César Cabral é apaixonado pela animação desde cedo. Nascido no início dos anos 1970 em Santo André, no ABC paulista, morou na infância em Londrina, até se mudar de vez para São Paulo, capital. Após cursar Cinema na ECA-USP, começou a desenvolver seus primeiros projetos, sempre na área do desenho animado. Seus dois curtas-metragens mais conhecidos – Dossiê Rê Bordosa (2008) e Tempestade (2011) – foram ambos escolhidos como Melhor Curta de Animação no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, o Oscar da produção nacional. Além disso, lhe renderam reconhecimentos em Sundance (EUA), Hiroshima (Japão), Havana (Cuba), Los Angeles (EUA), Miami (EUA) e também no Brasil, em festivais como Gramado, Cine PE e Paulínia. Com toda essa bagagem, estava mais do que na hora de estrear no formato longa. E esse passo mais audacioso se deu com Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente (2021), que começou sua carreira repleto de expectativas: foi premiado nos festivais de Annecy (França) e Ottawa (Canadá). Se isso não era o bastante, também se qualificou entre os 25 longas de todo o mundo na pré-lista do Oscar 2022! Com toda essa responsabilidade nas costas, o filme foi exibido na mostra competitiva do 16º Fest Aruanda, em João Pessoa, Paraíba. Após essa sessão, o diretor conversou com o Papo de Cinema, num bate-papo inédito e exclusivo que você confere agora:
Olá, César. O teu envolvimento com o universo do Angeli vem de longa data. Como começou esse interesse?
Sou meio suspeito de falar. Cresci lendo Chiclete com Banana, sempre gostei de quadrinhos. Me formei em cinema em 2005, quando estávamos num mundo não muito diferente de agora, sem nenhum edital de cinema. Escrevi um projeto sobre o cenário das HQs nos anos 1970 e 1980, quando nomes fortes começaram a surgir. A ideia era fazer um documentário focado nessa história. Só que, no meio do caminho, abriu um edital da Petrobras para curtas. Comecei a trabalhar nesse projeto, que virou o Dossiê Rê Bordosa. Foi quando conheci o Angeli. A morte da Rê Bordosa era relevante, e cabia num formato de curta. Tem a estrutura de documentário investigativo, foi bacana. O filme acabou rodando bem, e conversando com o Angeli, ele me contou que o Canal Brasil queria fazer uma série sobre ele. Havia curtido o resultado, percebia que o filme dialogava com o universo dele. E me falou: acho que o Bob Cuspe renderia um bom longa. Aquilo ficou na minha cabeça.
Então a ideia de um longa dedicado ao Bob Cuspe veio do Angeli?
Isso mesmo, foi o Angeli que primeiro pensou nessa possibilidade. Mas ele não teve uma participação direta na história, na construção do filme como um todo. Foi só nesse bate-papo que soltou a semente do projeto. “O Bob Cuspe dá um longa, é um personagem forte, tem muito a ver comigo”. Isso era 2012, quando o Fundo Setorial estava ganhando força. Como juntar dinheiro para fazer um longa? Era a oportunidade perfeita. O primeiro edital que ganhamos foi o da Petrobras, o mesmo que havia rendido o curta. Aos pouquinhos fomos montando o plano de financiamento. Quando comecei a escrever, o projeto era parecido com um documentário, sem um roteiro escrito, mas indicações do que seria feito.
Como tem sido trabalhar com o Angeli ao longo de todos esses anos?
Cheguei e pedi que começasse a falar sobre ele mesmo. Virava um bate-papo, ia com um gravador, mas não era uma entrevista formal. As cenas documentais, até as mais ficcionais, quando o Angeli conversa com a Rê Bordosa, tudo foi filmado antes. Era uma conversa, não um depoimento. Fica nítido a situação documental, mas em alguns momentos eram só dois amigos, como numa mesa de bar, batendo papo. Esse material foi a base da ficção. Quando o Angeli encontra a Rê Bordosa, o que tínhamos de material para construir esse diálogo? Pescávamos frases soltas, até mesmo fora de contexto, mas que funcionavam nesse sentido. Quando encontra a Laerte, de cartomante, não funcionou. Por isso que ela diz, no filme: “não diga nada” (risos). Pois assim a coisa conseguia andar.
No que mais ele contribuiu com o filme?
Ele não tem nenhum envolvimento. Temos uma relação ótima. De certa maneira, ele é um personagem, o “velho cartunista”. Um cara mal-humorado, que não querer dar entrevista. Mas é o contrário, um cara super aberto, participativo. No filme, acaba representando um papel. Se manteve o tempo todo aberto ao diálogo. Ao longo dos anos, gravamos mais de 30 horas juntos. E sempre deu certo. Não foi roteirista, nem produtor do filme, A participação dele era essa, estar sempre ao alcance. A própria montagem acontecia em paralelo com as filmagens. Desde o início, quando tínhamos uma ideia de roteiro, fomos separando os materiais, buscando temas importante a partir dessas conversas.
Animação em stop-motion é uma preferência pessoal sua?
Olha, sempre trabalhei com stop-motion. Então, não tinha como ser diferente. Mas a ideia era fazer um redesenho, tentando ser mais realista. Usamos muita textura, com roupas de tecido, jaqueta de couro. No curta e na série, é tudo massinha. Aqui buscamos estar mais próximos do real. O grande barato do stop-motion é essa pesquisa. Tínhamos o desafio de pegar o universo do Angeli, em 2D, e interpretar isso para o filme que estávamos fazendo. O que me atrai nessa técnica é a situação real que temos na produção, com as maquetes, bonecos, fotógrafo fazendo luz. Temos uma situação de estúdio. Só que anda frame a frame. É um ao vivo em câmera lenta (risos). Mas é o que me movimenta na animação. Estudar e pensar a linguagem e possibilitar dentro de um espaço tridimensional, em como decupar e contar a história através desse mundo real. Pelo desafio de fazer com que aconteça. Evitamos ao máximo a pós-produção. Teve, porque era preciso. Mas foi mínima. Tudo era feito no set, em frente às câmeras.
Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente tem nomes de peso na dublagem, como Paulo Miklos, Milhem Cortaz, Grace Gianoukas e Andre Abujamra. Como foi reunir esse pessoal?
Tinha alguns nomes em mente desde o começo. Tipo, o Milhem, sempre que pensava no Bob Cuspe, pensava nele. Ele tem a voz de um punk que pensava ser a do Bob Cuspe. Lidar com uma obra que já existe, que as pessoas tem sua própria ideia a respeito, é difícil não decepcionar. Fui pela minha impressão como leitor mesmo. A Grace Gianoukas foi uma sugestão do Angeli, que me disse: “ela é a Rê Bordosa”. E é uma pessoa incrível, deu super certo. O Miklos pensei direto como os irmãos Kovalski, tem um tom de voz que destoa da do Bob Cuspe, criou um dueto interessante com esses gêmeos. O Andre Abujamra fez a trilha sonora também, é um grande parceiro.
Você chegou a assistir ao Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll (2006), do Otto Guerra?
Sim, claro. É um trabalho incrível. A Rê Bordosa está nos dois filmes, aliás. Pensei na Rita Lee, confesso, pois é ela quem faz a Rê Bordosa no filme do Otto. Estava com o Dossiê quase pronto quando ele lançou o Wood & Stock. Acho que tem coisas incríveis. O meu lado fã falou alto, puxa, seria incrível tê-la conosco. Mas quando vi a Grace, era outra coisa. A Rita funciona muito bem no filme do Otto, pois era quase uma zumbi, e eu queria algo mais ativo. A Grace foi perfeita para isso. O Wood & Stock foi uma boa referência, obviamente. Mas por ser uma animação 2D, ainda que do mesmo autor, do universo do Angeli, o resultado acabou indo por outro caminho. Mas gosto bastante, tem coisas ótimas.
Bob Cuspe foi premiado em Annecy e agora participa do Fest Aruanda. Com tem sido a trajetória do longa? Esperava tamanha repercussão?
É difícil imaginar o que vai dar certo. Tenho consciência de que há umas pirações, momentos psicodélicos do Angeli. Tinha preocupação em ter um certo diálogo com o público, mas precisava funcionar com quem já conhecia os personagens. Porém, não podia ser fechado só para os iniciados. Como uma pessoa que não conhece nada do Angeli vai entender essa história? Quando inscrevemos em Annecy, não imaginávamos que seria selecionado. Quando entrou, ficamos surpresos. Não fui à França, por causa da pandemia, mas no dia seguinte à exibição recebi um e-mail de uma garota do Vietnã que estuda em Paris. Ela escreveu uma carta longa, muito elogiosa. Foi quando percebi que havia dado certo. Tem uma geração dos 45 anos, que lia os quadrinhos, e os jovens. Parece que o pessoal dos 25, 30, fica mais perdido. Ou seja, funciona em diferentes camadas. Ficamos muito envolvidos durante a produção. Até por isso chamei uma montadora, para manter um certo distanciamento. Cortamos quase 20 minutos de filme. Para uma animação, isso representa quase 6 meses de trabalho. O animador lembra do sofrimento que foi desenhar tudo aquilo, e por ele não cortaria nada. Então tem que manter a distância e pensar na obra como um todo.
Bob Cuspe está também na pré-seleção para o Oscar. Vocês possuem alguma estratégia para divulgar o filme nos Estados Unidos?
Estamos, sim, pensando nisso. Aconteceu uma coisa muito louca. Quando ganhamos Annecy, recebemos convite para mandar para o Annie. A gente, tão sem grana, pensamos que era caro demais, e acabamos deixando de lado. Pouco tempo depois, quando ganhamos Ottawa, voltaram a entrar em contato conosco, e agora oferecendo a inscrição de graça. Aí, sim! (risos). Mas tem mais investimentos, publicidade, cavar matérias. Precisa ter empenho. Qualificamos para o Annie, e logo em seguida para o Oscar. Mais uma vez, pensamos: “não vai dar, é muito caro”. Mal conseguimos lançar no Brasil. Quando falei com a Carol, esposa do Angeli, ela pirou na possibilidade. Foi atrás de um investidor, que topou bancar essa divulgação nos EUA. Uma coisa puxou a outra. Coisas boas que aconteceram: o Oscar em si é muita viagem. Sei a realidade dos grandes estúdios, até dos filmes independentes, como o Fuga (2021), que tem uma máquina imensa por trás. Sabemos que brigar com toda essa galera vai ser difícil.
Mesmo se a indicação não sair, já é uma vitória.
Com certeza. Só com todo esse movimento já garantimos um distribuidor americano, que vai lançar nos Estados Unidos, Canadá e Porto Rico. Em Los Angeles já estreou, ficará em cartaz por uma semana para qualificar para o Oscar, e vamos tentar levar os votantes para verem o filme. Esse é o desafio agora. Vamos fazer a coisa do nosso tamanho, e sem desanimar. Falei com o Carlos Saldanha, com o Alê Abreu, até com o Otto Guerra, que agora é votante do Oscar (risos). Vamos tentar com todo mundo. Nem que seja para ajudar o nosso trabalho a ficar mais conhecido, que é o mais importante.
Bob Cuspe mistura, através da animação, documentário e ficção. Como foi desenvolver uma história nesses dois níveis de leitura?
Tinha claro que íamos contar uma história do Angeli, mas não queria focar apenas nele. Tanto é que o filme se chama Bob Cuspe. A ideia era intercalar uma coisa com a outra. Tinha esse material documentado, e a partir disso vinha esse personagem à beira de uma crise. Angeli The Killer, é um matador de personagens, e o Bob Cuspe poderia ser o próximo. É a motivação dele. A linha documental e a fictícia acabavam se misturando. O próprio Angeli é mais um personagem do autor. Agora, como construir a ficção mantendo esse diálogo com a obra e as histórias do personagem era o nosso desafio. Não tinham histórias longas, eram só tirinhas. Não havia como adaptar uma trama apenas. Então fomos amarrando o punk com o pop, o Angeli em crise com a obra dele, que de certa maneira tenta eliminar seu passado. Quando comecei a fazer o filme, o Angeli estava mesmo em crise. Isso virou o mote. Diferente do curta, que lidava com o passado da Rê Bordosa, aqui ele revisitava o que havia feito num sentido mais amplo, e também pensava no amanhã, se iria ou não eliminar o Bob Cuspe, que era o alter ego dele. Foi tudo uma descoberta. Nunca tivemos um roteiro fechado, ia acontecendo aos poucos.
Qual o atual cenário da animação no Brasil? É uma área em expansão ou casos como o sucesso de Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente seguem sendo isolados?
Estamos vivendo, assim como o Bob Cuspe, de um passado recente. O filme foi todo financiado dentro de linhas de incentivo que não existem mais. O último edital foi em 2017. Isso está se refletindo agora. No ano que vem devem ser lançados três longas de animação no Brasil, se não me engano. Olho para o gênero e vejo que tivemos um momento muito bom, começando a se organizar e ficar mais profissional. Vide as séries de animação, temos estúdios com mais de 100 animadores. Tem muita gente produzindo coisa bacana. Mas preocupa, claro, a realidade que vivemos. É difícil financiar um projeto de animação. Em geral é um produto caro, envolve tempo, e uma equipe numerosa. De alguma maneira, temos que encontrar novos caminhos. Talvez o streaming, mas não acredito. Coproduções internacionais podem ser o caminho, até pelo aprendizado, troca de experiências. Aqui, todo mundo aprendeu meio que na raça. Pensando na produção nacional, o reflexo virá daqui 3 ou 4 anos, quando acabarem esses projetos que estão sendo feitos agora. O momento é instável. Não está as mil maravilhas, assim como nada na cultura. A diferença é que temos capacidade e competência. E isso pesa.
Entrevista feita em 15 de dezembro de 2021, durante o 16º Fest Aruanda, em João Pessoa, Paraíba
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