Nascido em Londrina, Paraná, em 1962, Mário Bortolotto é um dos dramaturgos de maior destaque no cenário cultural brasileiro atual. No entanto, começou como ator, e já se aventurou também como diretor, dramaturgo e até compositor. É membro ativo do grupo teatral Cemitério de Automóveis, ganhou o Prêmio APCA pelo conjunto de sua obra em 2000 e o Prêmio Shell de melhor autor pela peça Nossa Vida Não Vale um Chevrolet. Esse texto, aliás, foi adaptado para o cinema em 2008, drama premiado no Cine Ceará e indicado ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. De lá pra cá, escreveu e atuou em A Frente Fria que a Chuva Traz (2015), também indicado ao GPCB – o ‘Oscar’ do cinema nacional – e agora volta às telas com Borrasca, igualmente baseado em um texto seu e pelo qual foi premiado como Melhor Ator no Cine PE 2017. Foi nessa ocasião, aliás, que o artista conversou com exclusividade com o Papo de Cinema, em uma entrevista inédita que publicamos agora. Confira!
Borrasca tem uma estrutura bastante teatral, e é baseado em um texto teu. Ele chegou a ser adaptado para os palcos antes de chegar aos cinemas?
Sim, exatamente. É um texto que fiz para o teatro. E foi lá que o Francisco Garcia, nosso diretor, o assistiu e quis adaptá-lo para o cinema. Mas a estrutura é a mesma. Tanto que o texto está na íntegra na tela, não teve a mínima mudança.
Quando ele te propôs levar esse texto para o cinema, qual foi tua primeira reação?
Essa não é a primeira vez que adaptam escritos meus para o cinema. Então, estou um pouco acostumado. E nem diria que Borrasca é o texto mais teatral, mas, com certeza, é a adaptação mais fiel. Ele foi muito respeitoso. Também por isso, é o filme baseado em uma obra minha que mais gosto. E claro, tem tudo a ver com essa fidelidade. Os outros diretores, ao menos nas experiências que tive, sempre mexiam muito no original. Ao ponto de que houve vezes em que nem conseguia mais reconhecer o que havia escrito. Parecia que não era mais meu. “Caralho, que cagada que fizeram, isso ficou uma bosta!” Eu digo mesmo. Já briguei muito por causa disso.
O quanto do Mario está no Gabriel, o teu personagem?
O Gabriel tem isso de ser um cara meio avesso, um tanto recluso, de não querer participar muito. É um cara que tá sempre triste. Então, quem me conhece, sabe que tem muito de mim nele. O fato dele ser escritor é outra coisa em comum. No entanto, não levei chifre de amigo meu com a minha mulher (risos), então as coincidências terminam por aí. Até porque não estou namorando faz tempo (risos). É como o personagem diz: “você precisa estar namorando para que exista alguma possibilidade de levar um chifre”.
A estrutura do Borrasca lembra de outros clássicos do cinema e teatro nacional. De imediato, lembro de Dois Perdidos Numa Noite Suja, do Plínio Marcos. Quais são as tuas principais referências?
Não tenho essa coisa de referências. Quando começo a escrever, penso nos personagens, na situação em que se encontram e o que vai acontecer com eles. E o que quero dizer com tudo aquilo. Com isso definido, começo a trabalhar. Geralmente, não sei como vai terminar. Deixo que o texto me leve. Não tenho a coisa organizada, a minha cabeça é um tanto caótica. Parto dessa estrutura, e a partir daí vou desenvolvendo. Às vezes, depois que terminei, percebo que certas coisas não funcionam muito bem, e vou mexendo, aos poucos. É gostoso trabalhar assim.
A chuva pode transmitir diversas leituras, tanto limpeza quanto destruição. Chove o tempo todo em Borrasca. Que sentimento você quis emular com esse elemento?
A chuva, pra mim, é sempre muito triste. É algo que me coloca pra baixo. Associo a uma música de blues, com um cara caminhando sozinho, sob a chuva. Tem essa coisa da tristeza, que é muito forte. Mas você está certo, tem a limpeza também. É aquilo, amanhã é um outro dia. O que era borrasca pode parecer uma tempestade, o que era tempestade pode parecer uma borrasca. Vamos limpar tudo e começar de novo. As duas conotações estão presentes. O engraçado é que é quase inconsciente, pois já vieram me dizer que tem muita chuva também em outras peças minhas. É um elemento recorrente. Tem várias histórias minhas com a chuva presente.
O Enzo é um personagem muito comentado, mas que só aparece no final do filme, e através de uma foto. Qual o motivo dessa decisão de retirá-lo do imaginário e transformá-lo em uma figura real para o espectador?
Nesse caso, específico, foi uma homenagem para o Paulinho. To falando do Paulo de Tharso, que é o cara que aparece nas fotos, como se fosse o Enzo. Ele havia acabado de falecer. É um grande amigo nosso, e estava sempre na minha cabeça enquanto fazíamos a peça. Ele, inclusive, estava escalado para ser um dos atores da peça. No teatro não eram apenas dois intérpretes, seriam quatro duplas, que ficariam se revezando. E ele faria parte dessa brincadeira. Seria divertido, tanto para os atores, como também para plateia, que poderia assistir mais de uma vez, pois cada abordagem seria diferente da outra. Era um grande artista, era músico, poeta, escritor, ator… e faleceu dias antes da estreia da peça. Então, foi natural. Ele era o Enzo. Quando falávamos do personagem, só vinha ele em mente. Ninguém pensava em outra pessoa. Quando falamos para o Francisco Garcia, teve a ideia dessa homenagem, de usá-lo no final, com a foto. São fotos pessoais, da gente abraçado e tal. Foi uma coisa bonita.
Você é um cara reconhecido pelo texto, mas tem sido premiado como ator por Borrasca – inclusive no Cine PE. Como tem sido essa experiência?
Já havia ganho vários prêmios de atuação. Não chega a ser algo inédito pra mim. Tanto no Brasil quanto no exterior, primeiro foi com um curta que fiz anos atrás, agora com esse longa. E como ator de teatro já ganhei uma porrada. Era ator antes de ser dramaturgo, comecei atuando. Tive a ideia de escrever para o teatro porque não encontrava textos que quisesse fazer como ator. Sem falar que os direitos autorais são sempre muito caros. Se tu montar um Nelson Rodrigues, terá que pagar uma fortuna! A rapaziada do meu grupo que teve a ideia: “vai lá, Mario, começa a escrever pra gente”. Eu fui e gostei. Pelo jeito, tá dando certo.
O teu coração hoje tá mais na atuação ou no texto?
Tá por tudo. Tá na minha banda de rock. Faço tudo com o maior prazer, desde que esteja me divertindo e com amigos ao meu lado.
Você comentou que a maior dificuldade ao filmar Borrasca foi ter passado duas noites sóbrias. Confere?
Exatamente. Isso foi o mais difícil. Quando acabamos de filmar, no último dia, a primeira coisa que fiz foi abrir uma garrafa de uísque. Até porque, se estivéssemos bebendo de verdade, não teria conseguido chegar ao fim das filmagens. Foram só duas noites. O filme inteiro foi feito nessas duas noites, foi uma loucura. Tinha que estar muito sóbrio para chegar ao fim delas.
(Entrevista feita ao vivo em Recife em junho de 2017)
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