Depois de passar pela Mostra de São Paulo e pelo Festival do Rio, ambos em 2019, Breve Miragem de Sol estreou recentemente direto no streaming. A atualidade marcada pela pandemia do Covid-19 obrigou os cinemas a fecharem as portas momentaneamente, algo que certamente teve peso na decisão dos responsáveis pelo longa de lançá-lo sem a passagem pelas telonas. Protagonista e um dos produtores do filme, Fabrício Boliveira disse em nosso Papo de Cinema que vê com bons olhos a iniciativa, inclusive pela possibilidade de, assim, a trama alcançar mais pessoas, de reverberar. Sob a batuta do cineasta Ery Rocha, ele vive o motorista Paulo. Trabalhador noturno, dirige seu automóvel pelas madrugadas do Rio de Janeiro se deparando com uma cidade ora ruidosa, ora incômoda justamente por um silêncio inquietante. Pelo semblante desse homem passa uma gama enorme de preocupações, das práticas às existenciais, num fluxo de deslocamento para ser absorvido aos poucos. Conversamos com Fabrício para entender um pouco mais de seu processo, suas posições a respeito do lançamento online e como foi viver Paulo. Confira.

 

Paulo é um personagem ambíguo, profundamente real, mas também simbólico de muita coisa. Essa complexidade te atraiu para o projeto?
Sim, total, isso foi muito importante. Assim como também foi toda essa gama de escolhas pessoais do personagem, a força dos espaços pelos quais ele transita cotidianamente, a possibilidade de dialogar com o coletivo. O Paulo é realmente um homem vivendo essas transformações que atravessam um país.

Cena de “Breve Miragem de Sol” – Foto: Miguel Vassy

Se trata de um filme muito sensorial, com a câmera colada nos gestos e nas feições. Que tipo de facilidades e dificuldades essa simbiose gera?
Engraçado você trazer esses dois sentidos. Obviamente, existem atrativos e descobertas. Há novidades, também, desafios deliciosos a partir disso. A proximidade da câmera configura uma relação a ser desenvolvida e às vezes rola certa abstração quanto a essa presença. Mas, como você pode usar isso? Tem outra coisa legal, minha ciência de onde a câmera estava. Em alguns momentos, eu controlava o carro pensando nessa relação. Há uma dança em que eu proponho e a câmera propõe. Chegamos a um nível de intimidade tal que efetivamente dormi na cena do Paulo cochilando. Eu jogava muito com o Miguel (Vassy, o diretor de fotografia).

 

O mundo do Paulo é também o do extracampo, dos sons que invadem o plano, das preocupações que lhe atravessam o semblante. Esse tipo de construção já estava prevista desde o roteiro ou foi algo delineada ao longo do processo?
Isso já era o recorte do filme proposto pelo Eryk desde o roteiro. Esse diálogo com extracampo e o espaço interior do personagem. Era importante pensar nas ratificações desses espaços. Tanto que trabalhamos muito com um professor de capoeira, que dizia que o Paulo tinha de ter olhos de águia. E isso está no filme, nas coisas mais simples, em Paulo mapeando as ruas buscando passageiros, por exemplo. Nessa busca, ele vai estocando algo. Paulo é movido pelo desejo e nesse percurso vai se compreendendo. É quase como os 12 trabalhos de Hércules, com portais entre as Zonas Sul e Norte. A cidade é como um labirinto para ele, no qual tenta encontrar saídas desses macro e micro.

Cena de “Breve Miragem de Sol” – Foto: Miguel Vassy

O Rio de Janeiro é um personagem ativo nesse mergulho de Paulo num cotidiano caótico. Como foi a sua relação com a cidade enquanto rodava o filme?
Descobri uma Zona Norte e um subúrbio muito vazios no âmbito noturno. E eu ficava entendendo certas coisas, tais como a iluminação. A cidade vai perdendo luminosidade depois do túnel que dá acesso à Zona Norte. A luz da Zona Sul é bem diferente. Fomos descobrindo as pessoas, os lugares em que os profissionais da noite comem e dormem. De alguma forma, isso mudou a minha maneira de encarar o Rio de Janeiro, especialmente sobre coisas que eu intuía, como as más escolhas que estavam desvirtuando a cidade. Como isso ficou evidente. Tem algo de curioso nos aplicativos que avisam sobre tiroteios e outras situações assim. Há o dado informativo, mas também aponta a uma normalização, o entendimento como cotidiano da existência de uma guerra. Experimentei várias situações, perdido, inclusive. Penso que o Paulo é a representação desse homem que vai à rua e encara situações de terror diariamente.

