Dira Paes é a cara do Brasil. Como atriz, filmou de norte a sul, na Amazônia e no pampa gaúcho, no Rio de Janeiro e em São Paulo, na Bahia e no seu Pará natal. De um tempo para cá, no entanto, se tornou também a cara do Pantanal sul-mato-grossense pela exposição que teve ao participar de uma das novelas e maior audiência na televisão recente. Com esse histórico em mãos, não causou surpresa ao ser convidada para apresentar a cerimônia de abertura do Bonito CineSur – Festival de Cinema Sul-Americano de Bonito, no Mato Grosso do Sul, que em 2023 teve sua primeira edição. Ela, que não apenas teve seu próprio festival (FestCineBelém, entre os anos de 2004 e 2010), como também já atuou como curadora (Festival de Gramado, 2022), compartilhou seu olhar sobre esse evento que está recém surgindo, mas que chega com promessas de voos altos – e promissores! Confira esse bate-papo inédito e exclusivo da atriz com o Papo de Cinema:
Olá, Dira. Prazer, mais uma vez, em falar contigo. Pra começar, gostaria que comentasse sobre a tua relação com Bonito, com o Pantanal, com essa região do país.
O Pantanal virou, pra mim, um lugar íntimo. Conheço as entranhas do Pantanal. Então, você conhecer um “país” chamado Pantanal através daquilo que está distante de uma visita rápida, é a oportunidade para se conectar com a origem das pessoas, dos costumes, da maneira de ver o mundo, de viver esse bioma. Foi paixão à primeira vista. Vivência e encontro. Isso se reafirmou depois de um ano de novela (Pantanal, 2022) quando tive esse convite para vir pra cá e conhecer essa cidade e o seu entorno. Além de ter sido a realização de um sonho, foi lindo ver brotar aqui esse festival, dentro de uma cidade que tem vocação total para o audiovisual. Sem esquecer do recorte que fizeram enquanto proposta, que achei fantástico. Esse diálogo sul-americano, que eu saiba, é uma ideia que ninguém teve antes. A gente está no coração da América do Sul, geograficamente falando. E contemplar treze países com filmes de cada um deles, com mostras de meio-ambiente, animação, aqueles feitos aqui no Mato Grosso do Sul. Ou seja, estou encantada.
Você, entre tantas outras coisas, já fez um festival de cinema. Quais as dificuldades de se levantar um evento como esse, ainda mais em uma região que nem sequer tem uma sala de cinema?
Primeiro, antes de mais nada, é preciso ter infraestrutura. Sendo objetiva, tem que ter passagens aéreas, hospedagem, alimentação e transporte para os convidados. Essas são as condições que você tem que levantar para receber os participantes. É muita responsabilidade, tem que responder por todas aquelas pessoas em uma cidade que estão conhecendo pela primeira vez. Mas digo que um festival de cinema não é sobre cinema, e, sim, sobre uma antropologia social, um estudo sobre aquele entorno e a maneira de apresentá-lo para o público. E como esse irá se ver representando na tela. Essa é uma magia que acontece e encanta aos espectadores, e é a melhor maneira de levar a cultura local para além das suas fronteiras. Todo estado brasileiro, todo recôncavo desse país merecia ter o seu próprio festival de audiovisual.
A última vez que conversamos foi em uma live que fizemos sobre Divino Amor (2019), durante a pandemia. Passado esse contexto, por quê está tão difícil para as pessoas voltarem aos cinemas, e, em especial, ao cinema brasileiro?
Engraçado você falar isso, porque no teatro houve uma conversão de público incrível, nesse momento pós-pandemia. Talvez fosse uma necessidade das pessoas em ver a vida pulsando. Vejo isso acontecendo no cinema com biografias, as pessoas estão curiosas em conhecer as histórias de vida dos outros. Acho que reaquecer o público que está tão bombardeado de imagens não é fácil. Vivemos em um mundo muito imagético. Portanto, é preciso um diferencial, uma isca para fisgar esse peixe chamado espectador. Esse é o objetivo do artista. Acho que o cinema é uma arte insubstituível, não é a mesma coisa assistir a um filme no cinema, em uma sala onde você para de pensar em si mesmo e se entrega para uma história que não é sua e que está na tela. É um exercício fundamental para você entender melhor a si mesmo. Acredito que em breve irão perceber essa necessidade de voltar a ter um encontro com o seu escuro, com o seu útero, com a sua casinha fechadinha que é uma sala de cinema.
Você mencionou as biografias, e recentemente tivemos várias, como a da Gal Costa, do Mussum ou do Claudinho & Buchecha. Mas você acabou de fazer uma (Pureza, 2022) que era sobre uma pessoa anônima. Qual a importância de resgatar essas histórias não conhecidas?
Bom, antes de qualquer outra coisa, é preciso ter uma boa história. De nada adianta uma biografia se a trama não for contundente, única. Depois, é o recorte que você faz dessa biografia. Existem muitos filmes do gênero que atendem a um ritmo coerente de cronologia e você quase consegue adivinhar a estrutura daquele filme. Uma boa biografia, no entanto, é aquela que te surpreende, que reverte a sua capacidade de adivinhar o que vai acontecer. Porque, de certa maneira, você já sabe a história. Então, vejo que o cinema gosta de biografias, é fato, e temos que aproveitar. Mas, sobretudo, precisamos de boas histórias. O exercício dos roteiristas é necessário. E a liberdade que precisam ter em não ficar aprisionados dentro dessas fórmulas.
Dentre os diversos filmes da tua carreira, quais aponta como marcantes, aqueles que teriam um “antes e um depois” pra ti?
Ah, os primeiros, sem dúvida. Nosso mestre, Walter Lima Jr., que me dirigiu em Ele, O Boto (1987). E o primeiro filme que fiz, uma produção internacional, o Floresta das Esmeraldas (1985), do John Boorman, foi uma experiência única. Depois, na retomada do cinema brasileiro, vem Corisco e Dadá (1996) e, em seguida, Anahy de las Misiones (1997) – um no nordeste, e o outro no sul, de um canto a outro do país. Daí vou para o início dos anos 2000, com Amarelo Manga (2002) e Baixio das Bestas (2006), ambos do Claudio Assis. Tem mais, como Dois Filhos de Francisco (2005), que foi um dos maiores fenômenos de bilheteria da minha carreira. Vou acabar esquecendo algum, é muito triste quando isso acontece (risos)!
Bom, você esteve em dezenas de projetos diferentes, e muitas vezes como protagonista. Mas nem sempre é o tamanho do papel que determina sua importância.
Com certeza. Tem aqueles que lembro com carinho até hoje, ainda que não tão representativos pra minha carreira. Como um que pedi para fazer uma ponta, o A Festa da Menina Morta (2008), do Matheus Nachtergaele. Ele me disse: “mas faz mais aquela cena, a da mulher no bar, e faz também a da romaria”, e acabei ganhando uma personagem inteira em um filme pelo qual tenho admiração profunda! À Beira do Caminho (2012) é muito introspectivo, adorei fazer e me impressionou como o público ficou conectado com a minha personagem, apesar dela não estar em toda a trama – e ainda ganhei o prêmio da Academia Brasileira de Cinema! Ó Paí, Ó (2007) foi muito divertido também. Gosto de ser lembrada, quando o público não esquece dos filmes. Veneza (2019) também foi muito especial. Logo deve estrear o Manas (2024), da Mariana Brennand, e ainda antes o Ó Paí, Ó 2 (2023), uma grande brincadeira.
Você também já foi curadora. Que dica dá para o Bonito CineSur permanecer e se consolidar?
Eles pegaram um super curador, o Zé Geraldo Couto. A curadoria é algo que define um festival. Que confere a personalidade daquele evento. Estão muito bem assessorados neste sentido. Podemos esperar por ótimos filmes, e estão procurando uma representatividade, assim como qualquer festival, com editais que reconheçam documentários, ficções, curtas, longas. O Brasil está com sede de tela. Uma das primeiras coisas que ouvi por aqui foi: “como é bom a gente se ver representado”. É sobre isso, territorialidade, um universo que traduza a verdade do povo, as ilusões e os momentos oníricos também. Me sinto muito à vontade aqui. E o público abraçou o Bonito CineSur. É um evento que tem uma vocação incrível para ser um ícone dentro do cenário de festivais do país.
Entrevista feita em Bonito, MS, em novembro de 2023
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