Giovanni Venturini está há mais de quinze anos no ofício como ator, mas é possível que muita gente ainda não o conheça. Isso não se deve apenas aos (muitos) papeis coadjuvantes que tem desempenhado ao longo dos anos, mas também por sua condição: trata-se de um homem com nanismo. Essa ausência de notoriedade, no entanto, começa a mudar. E muito se deve por seu trabalho como protagonista do curta-metragem Big Bang (2022), de Carlos Segundo. Premiado nos festivais de Locarno, na Suíça, e no Cine Ceará, em Fortaleza, entre outros, conta a história de um homem invisível aos olhos de muitos, que recorrem a ele apenas em momentos de maior necessidade. Quando o seu pai morre, no entanto, precisa decidir se irá ou não comparecer ao velório. Porém, por detrás dessa relutância, está um plano em desenvolvimento há muito mais tempo. O filme participa também da mostra competitiva nacional do 55º Festival de Brasília, onde o artista se encontrou com o Papo de Cinema para a conversa abaixo. Confira!
Queria começar essa conversa contigo falando sobre a questão do apagamento dos artistas com nanismo no cinema brasileiro.
De fato, essa é uma questão importante. Costumo brincar que as pessoas não olham para baixo, e por isso não nos enxergam. Estão sempre altivas, olhando para frente, e nos esquecem. Então, esse apagamento existe mesmo. Isso quando nos confundem e padronizam, achando que é sempre o cara que faz o Pânico na TV, como se todo corpo com nanismo fosse a mesma pessoa. Como se a gente só fosse capaz de fazer esse tipo de comédia. Cansei se ser abordado e a pessoa me falar: “te conheço de algum lugar, você é aquele da Praça é Nossa?”. Não, não sou eu, mas pode ser que você me conheça, que já tenha me visto em outros lugares, em um filme, ou numa novela. Só não generaliza a deficiência como se fossem todos iguais.
Essa questão vem também por parte da indústria. Vejamos os nomes de alguns dos personagens que você já interpretou: o doutor Pequenotti, o Anão Pequerrucho, o Pires… tendo o batismo como limitador.
Exatamente. São sempre os mesmos tipos que chegam até nós. Com o nome atrelado à condição física. Importante ressaltar que o termo “anão” é muito pejorativo e não deve ser utilizado. O certo a ser dito é “pessoa com nanismo”. Digo isso porque essa palavra que se refere ao pequeno, ou mesmo ao anão, tem sempre um trocadilho por trás. Nunca é um personagem como outro da trama, que tem reconhecido de onde vem, o que faz. É sempre “o anão da história”.
Ao apresentar Big Bang no palco do Festival de Brasília, você comentou que esse é um marco na sua carreira. Existe um antes e um depois desse filme?
Com certeza. É o meu primeiro protagonista em mais de quinze anos de jornada. Apesar de ter sido um filme com baixo orçamento, e já fiz outros com muito mais investimento, mais grana, com patrocínio, nenhum teve tanta importância ou, melhor ainda, relevância para a minha carreira, quanto o Big Bang e o personagem do Chico. Ele traz esses questionamentos de uma forma sutil, sem precisar levantar a bandeira do nanismo. Tem outras temáticas por trás, como a empatia, de se colocar no lugar do outro, da luta de classes. O Chico representa todos os corpos dissidentes, os que foram inviabilizados, sejam por condições físicas, ou classe social, por questão de raça. Consigo enxergar outros atores nesse mesmo papel, mas mudaria a estética do filme.
Algo que já parte da fotografia, que é genial. Ela te convida a criar essa empatia desde o primeiro instante.
Então, essa era a ideia. Era sobre o universo desse cara, que ninguém está acostumado a enxergar, porque só olha para frente. Então, aqui, vamos acompanhar o olhar desse homem, ver como ele enxerga o mundo e como o mundo enxerga ele.
Apesar dessa mudança de olhar estar posta desde a primeira cena, fica evidente quando a personagem da Aryadne Amancio se abaixa para conversa com ele no hospital. É muito sutil, e ainda assim, poderoso.
