Na verdade, não exatamente filmes do Clint, mas um personagem específico, que é o protagonista de Os Imperdoáveis (1992), uma espécie de amálgama de todos os personagens do Clint, mas que ao mesmo tempo é um personagem anti-violência. É o anti-herói relutante, o cara que queria se afastar da sua vida de violência, mas que é puxado para ela novamente.
A sua colaboração com Kleber vem de longa data, mas agora as coisas são um pouco diferentes. Seu crédito neste filme é o de codiretor. O que que mudou nesse processo?
JD: Não. Não sou codiretor. Sou diretor. Estou fazendo a correção apenas porque é importante fazê-la. Me incomoda ser chamado de codiretor. A imprensa às vezes se esquece de mencionar o meu nome, aliás. Isso vem acontecendo. Fizemos tudo juntos, desde o começo. Então preciso marcar essa posição. Estávamos sempre juntos, tomando atitudes conjuntas, respondendo às mesmas perguntas. Apenas num momento filmamos cenas diferentes simultaneamente por uma questão de plano de filmagem. Essa coisa da colaboração, do senso de grupo, vem de uma confiança desenvolvida ao longo dos anos. Trabalhando bastante com amigos, aprendendo a fazer cinema juntos. Kleber puxava corda e um monte de gente veio junto, inclusive eu.
Durante o processo, quanto mais urgente e necessário o filme se tornou?
JD: Bacurau vem sendo desenvolvido desde 2009. O elemento da provocação e da rebeldia vinha de um desejo de abordar o que nos incomodava. Talvez naquela época esse incômodo fosse um pouco mais jovem e usasse roupas diferentes. Estávamos num festival de cinema, no qual assistimos a vários documentários etnográficos, muito bem intencionados, mas com os quais não concordávamos em relação aos seus objetos de estudo. Os filmes consideravam essas pessoas simples, com um olhar condescendente, sabe? Ficamos muito incomodados e começamos a falar sobre isso. Nosso desejo então partiu dessa vontade de falar sobre uma realidade em que forasteiros chegam achando que sabem de tudo, mas na verdade não sabem de nada.
E como foi o Festival de Cannes, especialmente a experiência de exibir por lá?
JD: Foi um momento de entender que o tipo de cinema que nos interessa também interessa a outras pessoas. E o Festival de Cannes é o lugar mais incrível do mundo para isso, um espaço feito para que os filmes sejam vistos da melhor maneira possível. Infelizmente não temos tempo, mas eu poderia passar horas aqui falando da experiência lá. Ainda mais levando em consideração a situação em que o Brasil se encontra, foi muito importante representar o país lá fora, dessa maneira. É uma emoção indescritível.
O que Bacurau tem a dizer para o Brasil de hoje?
KMF: Todo mundo está falando sobre isso. É bem impressionante. Aconteceu também com Aquarius, de certa forma. O que posso dizer é que como artista você capta algumas coisas no ar, com uma antena e termina transformando as coisas em expressão artística. Quando o Donald Trump foi eleito nos Estados Unidos, ficamos impressionados, até porque isso claramente teria impacto na percepção do filme. Atualmente o Brasil passa por um momento bastante peculiar da sua história, no qual há vários retrocessos. O que de melhor o filme pode falar sobre isso é que armas deveriam fazer parte do acervo dos museus. A grande ideia sobre a qual gostaria que as pessoas parassem para pensar um pouco é justamente essa.
(Entrevistas concedidas ao vivo, separadamente, durante o Festival de Gramado 2019)
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