Nascida em Petrópolis, no Rio de Janeiro, Karine Teles começou a estudar teatro em Maceió, para onde se mudou com a família. Pouco depois, fez praticamente o caminho inverso, indo à capital fluminense a fim de graduar-se na arte escolhida como forma de expressão. Portanto, ela entende o sentimento do jovem Fernando (Konstantinos Sarris), o filho que em Benzinho (2018) está prestes a buscar uma melhor oportunidade profissional longe de casa. Como mãe, a atriz também está, de certa forma, próxima à Irene, sua personagem em conflito, exatamente, por conta da saída do filho do ninho. Além de protagonista, Karine é uma das roteiristas, então figura criativa absolutamente essencial para que o longa-metragem assinado por seu ex-marido, Gustavo Pizzi, venha colhendo tantos elogios. Depois de passar por terras internacionais, de ser festejado no Festival de Sundance e no Festival de Punta del Este, Benzinho debutou em terras brasileiras no Festival de Gramado. Na ocasião, conversamos com Karine longamente sobre o processo de gestação e produção do filme, bem como acerca do desenvolvimento de sua carreira cinematográfica. Confira este Papo de Cinema.

 

Como surgiu o Benzinho?
Depois do Riscado, nosso primeiro filme, eu e o Gustavo estávamos pensando em qual seria o próximo projeto, afinal de contas isso define como vai ser a sua vida nos próximos anos. Na época, estávamos casados. Os gêmeos tinham cerca de dois anos e nos tocamos de que se eles saíssem de casa com a mesma idade com que nós saímos, nos restariam, mais ou menos, 15 anos de convivência (risos). Pensamos que realmente nossos pais devem ter sofrido muito quando resolvemos sair do ninho. Não deve ter sido fácil para eles. Gustavo saiu de casa com 16 e eu com 17. 

Esse foi um projeto que nasceu realmente de vocês dois?
Foi realmente uma gestação conjunta. Trabalhamos de um jeito engraçado. Temos conversas sobre os rumos do filme, mas nunca sentamos para escrever juntos. Nesse caso, estávamos em viagem, mais precisamente num festival. Assim que voltamos para casa, sentei na frente do computador e “vomitei” um primeiro tratamento. Gustavo leu, conversamos e aí ele mexeu. É assim que trabalhamos. O Gilda, nosso próximo filme, também está sendo desenvolvido assim.

 

Riscado te abriu muitas portas, não é? Afinal, foi seu primeiro longa-metragem com protagonista.
Com certeza. Até então tinha feito uma participação em Madame Satã, o que já me deixou louca de amor pelo cinema. Mas em Riscado tive minha primeira protagonista, na verdade, a primeira personagem. E na época, em 2010, nós tínhamos cerca de dez ou 12 produções por ano no Brasil, ou seja, estava ainda mais complicado.

 

Um sucesso desses, logo de cara, não é um pouco atordoante?
É que na verdade não foi o começo de tudo. Quando fiz o Riscado, já trabalhava como atriz há cerca de 16 anos. Claro que fiquei muito feliz de ver meu trabalho reconhecido. Trabalhava bastante em teatro, numa seara alternativa, com autores contemporâneos, em circuitos voltados à experimentação. Realmente não era muito conhecida fora do meio. Com o Riscado, consolidei meu nome no meio. A minha carreira vai andando bem aos pouquinhos e eu gosto disso.

Assistindo à Benzinho, pensei em dois outros filmes: Como Nossos Pais e Que Horas Ela Volta?. Para mim, os três formam uma espécie de trilogia informal da mãe brasileira. Como você tem visto esse crescente protagonismo feminino no cinema brasileiro?
Ah, que ótima essa observação sobre as mães. Não tinha pensado nisso, mas faz sentido. Sobre o protagonismo feminino, acredito que isso é fundamental. O movimento é importantíssimo. Somos mais da metade da população mundial e responsáveis pela vida no planeta (risos). As mulheres são muito fortes. Estamos num momento de crise global, no sentido de que os sistemas de governo colapsaram. Essa busca por um olhar feminino, pela força da mulher a potência dela é imprescindível. Observar as formas como as mulheres administram suas vidas pode ser o início de uma transformação bonita. Todavia, temos de ralar para caramba a fim de equalizar os poderes. Estamos longe de qualquer equilíbrio. E a arte é uma das armas mais poderosas que a gente tem.

 

Benzinho chama a atenção pela sensibilidade. Como foi o trabalho de construção do roteiro?
Demorou muito para ficar pronto, justamente porque queríamos encontrar esse lugar que comportasse uma narrativa quase clássica, em termos de você ter uma história com início meio e fim, mas, ao mesmo tempo, a gente acredita que o cinema não acontece apenas na história. Ele surge da combinação de imagens e sons. A trama acaba sendo uma desculpa para acontecimentos poéticos, imagéticos. Como eu e o Gustavo escrevemos roteiros para ele dirigir e eu atuar, nosso trabalho, às vezes, é um pouco difícil de ser entendido por outras pessoas. Sabemos exatamente o que quer dizer cada frase colocada. Participamos de alguns laboratórios, tivemos consultorias. Nosso trabalho se dá muito no período de ensaios. A escolha do elenco é um pedaço fundamental.

 

Fazer um filme em que você está quase integralmente em cena te deixa um pouco insegura ou é justamente isso que lhe alimenta?
Engraçado, não pensei sobre isso quando estava escrevendo e tampouco ao começar a fazer. Mas, realmente, é bem puxado. Foi o trabalho mais difícil que já fiz na minha vida. Meus filhos estavam no set comigo, atuando. Foi bastante cansativo e desafiador emocionalmente. A Irene saiu muito de dentro de mim, mas não sou eu. Aqueles lugares emocionais dela eu conheço, e não são exatamente fáceis de encontrar. Mas, toda mãe se identifica. Então, claro, é preciso coragem. E a coragem só existe por que há o medo, o respeito. Tenho muito respeito pelo cinema.

No elenco há pessoas com quem tu já trabalhou, mas, por exemplo, Adriana Esteves, Mateus Solano e César Troncoso não são necessariamente escolhas óbvias. Como vocês chegaram a esses nomes?
Você entendeu exatamente o nosso jeito de pensar elenco. Nunca sucumbimos ao óbvio. Não trabalhamos com produtor de elenco. Acreditamos que o ator precisa de opinião, ele não é um objeto de cena. Quando você coloca pessoas para fazer personagens que não têm a ver, no primeiro momento, naturalmente camadas são acrescentadas. Se você pega um jovem para interpretar o chefe da Irene, dono de uma fábrica, automaticamente cria uma camada política. Quando você escolhe o Otávio Müller, um homem que viajou o mundo inteiro, extremamente culto, e o coloca para interpretar o Claus, um sonhador que nunca saiu daquele espaço dele, você dá uma dimensão gigantesca àquele homem. Adriana é uma grande estrela, uma atriz descomunal. Coloca-la ali, ao meu lado, com minha irmã, é uma beleza. Para mim, o trabalho da Adriana é irrepreensível nesse filme. Ela tem essa generosidade incrível.

 

E como foi chegar ao Konstantinos?
Teste. Fizemos um teste gigantesco. Ele foi o último ator a aparecer. Houve uma primeira seleção, uma entrevista com mais de 100 meninos de escola de teatro, filhos de amigos, enfim, um monte de gente. E ele foi o último a aparecer. Como atriz, acho teste uma coisa injusta, por que tem aquilo do nervosismo que mina muito a disponibilidade do ator para contracenar. Pensando nisso, teve uma segunda etapa, uma oficina de quatro dias com 10 dos meninos que achávamos que poderiam assumir o papel. E aí ficou claríssimo que era Konstantinos.

 

Como você percebe a transformação/evolução da sua persona cinematográfica desde o Riscado?
Tenho dado muita sorte de conseguir fazer os meus próprios projetos, de conhecer pessoas muito interessantes que pensam cinema de uma maneira bem parecida com a minha. Sorte de fazer personagens diferentes uns dos outros. Sou realmente sortuda. Recentemente, fiz dois curtas-metragens com os meninos da Filmes de Plástico, projetos completamente distintos, participei de um longa e acabei entrando no núcleo criativo deles. Firmamos uma parceria excelente. Escrevi o primeiro roteiro que vou dirigir, chamado Regra Três, mas ainda não sei ainda quando vai acontecer. Estou no terceiro tratamento do roteiro, terminando esse ciclo do núcleo criativo até março de 2019. Aí vamos ver o que acontece. Mas tomei coragem para dirigir, finalmente.

 

E sobre o Gilda, seu próximo projeto com o Gustavo?
É baseado numa peça teatral, do Rodrigo de Roure. Vamos filmar neste ano. Gilda mora no subúrbio do Rio de Janeiro, sozinha, numa casa herdada do pai, assim como a profissão. Ela abate animais, porcos e galinhas, para pequenos comerciantes locais. É uma mulher que ama livremente, generosa e bastante desapegada de conceitos moralistas. É quase uma entidade, um arquétipo. Mas essa liberdade começa a incomodar as vizinhas e se inicia uma guerra. De um lado, as moralistas religiosas, do outro, a Gilda.

Chegando com a equipe para apresentar “Benzinho” no Festival de Gramado – Foto: Edison Vara

Você já foi bastante premiada, inclusive venceu o Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro. O que acha desse reconhecimento?
Tenho pensando muito sobre isso recentemente. Concurso têm me incomodado profundamente. Na vida, perdemos grandes oportunidades quando decidimos competir. Meus questionamentos vêm um pouco por causa do feminismo, que tenho discutido bastante. Essa competição entre as mulheres, algo estimulado, é complicada. Como é poderoso quando a gente para de disputar, dá as mãos e segue juntas. Competir traz automaticamente uma pressão. Mas, claro, prêmios ainda são reconhecimentos importantes, especialmente para filmes como Riscado e Benzinho, não pensados para grandes bilheterias, que não têm essa vocação de blockbuster. Como atriz, de certa maneira, esses reconhecimentos alavancaram a possibilidade de eu sobreviver do que gosto de fazer.

(Entrevista concedida no Festival de Cinema de Punta Del Este, no Uruguai, em fevereiro de 2018)

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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