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Nascido em Guiné-Bissau e criado em Portugal, Welket Bungué está bastante acostumado tanto com o cinema europeu quanto com as produções brasileiras, tendo feito uma pós-graduação na UniRio e participado de projetos como Joaquim (2017), de Marcelo Gomes. O ator, escritor e ativista esteve presente no Festival de Berlim 2020 como protagonista de Berlin Alexanderplatz, filme exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

O texto clássico de Alfred Döblin, publicado em 1929, já tinha sido adaptado por Rainer Werner Fassbinder, mas agora ganha uma versão contemporânea dirigida pelo cineasta alemão-afegão Burhan Qurbani. O herói trágico se converte num refugiado africano que, diante da falta de oportunidades na Europa, recorre ao mundo do crime. Francis (Bungué) se relaciona com psicopatas e mafiosos que o fazem perder os rumos da vida.

 

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Welket Bungué no Festival de Berlim

 

“Trabalhei muito com o cinema brasileiro, e espero continuar trabalhando”, ele relata em entrevista exclusiva ao Papo de Cinema. “Ver este filme que significa tanto para a minha trajetória artística sendo exibido no Brasil é muito importante para mim. Eu não apenas tenho amigos e colegas de produção por aí, mas acho importante que ele esteja dentro do contexto da Mostra, sobretudo no Brasil, que atravessa uma crise política e humanitária nesse momento”. Confira o bate-papo na íntegra:

 

Que contato prévio você tinha com o livro ou a adaptação original de Berlin Alexanderplatz?
Eu cresci em Portugal, onde tempos pouca familiaridade com a cultura alemã. Mesmo assim, na faculdade, aprendi um pouco da literatura alemã através de autores como Goethe e Brecht. Em 2017, tinha acabado de voltar ao Brasil após participar do Festival de Berlim com Joaquim, de Marcelo Gomes. No Rio de Janeiro, em abril, recebi um e-mail meio estranho, em alemão, referente a esse filme. Diziam que tinham me visto no Joaquim e tinham interesse que eu enviasse um self tape para eles, interpretando algumas linhas do texto e falando sobre mim. Assim começou a aventura desse projeto, que durou cerca de três anos. Quando eu voltei à Europa, em 2017, pude participar dos testes ao vivo e conhecer meus colegas de projeto, como o Albrecht Schuch e a Jella Haase.
Filmamos em 2018, entre maio e julho aqui em Berlim. Antes disso, eu estudei alemão durante três meses em Portugal, e depois de maneira muito mais intensiva em Berlim com uma dialect coach. Ela já tinha ajudado o Mickey Rourke a falar alemão num filme anterior, então é claro ela ia conseguir trabalhar comigo também! Em dezembro de 2018, fui para a África do Sul depois de fazer o filme da Laís Bodanzky, A Viagem de Pedro (2021). Filmamos novas cenas na África do Sul, e mais tarde, ainda fiz dublagem num estúdio em São Conrado. O resultado estreou em janeiro de 2020. Tenho grande apreço por este projeto.

 

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Berlin Alexanderplatz

 

No Festival de Berlim, o filme provocou um impacto muito forte.
Aquela foi outra viagem, porque as salas estão preparadas para propiciar a melhor experiência cinematográfica possível. Esse filme ainda tem uma banda sonora impressionante e premiada. O diretor de fotografia também já tinha trabalhado com o Qurbani, e a equipe de efeitos especiais era muito profissional. A produtora de elenco foi muito atenta: ela estava há dois anos fazendo o casting internacional, procurando um ator para esse projeto. O resultado é muito balanceado entre o elenco, tendo bastante representatividade. Só não é ainda mais representativo por causa das limitações: é difícil se aprofundar em todos os contornos mais sensíveis às culturas.

 

Como acredita que esta história escrita há quase cem anos se adapte à Europa de hoje?
A Europa de hoje renega e invisibiliza esta miscigenação humana e cultural que foi provocada desde as invasões dos continentes americano e africano por parte dos europeus. Hoje, mais do que nunca, gerações descendentes desses territórios descolonizados, tanto na Alemanha quanto no Brasil e em Portugal, se tornam agente culturais politizados que trazem a proposta de projetos como este. O filme é escrito por um alemão de ascendência africana. Como resultado dessa vivência de integração numa sociedade branca como a alemã, ele percebeu que o texto do Döblin de 1929 deveria ser subvertido para servir às discussões emergenciais de cunho social e político. O texto do Döblin está na gênese da cultura moderna alemã. A história foi escrita no momento da ascensão nazismo, como um prenúncio do que seria a Alemanha nazista.
Embora hoje estejamos em outro momento, vemos uma Europa que lida desajustadamente com recém-chegados de toda a natureza. Esse comportamento é fruto da ocupação indevida de lugares, de culturas e de corpos. Ela não tem sensibilidade para dizer quem pode ou não pode entrar no território, e muito menos serve de exemplo para outras culturas quando as comunidades mais precarizadas precisam se integrar. Os recém-chegados enfrentam uma burocracia tão grande, com acesso tão escasso a estruturas que possam agilizar a legalização, que se veem obrigados a enveredar pelo crime e pela ilicitude, como é o caso do Francis.
Fazendo um paralelo com o texto original, esta nova versão de Berlin Alexanderplatz é ainda mais contundente porque se faz existir na contemporaneidade, ao mesmo tempo em que traz uma cidade interpretada como microcosmo. Apesar das existências e dos embates entre diferentes comunidades, conseguimos vislumbrar uma presença mista na construção desses personagens. Ali eles conseguem ser o que almejam realmente. O não-julgamento, característica de cumplicidade em relação aos personagens, revela o possível caráter de tolerância e empatia sugerido pelo filme nessa Europa que sofre com a queda e o flagelo da democracia como a conhecemos. O filme pontua isso positivamente ao tomar a decisão de adaptar o texto à realidade contemporânea. O personagem principal, que era um homem branco de 40 anos, é adaptado para um homem não-branco, jovem, com muitos sonhos pela frente.

 

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Berlin Alexanderplatz

 

O Brasil tem uma sociedade muito menos branca do que a alemã, e nossa relação com refugiados e imigrantes é distinta. Acredita que o espectador brasileiro possa assimilar esta discussão da mesma maneira?
Em termos temáticos, tenho a impressão de que a história de Berlin Alexanderplatz se insere sobretudo na história de um homem que quer ser bom num mundo que não é. Em termos existenciais, essa é uma condição natural a todos nós. Por este aspecto, o público brasileiro virá a se identificar com o filme. Por outro lado, os fluxos migratórios no Brasil são muito diferentes daqueles na Europa. Embora a narrativa e a moral possam produzir empatia por pessoas que se encontram na situação do Francis, não sei se o público brasileiro terá essa porta de entrada para se identificar e se comover com o filme. Mas a história é muito forte: temos muito conflito, muita emoção e pathos. Existem elementos mágicos, ainda que a tragédia seja convertida num olhar de esperança.
Portanto, gostaria que o público interiorizasse o fato que o mundo reclama por esta miscigenação há muitos séculos, especialmente no Brasil. Este é um exemplo paradigmático que o público brasileiro, com a inteligência emocional e a sensibilidade que tem, pode entender. O filme fala de realidades múltiplas que precisam ser convertidas e adaptadas às condicionantes de cada pessoa. Essa é a função do lugar onde a pessoa se encontra. Um filme de três horas de duração oferece tempo mais do que suficiente para que a gente possa se abstrair do nosso ego e mergulhar no mundo proposto.

 

Como vê o papel da religiosidade nessa história?
Döblin se converteu do judaísmo para o catolicismo, e este livro reflete a mudança de identificação religiosa. Isso acompanha todo o filme, e acaba por trazer um caráter premonitório por conta do fato religioso-católico. Há várias associações possíveis: Mieze, por exemplo, é uma personagem onipresente que ecoa a voz divina, no sentido quase determinista. Na narração, ouvimos Francis fazendo juramentos, mas ele mente. Essa mentira muitas vezes não é deliberada, no entanto a força das circunstâncias vai contra a vontade desse juramento. Isso faz com que a gente caia e tente levantar várias vezes. Há uma presença julgadora ligada à moralidade católica. Não é por acaso que falamos sobre o desejo de ser bom num mundo mau: o aspecto maniqueísta está altamente atrelado à filosofia catolicista. Eu aceitei a fazer esse filme porque, mesmo que ele caia várias vezes, nós sentimos que ele está tomando as decisões erradas dentro do contexto. A forma como o sistema opera, inicialmente em Berlim, mas com equivalências na Europa e em todo o mundo ocidental, opera numa lógica diferente da África. Enquanto homem africano, posso dizer que não agimos dessa maneira. A confiança como característica da personalidade do Francis, e essa bondade natural que não é ingênua, fazem com que ele se atropele tantas vezes durante o filme.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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