 

Talvez se estivéssemos diante de um filme mais convencional, o Paulo seria a típica figura a protagonizar um trajeto de redenção. Mas o Eryk parece refutar isso completamente…
Perfeito, a gente estava muito aberto à realidade. Essa ideia da miragem, do Paulo em meio a encontros, solidão, reflexão, são pontos por meio dos quais colocamos uma lupa noutras percepções da realidade. É também sobre um olhar a respeito dessa realidade. Tem uma coisa muito interessante que é a preocupação e o afinco no estudo do texto a fim de que estivéssemos preparados à realidade nos atravessando. O filme tem muita realidade acontecendo, ele incorpora isso. Havia meios no mecanismo de feitura para que estivéssemos abertos ao que era presente. Há algo de grandioso nisso da câmera colar num homem negro e o filme não estar preocupado em discutir sua raça, pois atento à subjetividade, à melancolia e ao pensamento desse homem negro. Há espaço para mostrar a singularidades. Nós brasileiros precisamos nos ver com mais carinho. Paulo oferece uma possibilidade de ter mais empatia, até patriotismo, uma ideia de ser visto com mais compaixão, de nos orgulharmos de ser quem verdadeiramente somos.

 

Dá para dizer que o Paulo é um daqueles personagens que sobrevivem “apesar de”, não tendo uma vocação para afrontar estruturas viciadas e afins? O fato dele ser um cara classe média baixa não deixa muito espaço para leituras sociais e talvez isso também seja bem dramático…
A denuncia só faz sentido quando ele é nova. Ao ratificarmos o tempo inteiro, apontamos para lugar nenhum. De algum jeito, ao falarmos dos instantes, das involuções, ao sinalizar a história a partir de um olhar específico, isso gera potência. Paulo é um homem que já passou pelas politicas afirmativas de cotas, teve a possibilidade de entrar numa universidade, talvez fale outros idiomas. É um sujeito preparado. Pessoalmente, numa chave de escolha, de poder mirar o outro sem tanto risco e medo, ele conseguiu se colocar na vida. O filme aponta à experiência, olha para além da denúncia. O Eryk é muito preciso nesse sentido de não estereotipar. Paulo é um cara comum, não tem grandes marcas. É um homem numa situação, enfrentando-a em grande parte com seu silêncio. Como você lida com isso? Com coragem. Paulo tem uma coisa muito linda de escuta. Ele me remete à palavra serendipidade, anglicismo que significa aquilo que você encontra enquanto busca outra coisa, o que surge nesse processo lindo de procura.

Cena de “Breve Miragem de Sol” – Foto: Miguel Vassy

Você apresentou o filme na Mostra de São Paulo, no Festival do Rio, mas agora vê o filme estrear diretamente em streaming. Como te parece esse trajeto todo?
Há essa contradição… O filme não foi ao cinema, mas, ao mesmo tempo, obtém um alcance muito maior. Não há substituições, mas somas. O streaming é mais uma janela, pode significar um incentivo financeiro à produção, inclusive de filmes inicialmente destinados ao online. Se trata de um trânsito maravilhoso, amplia um mercado. Adoro ir ao cinema, esse é um prazer que desejo manter para a minha vida. Porém, nesse momento é super importante enxergarmos alternativas. Até por isso, optamos por essa possibilidade de chegar à casa das pessoas confinadas por conta de uma pandemia. Tem gente segurando seus filmes para estrear. Mas, para nós, foi super importante lançar agora. Entendo isso como uma ousadia, ser o primeiro filme ficcional brasileiro a estrear diretamente no Globoplay. Especialmente um filme lindo como esse.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *