Ramata-Toulaye Sy alcançou um feito e tanto logo com o seu longa de estreia: Banel & Adama foi selecionado para a mostra competitiva principal do Festival de Cannes, um dos mais importantes eventos cinematográficos de todo o mundo. Para se ter uma ideia, estava concorrendo ao lado de veteranos consagrados, como Ken Loach, Wes Anderson, Wim Wenders, Nuri Bilge Ceylan, Hirokazu Koreeda, Nanni Moretti, Marco Bellocchio e Todd Haynes, entre outros.
O impacto dessa exibição despertou a curiosidade nos cinco continentes, levando seu filme a ser convidado para os festivais de Chicago, Jerusalem, Melbourne, Munique, Marrakesh e muitos outros. Inclusive, no Brasil, onde participou de sessões com o público em Salvador e em São Paulo. Foi durante sua passagem pelo país que conversou com exclusividade com o Papo de Cinema, revelando suas inspirações para esse que foi escolhido como representante oficial de Senegal no Oscar 2024. Confira!
Bom dia, Ramata. Prazer falar contigo. Assisti ao teu filme ontem à noite, foi uma experiência comovente.
Ah, muito obrigado. É lindo ouvir isso. Também estou feliz por essa oportunidade de conversarmos sobre Banel & Adama.
Bom, para começar… o nome do filme é Banel & Adama, quase Eva e Adão. Mas no final é só Banel. É sobre a Banel, certo?
Sim, você tem razão. O filme se chama Banel & Adama porque queria contar uma história de amor. Isso lá no começo do projeto, quando a ideia nasceu em mim. Mas à medida em que ia desenvolvendo a história, mais a respeito de Banel a trama crescia. Mesmo assim, não senti vontade de alterar o título, o que poderia ter feito, pois apesar de Banel ser a protagonista, é também sobre a relação dela com Adama.
Não existe Banel, ao menos não nessa história, sem o Adama. E você pontuou bem, é claro que a inspiração para o roteiro vem de Adão e Eva. O nome Adama é derivativo de Adão. Mas tem elementos, no meu conto, também de Romeu & Julieta, por exemplo.
O filme fala de uma história de amor, mas também de obsessão, de patriarcado, de tradições seculares. O amor pode tudo? Ou há situação nas quais o amor não é o bastante?
Uau… esta é uma questão complexa. Mas vamos lá. Vou tentar responder pelo ponto de vista da Banel. Quis escrever a história de uma mulher que vai se tornando obcecada, um pouco louca, por causa de todo o amor que está sentindo, mas não apenas por isso. Há muita influência da comunidade na qual ela se encontra. A história de amor é dela, mas não é compartilhada por todos que estão ali.
Tem questões sobre o patriarcado, mas o debate é amplo. Meu interesse estava em contrapor o coletivo e o indivíduo. Como encontrar a sua individualidade em uma sociedade tão opressora? Acredito que, no final, Banel, por não conseguir esse isolamento, acaba optando por si própria. Ela escolhe a si mesma, abandonando os demais.
Queria que falasse dessa mulher, a Banel. Como surgiu a inspiração para ela? Por vezes é difícil se conectar com ela. Como torná-la simpática, próxima da audiência?
Não me importo se não se identificarem com ela. Não escrevi essa personagem para que fosse amigável. Você sabe, Lady Macbeth não é nada simpática. Medéia não é alguém que você gostaria de ter como amiga. Mas, no final, é sobre elas que todos seguem comentando. Até hoje seguem fazendo filmes sobre Lady Macbeth, ou sobre Medéia. Mas, é claro, não tenho a aspiração de ter criado uma personagem tão marcante quanto essas duas.
Apenas queria contar a história de uma mulher africana que tivesse sua força, que fosse complexa, com sentimentos profundos. Como geralmente acontece com os homens. No final das contas, espero que entendem as motivações de Banel. Se gostarem ou não dela, não me importa. O que busco é que ao menos a compreendam.
É raro vermos um filme de Senegal no circuito comercial brasileiro, ou mesmo circulando por grandes festivais. Como é o cenário no seu país?
A produção cinematográfica no Senegal foi retomada faz poucos anos. No entanto, temos em nossa história grandes realizadores, de alcance internacional. Como Ousmane Sembene (A Negra De…, 1966) e Djibril Diop Mambéty (Hienas, 1992), por exemplo. Ou Safi Faye (Carta Camponesa, 1976), alguém que gosto sempre de citar, pois foi uma grande cineasta mulher. Mas é verdade que, durante os anos 1990, até o início dos 2000, o cinema nacional praticamente desapareceu no meu país. Inclusive as salas de exibição, não existia mais nada.
Porém, felizmente, nos últimos anos teve início o que temos chamado de ‘nova era de ouro do cinema senegalês’. Tudo começou com Atlantique (2019), de Mati Diop. Logo depois veio Mamadou Dia (Baamum Nafi, 2019), e muitos outros. Hoje temos cinemas de rua e também em centros comerciais. A situação está diferente, e para melhor.
