Entre dezenas de filmes provocadores exibidos durante a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, talvez nenhum deles tenham conquistado tamanha adesão de público quanto Cabeça de Nêgo (2019). O filme dirigido por Déo Cardoso traz a história de Saulo (Lucas Limeira), um estudante de escola pública, vítima de racismo na sala de aula. Quando percebe que o crime não será reparado pela diretoria, se recusa a sair da escola até que se faça justiça. Aos poucos, desperta uma revolução estudantil e um problema grave à diretoria, preocupada acima de tudo com a imagem da escola.
O filme se destaca pelo discurso catártico em prol dos movimentos populares, assim como pela linguagem acessível, com bons atores jovens debatendo os problemas das escolas. Ao final da sessão em Tiradentes, toda a plateia se levantou e aplaudiu calorosamente o filme, de pé, diante da equipe. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com Déo Cardoso sobre o projeto:
Por que quis abordar questões politico-raciais dentro de uma escola?
Foi uma questão de vivência, em função de fatores que me incomodam. Como eu não tenho o perfil de articulador para fazer política partidária, pensei que pela arte eu talvez pudesse fazer isso. Assim como vários filmes me transformaram, eu acredito que um filme tenha a força de uma ferramenta política. Sei que a palavra “política” é uma coisa muito chata, mas o filme é arte também. Essa é uma arte em busca da subjetividade, e isso me interessa enquanto política: fazer a pessoa se levantar e agir em nome da coletividade. Então quis explorar isso pelas imagens, pelos sons. Sempre me questionei, quando escrevia o roteiro: onde está a utopia contemporânea? Falamos muito em distopia, porque tudo está distópico hoje. Os filmes, as séries estão repletos de distopias, porque a arte acaba reverberando, sintomatizando a sociedade. Mas eu me perguntava: cadê o sonho? Será que o sonho morreu mesmo? O filme foi a tentativa de sonhar de novo.
Você falou em filmes que te transformaram. Quais seriam?
Primeiro, foi um filme que transformou a mim e a muita gente preta, ou gente em diversos contextos de opressão: Faça a Coisa Certa (1989), do Spike Lee. Eu nunca fui cinéfilo, não venho da cinefilia. Até hoje me cobro para ver muitas coisas, mas não dou conta. Mas alguns filmes me pontuaram demais. Faça a Coisa Certa foi uma semente para mim, quando eu tinha vinte anos. Não saí da sessão imediatamente querendo fazer cinema, mas ele funcionou como semente. Pensei: “Que foda! Esse é um filme incrível, sem ter explosão”. Até então, eu gostava da Marvel, gostava do Homem-Aranha. Eu era um moleque comum. Quando vi esse filme, o cinema ficou mais perto de mim. A história me impactou, eu adorei, e quis ser amigo daqueles personagens. Mesmo assim, ninguém tinha superpoderes, ninguém tinha asas, ninguém voava. Só depois fui descobrir o que era o realismo, o que era a fábula.
A partir disso conheci Glauber Rocha, por causa de uma mostra durante a faculdade. Quando saí da sessão, eu nem sabia dizer se tinha gostado ou não. A experiência me arrebatou: aí era outra coisa completamente diferente, era um estranhamento poderoso. Então se cristalizou a ideia de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Decidi fazer cinema. Filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Eles Não Usam Black-Tie (1981) me jogaram na onda do Cinema Novo. Aí eu mergulhei por completo, e descobri o meu país. Eu nasci nos Estados Unidos, mas isso foi um mero acontecimento. Eu sou brasileiro, meus pais são brasileiros. Mas eu estudei lá. Mergulhei no meu próprio país através do Cinema Novo. A tela me dizia: olhe ao seu redor. Comecei a fazer curtas-metragens a partir disso. Meu primeiro curta foi em 16mm, nos Estados Unidos, com um colega jamaicano. Ele andava pela rua e eu o circulava com a câmera. Assim eu descobri o cinema, ainda que faltasse uma personalidade minha. A câmera estava colada na cara do ator, em estilo Glauber Rocha, e era em preto e branco também. Esse foi um exercício que eu precisei fazer. Depois fui amadurecendo minha ideia de cinema.
É interessante você falar sobre o processo de aprender enquanto faz, porque esta é a trajetória do Saulo: ele adquire consciência política à medida que protesta.
No meu outro curta, eu já me interessava pela questão do despertar. Cada filme é diferente, mas todos têm em comum o tema do despertar. Eles flagram algum momento de gatilho, quando um acontecimento desperta algo no personagem. Considero este momento muito potente, muito mágico. Por isso eu sempre tento me despertar de novo para alguma coisa. Quando noto que estou pessimista, tento encontrar uma banda que nunca ouvi, um filme a que nunca assisti – algo que me desperte, enfim. É triste, porque os artistas estão muito deprimidos agora. Mas temos que encontrar este lugar de reinvenção. Não estamos aqui para sofrer, estamos aqui para ser felizes. Mas como dizer isso para alguém da periferia?
A sua principal referência de luta negra são os Panteras Negras. Marielle Franco também aparece rapidamente. Como articulou essas referências?
A referência para o povo negro, no mundo inteiro, ainda é a americana, pelo caos que aconteceu por lá, algo ainda recente, infelizmente. Nos anos 1960, a situação estava complicada nos Estados Unidos, e depois nos anos 1970 foi a África do Sul, em função das guerras anticoloniais. As referências eram muito americanas, até para o nosso povo. O nosso último grande embate racial ocorreu na época colonial. Qual outro movimento racial contemporâneo aconteceu no Brasil? É difícil pensar em um movimento coletivo, de massa. Acredito que não tenha existido. Posso estar falando bobagem, e sei que obviamente existiram muitos movimentos de bairro.
