Lina Pereira é seu nome social, mas a maioria a conhece como Linn da Quebrada. Cantora, MC, atriz, roteirista, múltipla: ela é de tudo um pouco. Nascida em São Paulo no início dos anos 1990, tem se firmado como uma das principais vozes do movimento LGBTQ+ no Brasil. E esse destaque tem tudo para aumentar ainda mais agora, com a estreia do documentário Bixa Travesty (2018), no qual aparece como protagonista. O filme, que estreou no Festival de Berlim do ano passado, passou também pelo tradicional Festival de Brasília, o mais antigo do país, e foi premiado no exterior, em eventos em Cartagena, Toronto, Madri e Milão, entre outros. Após essa longa – e exitosa – jornada, chega finalmente às telas do circuito comercial. Aproveitando esse momento, nós fomos conversar direto com a artista, que falou um pouco mais sobre suas motivações, referências e próximos passos. Confira!
Oi, Linn. Durante o filme, você dá várias definições. Afinal, o que é uma ‘bixa travesty’?
Olha, ‘bixa travesty’ foi uma maneira de inventar uma identidade. Dar um nome àquilo que eu estava vivendo. Nomear tudo isso, esse processo pelo qual estou passando. Surge para eu conseguir, de certa forma, organizar o caos que me cercava. Nunca pensei que poderia ser uma identidade a ser catalogada, pela academia e também pela sociedade. Foi importante porque estava tentando entender quem eu era. Que talvez não fosse feminina o suficiente para ser mulher, ou demais para ser só bixa. Sinto, agora, depois de tudo isso, o quanto esse nome faz sentido para tantas outras pessoas, que também se identificam com o termo. E para criar novas referências e modelos. As identidades, como são catalogadas hoje, não dão mais conta da nossa experiência. O modelo binário, homem e mulher, não serve mais. Os corpos são múltiplos. O filme fala disso, das identidades inventadas que já não são suficientes. Estamos assumindo essas pluralidades e novas relações. Hoje, inclusive, as pessoas estão mais à vontade, entendendo melhor esse processo e, ao invés de dois sexos, existem N sexos, N corpos, N formas de nomear nossos processos. A bixa travesty é um desses nomes.
Você está completamente exposta no filme, inclusive com cenas de nudez. Houve algum tipo de constrangimento? Tinha algo que lhe foi sugerido e você não quis fazer, ou o contrário – algo que você sugeriu e acabou não entrando?
Não, na verdade isso não aconteceu. É engraçado pensar o quanto a nudez ainda assusta. Essa pergunta é recorrente, até mesmo entre os jornalistas. Sou exposta a tantas outras violências, no meu dia a dia, e é curioso como elas não chocam da mesma forma. As violências cotidianas passam batidas. Tem coisas do meu corpo que eram de outros momentos, e que as resgatei, e também mais atuais, que surgiram no durante o fazer. De uma forma ou de outra, sempre foram questões propostas de uma maneira muito respeitosa. Eu mesma estava propondo e pensando que o mais importante era que o filme tivesse cuidado para comigo. Essas eram as minhas restrições. Não é sobre mim, mas comigo, e que me leve em consideração. Para além do político, mas também afetivo. Um filme de escuta política e afetiva. A partir disso fui decidindo o que gostaria que estivesse em cena, e o que não gostaria de fazer.
Falando nisso, você assina também como roteirista, ao lado dos diretores Claudia Priscilla e Kiko Goifman. O que lhe guiou nesse desenvolvimento nos bastidores?
A gente foi entendendo o que poderia ser o filme. Defini todos os encontros, as pessoas que seriam fundamentais para a trama. Escolhi a Liniker, a minha mãe, as outras meninas… quem seria importante, afinal, nesse trajeto da busca pela luva. A partir disso, fomos desenhando quais seriam os dispositivos de reação. E cada coisa que ia surgindo, era sempre de um modo muito orgânico. Foi uma escrita pensando em como acredito meus trabalhos, me provocando. Um roteiro de uma obra friccional, não de ficção. Era a fricção entre a realidade e invenção.
Como foi o trabalho em conjunto com os diretores?
Eu os provocava, os trazia para o diálogo. Tudo foi desenvolvido de uma forma muito horizontal, em algo que gosto de chamar de disputa cênica. Decidindo, juntos, o que acreditávamos ser importante. Uma disputa saudável, que persistiu até o final. Isso passou também pela montagem, escolhendo o que iria ficar ou não no corte final. Foi um trabalho de muito aprendizado, para mim, principalmente, e de muita generosidade entre nós. Todos muito envolvidos e com vontade de executar. Abertos para o que poderia surgir para além da sua ideia. Pois, afinal, era uma equipe muito criativa. Quando colocávamos o que havíamos pensado em conjunto, era comum abrir mão do que era de cada um para colocá-la em choque e criar algo novo, em conjunto. Isso é bonito de se perceber. O filme foi se tornando uma grande surpresa para todas nós.