É uma grande prova de empatia que ela dá. É a primeira personagem no filme a se abaixar para falar com ele, e entender quem é essa pessoa. Um cara solitário, que carrega uma grande mágoa, tem essa dor ali dentro que não compartilha, pois ninguém olha para ele. A primeira pessoa que realmente faz esse esforço para se aproximar dele é essa mulher, e por isso ele passa a se sentir confortável para, enfim, poder conversar.
O quão colaborativo foi o processo de criação do Big Bang?
Desde o início do Carlos Segundo, nosso diretor, deu carta branca. Chegou até mim e falou: “tenho um roteiro e queria que você fizesse. Mas, primeiro, leia e me diga o que acha”. Queria saber se tinha algo agressivo, ofensivo, ou seja, teve essa preocupação. E me deixou à vontade para mudar o texto, caso achasse necessário. “Essa história é sua, não sei o que é ter esse corpo, mas quero falar sobre isso. Então, sinta-se convidado a mudar o que for preciso”. Desde quando ele chegou e aceitei o convite, ficou claro que qualquer mudança seria possível, até o último dia de filmagem. No set, fomos percebendo que tinham coisas, por exemplo, que não precisavam ser ditas. Então fomos omitindo, verbalmente, enxugando os diálogos. Tirando falas que estavam ditas pelo silêncio. Foi uma construção coletiva. A estrutura do roteiro chegou até mim pronta, mas tive liberdade para propor qualquer alteração que julgasse necessária. Ele sabia que era o meu corpo que daria vida a esse personagem.
Que mudança você acredita ser urgente para propor maior diversidade em relação ao nanismo no cinema brasileiro?
O que falta é diálogo. O cinema é elitista. Durante anos foi assim, e até hoje segue sendo, ao menos em parte, uma atividade feita por homens brancos cis de classe média alta. E isso porque é um curso caro, e quem tem condições de fazer são os brancos ricos. O mais curioso, no entanto, é que essas pessoas acham que têm o direito de contar todas as histórias. Só que não é bem assim. Não só fazendo uma pesquisa rápida que você vai poder falar sobre outros corpos que não o seu. Acho que falta na indústria do cinema essa abertura à escuta. A empatia que tanto falamos. De convidar alguém para uma mesa de roteiro. De chamar uma consultoria de alguém que vive isso na pele para construir essas histórias. Já que você não quer abrir mão de contar essas histórias, então chame para o seu lado alguém que saiba o que é realmente viver isso. Falta, portanto, além dessa diversidade nas telas, ter também uma maior representatividade nos bastidores, na construção, seja no roteiro, um assistente, na pesquisa, em todos esses sentidos.
Há pouco você esteve nos cinemas vivendo o antagonista de Maior que o Mundo (2022). O Altair, cada vez que entrava em cena, roubava as atenções. Fala um pouco sobre como foi essa experiência.
Esse foi um filme feito há muito tempo, mas que só agora conseguiu ser lançado. Ele tem, portanto, questões a serem discutidas no momento atual. Tem algumas coisas ultrapassadas, com problemas evidentes. Dito isso, foi também um personagem legal de construir. Foi um antagonista cômico, digamos. Tinha uma sutileza, não chegava a ser um vilão clássico. Foi bacana dividir essa experiência com o Eriberto Leão, o protagonista da trama. Encontrei nele um parceiro de cena maravilhoso. Também posso dizer que foi uma construção coletiva. Esse passe de bola, entre nós dois, a troca que tivemos.
Qual é o teu maior incômodo com esse filme?