Bom, e falando de festivais, vocês foram selecionados para Cannes. Como foi a passagem por este que é o mais importante festival de cinema do mundo?
Foi muito bom. Só pelo fato de ter sido selecionada para a mostra competitiva principal, logo com o meu primeiro filme, é claro que não esperava por isso. Todo mundo fala de Cannes, é o sonho de qualquer cineasta, mas nem passava pela minha cabeça. Imaginava que, no máximo, me chamariam para a paralela Un Certain Regard. Então, posso afirmar que foi uma ótima surpresa.
Fiquei orgulhosa, não apenas por mim, mas por Senegal. Sou, em toda a história do festival, apenas a segunda realizadora negra a disputar a Palma de Ouro. Antes de mim, apenas Mati Diop havia tido essa oportunidade, em 2019. É um caminho e tanto a ser percorrido, e há muito a ser feito ainda. Mesmo sendo o meu primeiro longa, e sendo, como costumo dizer, um projeto realmente pequeno, foi feito com muita dedicação. O que estou tentando dizer com esse filme é muito importante para todos nós.
Uma coisa que me chamou atenção são as cores, os tecidos, tudo muito vibrante, como se irradiassem uma luz própria. Essa é uma liberdade do filme ou uma característica de vilarejos como esse que vemos em cena?
O vilarejo onde a história se passa é exatamente como mostramos no filme. Era importante para mim filmar em lugares reais. Aquele é mesmo o lugar onde aquela comunidade vive. Meu desejo é que Banel & Adama seja, ao mesmo tempo, universal e atemporal. Não queria, por exemplo, mostrar eletricidade ou qualquer outra modernidade. Por isso, procuramos até encontrar uma vila que fosse como havíamos imaginado.
Obviamente, tivemos que reconstruir algumas daquelas casas – como, por exemplo, a que está soterrada pela areia. Ela existiu exatamente como está no filme, muitos anos atrás, mas foi destruída pelo tempo. Nós colocamos aquelas paredes de pé mais uma vez. Para a fotografia, era importante compor uma imagem atraente, pois sou apaixonada pela arte moderna, por expressões contemporâneas. Assim como amo também a literatura atual. Foram essas as minhas inspirações. Era minha intenção que o filme fosse visto como uma expressão artística.
Fale um pouco sobre o uso dos animais e dos efeitos visuais. Há cenas de grande impacto. Como foram feitas e como colaboram com o drama dos personagens?
Sim, concordo com você. Os animais eram importantes, assim como o uso dos efeitos, para explorar as consequências das mudanças climáticas. Queria falar sobre como a África tem sido afetada por estas alterações na natureza. Isso está acontecendo. Não é mais uma possibilidade, é algo real. E por mais que os africanos estejam sofrendo com essas transformações, não é por culpa deles. A responsabilidade é do mundo ocidental, dos países europeus e dos Estados Unidos. Portanto, queria provocar também essa discussão.
No entanto, há motivos mais íntimos. Banel, por exemplo, usa os animais para expressar sua frustração. Por isso os mata. Como não pode matar os homens e mulheres que estão ao seu redor, acaba descontando nos animais que encontra. Isso fala muito sobre ela e a respeito do sofrimento e da tristeza que ocupa sua alma.
Você conhece o Brasil? E o cinema brasileiro?
Esta é a minha primeira vez no Brasil. E, infelizmente, conheço pouco sobre o cinema brasileiro. Assisti a poucos filmes feitos aqui, como, por exemplo, alguma coisa do Karim Ainouz. Mas estou feliz em ter vindo. São Paulo, onde estou agora, é uma cidade cultural, com manifestações artísticas, e isso tem chamado a minha atenção. Visitei o MASP (Museu de Arte de São Paulo), e fui na Pinacoteca. Passamos também por feirinhas de rua, muito interessantes.
É valioso para mim ir além da sala de cinema, e poder me expressar através dessas novas descobertas. Na semana passada, estive em Salvador, na Bahia, e foi impressionante me deparar com todas aquelas cores. Certamente essa viagem servirá de inspiração para trabalhos meus no futuro.
Como acredita que os brasileiros irão receber Banel e Adama?
Espero que gostem. Participei de algumas sessões de pré-estreia, tanto em Salvador, como em São Paulo, e a recepção foi boa, pelo que percebi. Penso que este é um filme fácil das pessoas se conectarem. Decidi contar essa história para o povo africano, mas não apenas para eles. O mundo inteiro pode se ver no filme. Era importante para mim usar uma linguagem que fosse universal.
Em algumas sessões de conversa e debates, pessoas chegaram até mim e disseram que Banel e Adama as lembravam do norte, do nordeste do Brasil. Isso me deixou feliz. Portanto, acredito ser possível que o espectador brasileiro consiga criar uma ligação com o meu filme.
Entrevista feita por telefone em setembro de 2024
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