Há 13 anos, Barbara Sturm atua na distribuição de filmes e em festivais de cinema. Seja com a Pandora Filmes, com o cinema Belas Artes (atualmente, Petra Belas Artes, em São Paulo) ou com a Elo Company, acompanhou projetos desde a criação até o lançamento em salas. Ao longo desta experiência, questionou a representação mínima de mulheres na direção e na tomada de decisões referentes ao audiovisual brasileiro.
Assim, enquanto diretora de conteúdo da Elo Company, desenvolveu há três anos o selo ELAS, para projetos que recebem consultoria especializada e depois ganham lançamento em salas – todos eles dirigidos por mulheres. O Papo de Cinema conversou com Sturm a respeito da situação de crise do cinema brasileiro e as possibilidades de contorná-la:
A percepção da subrepresentatividade feminina na indústria parte tanto dos estudos quanto de uma observação pessoal, certo?
Eu já percebia isso desde o começo da minha carreira, trabalhando com distribuição. É gritante como as mulheres estão na decisão da compra do ingresso, mas não podem se ver nos filmes. Eu sempre falo da minha vida pessoal porque muitas pessoas conhecem meu pai [André Sturm, ex-Secretário da Cultura da Cidade de São Paulo], mas fui criada pela minha mãe e morei com ela. Eles nunca foram casados, e isso foi fundamental na minha formação. As pessoas me perguntam: “Quando você virou feminista?”, e eu respondo “Quando tive uma mãe solteira”. Ela foi o meu exemplo, ao me criar e trabalhar ao mesmo tempo. Sempre quis ver as mulheres com melhor representação. Tanto na Pandora quanto no Belas Artes e no Cinemarabc, sempre tive um olhar de representatividade, tanto para os primeiros filmes quanto as produções dirigidas por mulheres.
Segundo os dados da Ancine, menos de 35% das produções brasileiras foram dirigidas por mulheres no último ano. Como os números têm evoluído?
O cenário tem evoluído bastante. Os players de mercado – as empresas produtoras e distribuidores – têm incluído muito mais mulheres nas funções, o que também diz respeito a aquisições de canais. Quando vamos a rodadas de negócios, percebo muito mais mulheres em posições de decisão. Mas na direção dos filmes, o que representa a liderança artística, a porcentagem feminina ainda é muito baixa. No caso do roteiro, a situação é pior ainda. Mas vejo uma mudança. Quando entrei na Elo Company em 2017, tinha a meta de incluir mais mulheres não apenas na temática das produções, mas também na assinatura das obras. Fiz uma defesa para os meus chefes sobre a importância dessa mudança quanto ao interesse do público. Naquele ano tínhamos Mulher-Maravilha, (2017), Big Little Lies (2017 – 2019) e Lady Bird: A Hora de Voar (2017), para pensar em exemplos muito diferentes que conquistaram um sucesso estrondoso em seus campos específicos. Fiz uma apresentação com cem slides, citando as conquistas de liderança por mulheres em 2017. Era a primeira vez que a orquestra da Áustria teve uma regente mulher, a primeira vez que a PM de Ribeirão Preto teve uma diretora mulher etc. Após estes slides, aprovaram o projeto. Era algo necessário e demandado.
Como percebe a presença feminina em outros setores da criação, como a direção de fotografia, a montagem, a direção de arte?
Temos uma preocupação da representatividade, não apenas feminina, mas da mulher negra e índia. Isso pauta a curadoria do selo ELAS todos os anos. Optamos por ume regra inicial: a direção precisaria ser de mulheres. Assim, poderíamos influir nesta porcentagem muito baixa de produções feitas por mulheres, que atingir a marca de 15% no Brasil, e 4% no mundo inteiro, entre os filmes com lançamento comercial. Hoje, a média de 35% representa uma evolução. É claro que tanto homens quanto mulheres são capazes de desempenhar qualquer função, mas a direção representa um cargo de extremo poder no filme. As mulheres não têm sido incluídas em trabalhos como a fotografia, considerados mais físicos e técnicos.
Vocês pretendem expandir o selo para abarcar novos critérios de inclusão?
Estamos felizes com os resultados após três anos de consultoria. Como os projetos não são nossos, fazia muito sentido ter um grupo de pessoas que prestem consultoria e façam esse trabalho. Tivemos 33 projetos passando pelo selo, e 20 deles foram primeiros filmes. Hoje, temos nove projetos em pós-produção, visando um lançamento próximo, e já tivemos cinco filmes vistos pelo público este ano, seja em cinema ou em festivais. Cada consultoria é individual: os vinte participantes voluntários dão seus retornos sem conversarem entre si. Eles são engajados, acreditam no projeto, e ocupam lugares de produção, distribuição ou roteiro. Desde o começo, o projeto foi digital, para podermos abarcar pessoas de vários locais. Por isso, não precisamos mudar nada no contexto atual de pandemia. Pretendemos continuar no próximo ano. O grande resultado que o selo trouxe foi a comunidade potencializada por ele. No ano passado, participei do Fórum de Lideranças Femininas idealizado pela Débora Ivanov, que visava juntar as mulheres que trabalhavam no audiovisual. A consequência de esforços como estes é o número de 35% atual.
Que outras medidas deveriam ser tomadas, em nível federal ou municipal, para expandir a participação feminina no cinema? Acredita em sistema de cotas em editais ou festivais?
Sim, acredito. As cotas são uma medida de reparação. Elas não deveriam precisar existir, mas no momento em que existem pessoas privilegiadas por cor da pele, gênero e classe social, é fundamental ter mecanismos para equilibrar esta participação. No ano passado tivemos um filme estreando nos festivais de Busan (Aos Olhos de Ernesto, 2019, de Ana Luiza Azevedo) e IDFA (Meu Querido Supermercado, 2019, de Tali Yankelevich). Alguns projetos tiveram consultoria mas não avançaram, não serão feitos. Com o saldo desta experiência, pretendemos continuar com o selo. É claro que vai ser muito difícil para todo mundo sobreviver sem políticas públicas. Sou muito pessimista quanto ao cenário atual: o quadro já era complicado, e chegou um governo que não se preocupa em resolvê-lo. Vai ser difícil encontrar novos meios públicos, porque ironicamente temos um audiovisual independente que depende de recursos públicos. O papel do distribuidor vai ser importante para viabilizar os projetos neste momento.
De que maneira a representatividade feminina se une à inclusão negra, indígena, eventualmente LGBTQI+ e de outros Estados brasileiros?
Eu não me preocupo pela questão dos temas. O governo tem tantos problemas neste momento que se foca em outras coisas, ao invés da temática dos filmes feitos atualmente. Os players – o canal, a plataforma, a sala de cinema, o Drive-in – têm o poder de exibir filmes, e eles não estão associados ao poder público. O elemento mais preocupante é que estes players queiram mostrar sempre a mesma história. A Disney anunciou que vai lançar Mulan (2020) diretamente em formato digital. Isso é péssimo para o retorno das salas. Por outro lado, eu penso nos novos filmes. Todas as pessoas que fizeram filmes por causa de editais fora do eixo, os editais locais, não vão conseguir sobreviver sem políticas públicas. No Brasil, a minha maior preocupação agora diz respeito a como continuaremos fazendo audiovisual, simplesmente. Projetos que tiveram recursos em 2018 ainda não receberam as verbas. O VoD não está regularizado, e vários cinemas tentam usar o THVoD, ou seja, a sala de cinema associada ao digital. Mas não existem leis, ou enquadramentos quanto ao tamanho e à nacionalidade dos filmes.
Acredita que o Premium Video on Demand tem o mesmo potencial de ser explorado no Brasil como nos Estados Unidos? O público brasileiro está disposto a abrir mão da experiência da sala de cinema?
Não sei quanto ao público. Mas sempre digo que distribuidores não trabalham com filme, e sim com produtos. Temos um pensamento de indústria: vou avaliar o quanto me retorna o risco investido. Várias salas de cinema independentes já declararam que não conseguirão mais abrir as portas. Outras abriram campanhas de crowdfunding, ou alguma forma de Drive-in para tentar sobreviver. Vamos supor que amanhã, por milagre, acaba a pandemia e as salas abrem. Que filmes elas vão passar? Não serão os filmes independentes, que infelizmente não têm a força para um retorno econômico. É por causa do quanto é investido de risco sobre o produto. Outro problema: o Fundo Setorial pagava o P&A (custos de impressão e publicidade) de 90% dos filmes brasileiros por meio de financiamento. Mas isso não existe mais, e não deve existir durante um tempo. A média dos filmes brasileiros era de mil pessoas nos dois últimos anos. Por isso eu me preocupo com a possibilidade real de só termos no cinema os mesmos filmes dos mesmos estúdios, contando as mesmas histórias. Teremos apenas projetos familiares, de classificação livre, falando de superação. Sei que temos muitos profissionais inteligentes, que gostam de projetos diferentes, mas temo a passividade.
O Reino Unido destinou milhões de libras aos cinemas independentes, que teriam mais dificuldade de se sustentar na reabertura do que os complexos comerciais. Acredita que a luta, no Brasil, se concentre na exigência de fundos emergenciais?
Sim. Os cinemas independentes foram os primeiros a fechar e serão os últimos a abrirem. Além disso, não consigo entender a diferença de risco representado pelo cinema, shopping center e restaurante. Para mim, eles trazem o mesmo risco. Na minha opinião, é a mesma loucura frequentar qualquer um deles neste momento no Brasil. Por esta situação, em que o cinema é privado de atividades durante mais tempo que outros setores, os fundos de auxílio se justificam. Ainda existem outros fatores ligados à pandemia: vários idosos cinéfilos vão a cinemas independentes, pelo perfil dos filmes exibidos. Quando esta sala abrir, como vão controlar o acesso ao público idoso? Estas questões necessitam de atenção e auxílio.
Acredita na estratégia de investir no digital mais barato e explorar coproduções para viabilizar projetos que aguardam a liberação de recursos?
Esta é a pergunta de um milhão de dólares, ou melhor, cem mil reais! Não sou otimista, nem uma especialista da produção. Acho que a crise no Brasil ainda vá longe, devido a vários motivos relacionados à ignorância de gestores. Mas acredito que seria melhor ter um projeto fora, em coprodução, do que aqui. Um caminho passa pela internacionalização, mas também temos que aproveitar a possibilidade de ter mais coprodutores em Estados diferentes. Além disso, aprendemos muito com as políticas públicas através das PECs nos últimos anos. Como os mercados estão dando certo atualmente pelas mídias digitais, podemos promover laboratórios de desenvolvimento, ainda que à distância. Estes programas serão fundamentais.
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