Já que estamos abordando essa questão das parcerias, você parece bastante afinada com a Jup do Bairro. Como se dá essa sintonia?
A gente trabalha juntas há muito tempo. Somos amigas, parceiras de verdade, e muito dispostas. Fazíamos as coisas juntas desde o começo. Ela também tem uma carreira solo, e assim como eu, vem desbravando outros espaços. Entendemos que temos muita força de forma separada, mas juntas ficamos ainda mais fortes. Aprendemos que a nossa parceria, que essa intimidade que desfrutamos uma com a outra, vem do fato de que estamos construindo uma rede de apoio, psicológica, econômica, concreta, material. Preciso dela, e ela também de mim. Somos independentes, mas temos um campo de força juntas.
A primeira exibição do Bixa Travesty foi no Festival de Berlim de 2018, ou seja, há quase dois anos. Vendo o filme agora, o quanto você mudou desde então?
Acho que sou completamente outra pessoa. O filme foi importante enquanto processo de nomeação dessa identidade de algo que estava vivendo dois anos atrás. Ele fala de movimento, de transição. E continuo me mexendo, não fico parada nunca. É interessante vê-lo agora e perceber onde estava lá no começo. Muito permanece, mas outro tanto se modificou. É um discurso, mas também uma inscrição na história. Se transcreve num processo histórico de cada um de nós, envolvidos. Ate hoje está surtindo efeitos no presente. As coisas têm um tempo diferente. Mas sinto que é isso, continuo em processo. O discurso segue, a teoria é feita do que foi vivido no passado. O meu trabalho está aqui, mudando a todo instante. Quem observa o filme e viu meu show hoje, sabe que estou em outro momento. Tenho outras questões. Mas, ao mesmo tempo, também temos muitas coisas que se repetem.
Como tem sido a repercussão do filme, ainda mais nesse Brasil tão diferente daquele de dois ou três anos atrás, quando vocês começaram esse projeto?
Tá muito diferente, realmente. Temos cada vez mais referências. Temos travestis na câmara dos deputados, na televisão aberta, escrevendo livros, em várias áreas do mercado. Ao mesmo tempo, mesmo com um governo tão reacionário, isso evidencia o quanto o Brasil vive um momento de crise. E como ela é importante, pois é perigo, mas também oportunidade, para cortar essa célula de repetição. Apesar de todos os avanços que estamos vivendo, precisamos encarar essa resposta reacionária como algo que vem de uma classe conservadora que se vê perdendo espaço. Nós estamos indo adiante, e isso assusta. O Brasil está passando por um momento muito importante na sua história, e temos que estar atentos a tudo isso.
Bixa Travesty é um documentário, mas você tem investido cada vez mais no trabalho como atriz, como no filme Sequestro Relâmpago (2018) ou na série Segunda Chamada (2019). São coincidências ou é uma vontade atuar cada vez mais?
Eu sou uma artista. O meu processo artístico vem do corpo. Tudo que puder fazer nessa disputa cênica, nesse processo, estarei disposta a me arriscar. O que for feito para disputar narrativa, vou usar de todos os meios. A música, o audiovisual, estamos fazendo história. Tenho vontade de experimentar muitas outras coisas. Quero fazer coisas novas. Quero descobrir novos problemas e buscar por novas soluções. Estou super entusiasmada com tudo isso. Estou também com um outro filme pronto, vai se chamar Vale Night, foi dirigido pelo Luis Pinheiro, e tem estreia prevista para o ano que vem. Ou seja, não vou parar tão cedo (risos).
Bixa Travesty começa e termina com a figura no Ney Matogrosso. O que ele representa para você?
Acho que o Ney Matogrosso é uma figura muito importante. Ele representa algo muito forte, uma inspiração e um exemplo. Aquilo que vivemos, e que está registrado tão brevemente no filme, foi um encontro de gerações. Tem um momento, na trajetória dele, em que também investigou muito seu corpo. Possibilitou a construção de novas referências. Ele propôs algo muito particular no que diz respeito a própria estética, sua performance no palco, o trabalho com a voz. E também no que diz respeito a essa busca pela liberdade. Foi muito emocionante, e não vou esquecer nunca cada instante em que estive ao lado dele.
(Entrevista feita por telefone em novembro de 2019)
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