Também se racializa alguns embates, porque todos os nossos conflitos são racializados: é o negro que apanha da polícia. Mas coletivamente, organizados com lideranças, não tivemos, porque sempre buscaram apagar as nossas lideranças para que não houvesse uma referência, um exemplo bem-sucedido. Marighella e Zumbi dos Palmares foram criminalizados, tiveram suas imagens atacadas. Por isso, eu achei importante ter não apenas as referências americanas que fazem parte de todo o arsenal epistemológico do povo negro, mas também os nossos. Nos slides projetados na parede você vê Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Marielle, e mesmo Amílcar Cabral que, embora não seja brasileiro, deveria ser um grande exemplo para nós. Ele está bem próximo, em termos de língua. Era um homem dócil. Geralmente pensamos em lideranças furiosas, mas Amílcar era um cara calmo, um acadêmico, agrônomo. Ele acreditava que a revolução viria do campo. Achei muito importante combinar as referências americanas com as nossas.
Ao mesmo tempo, o filme traz personagens negros com posições políticas ambíguas, a exemplo do vigia da escola, que defende a diretoria branca, e de um jovem negro que serve ao discurso dos políticos.
Essas posturas permeiam o nosso contexto: a vida não é preto no branco, existem camadas de cinza. Às vezes você acredita que uma pessoa está do seu lado, mas ela joga para o outro time, enquanto outras pessoas são cooptadas. A nossa história política está repleta de exemplos assim: alguém representa a coletividade, mas então começa a ser seduzida por certos privilégios e não se enxerga mais dentro daquele coletivo. Essas pessoas existem, os professores ambíguos existem. O personagem do porteiro vai se conscientizando aos poucos de que está fazendo uma grande bobagem. Ele viu aqueles meninos crescendo, e de repente percebe que está jogando do lado do poder. Existem tensionamentos diários. Eu mesmo posso fazer algo que não agrade a comunidade à qual pertenço, e preciso estar sempre me policiando. A gente não pode se deslumbrar com o poder ou com o carinho de um festival de cinema. Segunda-feira a vida volta ao normal. O poder precisa ser compartilhado, senão sempre vai existir um fosso. O nosso país é muito desigual.
Ao mesmo tempo, este debate político muito potente se encontra dentro de um filme adolescente, de tom acessível. Existem mesmo momentos de leveza e humor.
Eu fiz o filme para os jovens. Queria dialogar com a galera com quem convivo. Eu sou professor de fotografia na periferia, apesar de ter tido privilégios na vida. Como a família do meu pai foi a única com privilégios dentro de toda a família, eu cresci me perguntando: “Pai, porque a gente pode ir a um clube e o meu primo não?”. Nós éramos uma ilha dentro de uma família muito pobre. Meu pai foi concursado, e se formou na federal. Ele ganhou três vacas por ter passado numa universidade federal. Isso me deu o privilégio de estudar cinema, senão eu jamais teria feito isso. O cinema é muito burguês, estudar cinema implica se dedicar a algo que você não sabe se vai garantir um emprego. Isso é típico de quem tem o suporte de pai e mãe.
Embora muita gente aponte contradições no governo do PT, essa foi a beleza desse governo: ele deu auxílios, deu oportunidades aos jovens de periferias, para também poderem fazer arte, estudar cinema. As respostas estão aí: veja quantos filmes de 2010 pra cá foram dirigidos por negros, por pessoas LGBT, por indígenas. Esses filmes existem por causa das políticas públicas que hoje estão acabando. Isso é muito triste. Isso precisava ser debatido com os adolescentes, então fiz o filme para eles. Queria colocar ídolos de resistência que talvez eles nem conhecessem, para se indagarem, pesquisarem depois. Então eles vão descobrir que um deles era baiano, o outro viveu perto deles, na mesma época da mãe deles. Isso gera uma familiaridade, uma ideia de que eles também podem ser assim. Por isso eu me concentrei na adolescência das escolas públicas.
Esta história também teria sentido dez anos atrás, mas hoje, em pleno desmonte da educação pública, ela adquire um senso de urgência maior.
A gente filmou em 2018, e eu tinha muita pressa que o filme saísse. Fiquei muito frustrado por não conseguir lançá-lo em 2018. Mas ele demorou cerca de um ano e meio porque a agenda dos finalizadores não batia: o Guto Parente [montador] estava viajando, e só poderia se dedicar ao projeto seis meses depois do fim das filmagens. O finalizador, o Pedro, estava trabalhando em outros filmes no Rio de Janeiro. Assim, o processo demorou mais seis meses. O editor de som estava ocupado também, e só agora terminamos tudo. Em setembro de 2019, o filme ficou pronto, mesmo que o corte estivesse quase pronto em junho. O fato e ele ter ficado pronto agora é algo vital, urgente. Ele precisa conversar com os tempos de hoje.
Reconheço que aqui em Tiradentes as pessoas estão encantadas com o filme, esta é a parte carinhosa dos festivais. Mas quando ele for lançado, sei que vou receber porrada dos reaças, que estão por toda parte. Eu vou precisar lidar com isso, tenho que estar pronto. A arte é assim: você faz, entrega para o povo e precisa estar pronto para as críticas positivas ou negativas. Algumas pessoas vão malhar o filme, mas espero que a gente consiga despertar diálogo, inclusive com aqueles que não concordam. O ambiente está difícil para isso: hoje se tornou mais fácil partir para a ofensa, e as redes sociais potencializam isso. Vou tentar ver menos redes sociais e valorizar mais os debates presenciais, olhos nos olhos. Mesmo que você discorde totalmente do filme e ache que ele é uma merda total, quando estiver na minha frente, você vai dizer isso de outra maneira. Pessoalmente, podemos conversar.
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