Em 1990, Tracey Deer tinha doze anos de idade quando se viu imersa na chamada Crise Oka, na província do Quebec, Canadá. Na intenção de expandirem campos de golfe, cidadãos brancos começaram a se apropriar de territórios indígenas mohawk, atacando-os com pedras e privando-os de acesso aos mercados e outros serviços essenciais. A garota indígena sofreu o trauma da violência racista, que decidiu levar aos cinemas no drama biográfico Beans (2020), selecionado no Festival de Toronto.
No filme, Kiawentiio interpreta o papel principal da protagonista mohawk, descobrindo o cruel mundo dos adultos enquanto busca afirmar sua autonomia. O filme transpira tanto o carinho pela juventude da época quanto a indignação pela atitude das forças policiais canadenses, que contribuíram a oprimir os indígenas. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com Tracey Deer, homenageada no TIFF 2020 com o Prêmio de Talento Emergente:
Como experimentou a violência deste episódio durante a pré-adolescência?
Eu tentei traduzir a minha experiência pessoal ao longo do filme. Foi devastador, sobretudo o dia em que jogaram pedras em nós, e não havia nada que a gente pudesse fazer a respeito. Até aquele dia, tudo parecia uma grande aventura para mim. Eu e minha irmã brincávamos o tempo inteiro, e estávamos muito desconectadas do mundo dos adultos. Meus pais não estavam trabalhando naquele dia, não havia gasolina nos carros. As crianças dominavam o lugar, andando de bicicleta pelas ruas. De repente, tudo mudou, e meus dias não pareciam mais divertidos. Esta foi a experiência mais traumática da minha vida. Ela exerceu um impacto imenso na minha autopercepção: subitamente, eu me sentia desvalorizada, desprezada. Aprendi a sentir ódio naquele dia. Eu tinha muita raiva acumulada, mas não sabia exatamente contra o quê. Enfrentei uma depressão profunda, e tive tendências suicidas aos 14 anos de idade.
Toda a minha adolescência foi muito difícil por causa da sensação de impotência que eu sofria. Não via mais um futuro para mim, não acreditava que poderia concretizar meus sonhos. O mundo parecia perigoso demais. Pensava: “Para quê todo o meu esforço? Se não posso viver a minha vida como quero, se vou ser perseguida e cerceada, para quê me esforçar?”. Felizmente, consegui sair desta situação ao canalizar todas as minhas energias para provar que aquelas pessoas estavam erradas. Fiz disso a minha missão: eu provaria que tinha valor, que minha voz era importante. Isso me levou a dirigir toda a minha força ao desejo de me tornar cineasta. Nem todas as pessoas conseguem escapar desta escuridão. Esta é a razão que me levou a fazer o filme: queria mostrar que nós, enquanto sociedade, podemos ser melhores do que isso. Não quero que as crianças passem por experiências tão destrutivas quanto essa pela qual passei.
Como o Canadá lida com a memória deste evento? A comunidade mohawk conseguiu estabelecer seus direitos desde então?
Desde os eventos de 30 anos atrás, não acredito que a dinâmica tenha mudado muito. Pelo menos, a província de Quebec percebeu que não poderia mais tentar nos expulsar. No que diz respeito à memória canadense, este episódio sequer é mencionado aos alunos nas escolas. Muitos momentos de genocídio contra povos indígenas, em diversos países, ainda não são incorporados às histórias oficiais. Entretanto, percebo esforços reais para mudar esta configuração, através de grupos que lutam para incorporar estas passagens da nossa vivência ao currículo escolar. Aprendemos toda a história sobre o sul do país, mas o Canadá ainda precisa assumir a parte feia de sua História, e se reconciliar com ela. Isso é fundamental para seguirmos em frente no que diz respeito ao tratamento de pessoas indígenas. Ainda estamos distantes de uma aceitação plena dos direitos indígenas, mas estamos seguindo em frente, e isso é encorajador.
Em que medida queria se ater à precisão dos fatos históricos dentro da sua ficção?
Todos os eventos diretamente conectados à crise Oka ocorreram de fato. Não inventei nenhuma daquelas passagens, porque eu não precisava: elas existiram, e foram impactantes o bastante por si próprias. Os laços familiares, especialmente a descoberta da vida adulta pela garota adolescente, eram fictícios. Não vivi a minha história da mesma maneira que Beans. Esta família é fictícia: embora sejam inspirados da minha vivência, eu me permiti a apropriação de lembranças para criar uma jornada nova.
Como decidiu a melhor maneira de retratar a violência? Penso na cena do ataque dentro do supermercado, e sobretudo no abuso sexual.
Era fundamental para mim não causar um trauma para ninguém. Esse era um desafio grande, porque as cenas são traumáticas. Trabalhei muito com a minha diretora de fotografia, Marie Davignon, para filmar da maneira mais segura possível para as pessoas, tanto física quanto psicologicamente, e ainda transmitir na tela um efeito traumático. Queria que todos tivessem uma boa experiência na filmagem, sobretudo o elenco jovem, que precisava estar seguro. Jamais aceitaria transmitir a estas pessoas o trauma que eu vivenciei. Por isso, trabalhamos com uma preparadora de elenco, Melee Hutton, para todas as cenas de forte impacto emocional. Ela os ajudou na preparação, durante as filmagens e também depois das cenas, para eles relaxarem depois das filmagens. Eu também estava presente, é claro, mas enquanto diretora, existia uma equipe inteira precisando da minha atenção. A preparadora cuidou do bem-estar emocional das crianças.
No que diz respeito à cena de abuso sexual, trabalhamos com uma coordenadora de intimidade, Lindsay Somers, e a experiência foi maravilhosa. Conversei com Lindsay sobre o efeito que pretendia atingir, e conversamos aos poucos com os atores. Nós nos alternamos nas explicações e nos ensaios: enquanto Lindsay trabalhava com Kiawentiio, eu ensaiava com D’Pharaoh. Discutimos muito os níveis de intimidade e consentimento. Onde poderíamos colocar as mãos, onde ficariam os corpos? Decidimos filmar a cena com dublês, para ambos os atores, para que nenhum dos dois jovens atores precisasse passar por esta experiência juntos. Mesmo que fosse um faz de conta, e que estivessem atuando, se nós fizéssemos bem o trabalho, aquilo pareceria real. Kiawentiio teve uma mulher como dublê. Em todas as imagens mais fortes daquela cena, ela está atuando com uma mulher de baixa estatura, usando as roupas do personagem masculino. Em paralelo, a dublê de Beans também era uma mulher adulta. Assim, o ator adolescente não precisaria passar por aquela cena com uma criança. Tomamos muito cuidado, e pensamos na coreografia durante bastante tempo.
Kiawentiio foi escolhida entre mais de 200 garotas. O que a atraiu nela, e como a preparou para viver uma época que ela não tinha vivenciado?
Eu conheci Kiawentiio na série Anne With an E (2017 – 2019), da Netflix. Eu era roteirista e coprodutora executiva, e cuidei da subtrama indígena na terceira temporada, quando precisamos de uma garotinha indígena de 12 anos de idade. Ela foi escolhida para esse papel, e percebi uma evolução imensa dela enquanto atriz nesta série. Então, ela foi convidada para os testes de Beans, mas queria abrir o processo a jovens atrizes de todo o país, porque era um papel de peso. Acabamos selecionando seis atrizes, que foram convidadas para uma oficina de dois dias em Toronto com a nossa preparadora de elenco. Fizemos outro teste no final deste processo, e durante este período, fiquei cada vez mais encantada com Kiawentiio. Ela era incrivelmente inteligente, e demonstrava uma vulnerabilidade emocional inesperada. Além disso, tinha instintos muito afiados, ou seja, todas as características necessárias para se tornar uma grande atriz. Essas também eram características fundamentais para interpretar Beans. Por isso, no final desta oficina, tive a certeza que queria ver Kiawentiio interpretar a personagem principal.
Discutimos muito com ela e os pais dela sobre as exigências do papel. Era fundamental que a família dela entendesse todas as cenas que precisariam filmar. Mesmo antes da oficina em Toronto, todos os pais que receberam o roteiro precisavam ter a certeza das cenas que precisaríamos fazer, e da experiência pela qual a criança iria passar. Assim, caso não ficassem confortáveis, poderiam me dizer. Não queria surpresas nem para as atrizes, nem para os pais. Tive várias conversas com Kiawentiio e com os pais, quando expliquei exatamente como seriam filmadas as cenas mais pesadas, poupando a garota de uma exposição excessiva à violência. Em diversos momentos, quando era preciso ter Kiawentiio e os atores adultos na mesma cena, nós mudamos o diálogo, para que dissessem frases muito menos agressivas à jovem. Felizmente, ela é tão talentosa que interpretava muito bem: ela nem precisava ouvir os insultos, bastava compreender o sentido da cena e ela fornecia exatamente a reação de que precisávamos. Quando tudo isso foi compreendido, os pais dela aceitaram, e ela quis participar também. No final, a jornada foi incrível.
Os debates sobre abuso de força policial têm se intensificado em tempos de movimentos como Black Lives Matter. Que relações enxerga entre estas rebeliões?
Infelizmente, Beans ainda é um filme muito contemporâneo. Tenho a impressão de que não aprendemos nada enquanto sociedade, porque cenas como aquela ainda ocorrem atualmente. O filme é um testamento sobre todo o progresso que não fizemos. Isso é trágico e deprimente. Ao mesmo tempo, não fico surpresa, porque as mudanças estão nas mãos de pessoas poderosas que não desejam abrir mão desse poder, e que resistem fortemente a mudanças. Espero que o filme consiga ilustrar o impacto devastador que episódios de violência policial exercem sobre as novas gerações. Este é um círculo vicioso: conforme ferimos as nossas crianças, e elas aprendem a odiar, o ciclo continuará.
A comunidade mohawk teve a oportunidade de assistir ao filme?
Ainda não houve nenhuma exibição privada. A sessão em Toronto foi a primeira do filme, porque nós o concluímos apenas três semanas atrás. Infelizmente, ainda não sei como os canadenses mohawk vão interpretar o filme, mas garanto que estou tão ansiosa e curiosa quanto você para saber como meu povo vai abraçar o filme.
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