Foi um trabalho que gostei de ter feito, apesar de que, vendo o filme agora, me surgem alguns questionamentos. Tem algo pejorativo ali. Podia ter sido melhor trabalhado. Até mesmo no uso da palavra “anão”, que é excessiva no roteiro. Entendo que é o universo daqueles personagens, do submundo, do underground, da boca do lixo de São Paulo. Aqueles mafiosos não falariam “um homem com nanismo”, dizem logo “anão”. Compreendo tudo isso. Mas acho que pode ser mal interpretado pelo público, e esse se achar no direito de continuar nos chamando por esses nomes. Achar que servimos apenas ao circo – o Altair tem essa trajetória. Não podemos reforçar esses estereótipos. Poderia ter sido lapidado nesse sentido.
De todos os personagens que você já fez, quais foram os mais marcantes?
A maior parte das pessoas que chegam até mim me conhecem por causa da novela, até porque ela teve um alcance muito grande. Foi a Cúmplices de um Resgate (2015-2016), no SBT. O personagem Nico foi o que me deu maior visibilidade, até porque tá sempre em reprise (risos). Toda hora tem gente nova me descobrindo por causa dela. Sim, me abriu portas. Mas não é o personagem que mais gostei de fazer, pelo universo infantil no qual estava inserido, por ter um toque cômico. Mesmo assim, foi uma oportunidade boa de mostrar o meu trabalho a mais gente e abrir novos espaços. Agora, o Chico de Big Bang é o meu favorito. E apesar de todas essas críticas que fiz sobre o Maior que o Mundo, considero o Altair um personagem bacana. Foi a primeira vez que fui chamado para fazer um tipo mais complexo, que está de frente, e que apesar de ter esse alívio cômico, é alguém que dá tiro na cara de bandido quando necessário. Ele tinha motivações, além de ser muito humano. Foi uma figura que permitiu me mostrar na tela de uma maneira que as pessoas ainda não tinham visto.
Big Bang foi o grande vencedor na mostra de curtas no Cine Ceará. Antes ainda, foi premiado no Festival de Locarno, na Suíça. Como tem sido essa recepção ao filme?
Tem sido muito louco. Quando topei fazer, certamente não foi por questões financeiras, como já comentei. Não foi porque queria ganhar o Festival de Locarno. Foi porque era a primeira história que chegou até mim e li completamente satisfeito. “Nossa, é isso. Esse diretor está me enxergando de verdade”. Por outro lado, nem imaginava que tudo isso pudesse acontecer. Quando foi exibido em Locarno, e eu estava lá, a recepção foi incrível. A gente tem essa mania de distanciar os festivais internacionais dos nacionais. Por isso, pensei: “talvez esse seja um filme pra gringo ver”. Uma história que só funciona fora do país. A recepção, mesmo nas ruas, foi impressionante. Só falavam nisso. Gente da cidade me abordou na rua, pessoas que não são necessariamente da área do cinema. Peguei um ônibus, e um cara, de terno e gravata, com sua pasta, indo trabalhar, veio até mim e disse: “você é o cara daquele filme, o assisti ontem, foi incrível”. A cidade, realmente, vive o festival. A repercussão foi ótima.
Sim, a ponto de vocês alterarem até a ordem das coisas por lá. Explica isso melhor.
Pois então, acredita que chegaram a reorganizar a premiação? Nossas passagens de volta para o Brasil eram para antes da cerimônia de encerramento. Daí a organização do festival veio falar conosco: “então, tivemos que mudar nosso cronograma e antecipamos a votação”. Eles viram que estava tendo repercussão, tinha muita gente falando sobre o Big Bang, e ficaram preocupados: “se eles ganharem, não vai ter nenhum representante aqui”. Daí o júri votou um dia antes e avisaram a gente para eu mudar a data de volta da minha passagem. Nossa, foi um momento mágico quando anunciam teu nome. Subir naquele palco, num dos maiores festivais do mundo. Recebi em nome da equipe toda, pois o Carlos não pode ficar. E isso tem se repetido em outros festivais, como no Rio de Janeiro, ou o Panorama, em Salvador. Aqui, em Brasília, todo dia vem alguém diferente falar comigo a respeito. Não é um filme só pra gringo ver, tá chegando nas pessoas. Isso é muito bom.
(Entrevista feita ao vivo durante o 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro)