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Entre as muitas descobertas cinematográficas da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, uma das mais impressionantes foi o documentário Cães do Espaço (2019), dirigido por Elsa Kremser e Levin Peter. Os jovens diretores decidiram filmar vira-latas pelas ruas de Moscou, ilustrando a escolha da cadela Laika décadas atrás, enviada num foguete pelo programa espacial russo.

As imagens são deslumbrantes: os cineastas conseguem acompanhar os cães de rua em imagens espontâneas e muito fortes, captando a irracionalidade enquanto criticam o uso dos animais para finalidade de espetáculo. Assim, incluem também macacos, tartarugas e outros bichos. A intenção, nas palavras da dupla, era fugir ao máximo da estrutura convencional da reportagem. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com os cineastas sobre o filme:

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De onde surgiu o interesse pela história da cadela Laika?
Elsa Kremser: No início, só queríamos fazer um filme sobre cachorros, para mostrar os animais de uma maneira diferente. Ainda não havia a ideia de Laika. Nós queríamos mergulhar o espectador na vida deles, para que compreendessem o funcionamento diferente dos humanos. Durante a pesquisa, descobrimos que Laika foi criada nas ruas, e era uma vira-lata. O fato que ela se tornado um símbolo tão grande, especialmente para uma vira-lata, nos fez apostar neste tema.
Levin Peter: O tema do vira-lata, ou seja, marginal, obrigado a se virar com o que encontra pela frente, era uma metáfora importante para nós. Tínhamos algumas imagens em mente desde o princípio, a exemplo do cachorro caminhando pela rua vazia durante o nascer do sol. 70% dos cachorros do mundo são vira-latas, precisando encontrar sozinhos um meio de vida. Para os ocidentais, a imagem dos cachorros é o animal doméstico, e o cinema abraçou este ponto de vista. Mas nós estávamos mais interessados nesta questão de marginalidade.
E.K.: Estes cães buscam o seu próprio espaço, enquanto os seres humanos os utilizam para conquistar o espaço sideral.

O fato de estarem em posição marginal poderia sugerir fragilidade, mas estes cachorros são bastante agressivos.
L.P.: Nós passamos meses com esses cachorros, e nunca os enxerguei como frágeis. Eu ficava mais surpreso com a capacidade deles em serem tão confiante diante das câmeras. Eles ocupam a cidade como habitantes.
E.K.: Para estes cachorros, parece que os humanos são visitantes, mas que a cidade pertence, de fato, a eles. No que diz respeito à violência, durante o processo, presenciamos vários atos de violência, mas isso era diluído entre tantos outros atos instintivos. Isso faz parte da vida deles, marcada por hierarquia e problemas diários.
L.P.: Este projeto narra em noventa minutos o que acontece quando cinco humanos se encontram com quatro cachorros e passam tempo juntos. Cada imagem decorre desta situação única, em que os cachorros acompanham uma equipe de filmagem, recebendo bastante atenção, durante muito tempo. A violência e a fragilidade talvez tenham sido influenciadas pela nossa presença.
E.K.: Nós filmamos durante doze semanas, mas incluímos no filme apenas as últimas cinco semanas. Encontramos estes cachorros seis meses antes das filmagens pela primeira vez, e depois ficávamos com eles sempre.

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Estes cachorros são os protagonistas, e vocês os seguem por onde eles forem. É surpreendente o controle que conseguem ter de uma situação de aparência incontrolável.
E.K.: Queríamos que o público olhasse para estes cachorros como observam os heróis humanos da maioria dos filmes. Durante a pesquisa para as filmagens, encontramos diversos cachorros ao longo de seis meses, por todos os cantos de Moscou. Buscamos grupos de cachorros distintos entre si, e também que chamassem a atenção esteticamente, com os quais pudéssemos nos identificar. Além disso, queríamos cachorros que transitassem por áreas diferentes da cidade, porque alguns permanecem apenas na floresta, ou apenas em cantos isolados. Mas estes cachorros percorriam bairros muito diferentes, o que chamava a nossa atenção.
L.P.: No início, apenas nós dois buscamos os cachorros, e depois tivemos muita ajuda em Moscou. Eu nunca tinha ido à cidade, mas tinha lido vários artigos sobre a quantidade impressionante de cachorros de rua por lá nos anos 1970 e 1980. Quando chegamos, esses cachorros tinham desaparecido. Não foi fácil encontrar cães como estes. Criamos uma espécie de pesquisa científica, com critérios específicos que queríamos cumprir. Durante a pesquisa, descobrimos os gostos desses cachorros, o que nos ajudava a saber onde encontrá-los. É estranho, mas eles gostam muito de oficinas mecânicas e lava-rápidos. Temos cenas com eles sentados dentro dos carros, e mordendo os carros…
E.K.: Eles nos deram muitos presentes. Quando encontramos o nosso herói principal, ele estava dormindo no teto de um carro, e ainda era um filhote. Com ele, pudemos acompanhar o crescimento e criar uma história de amadurecimento. Ele precisou testar a si mesmo, descobrir suas capacidades. Outros cães são mais quietos, mas todas as cenas intensas envolvem ele: o flerte com a cadela, o ataque ao gato, a mordida do carro. Outros cachorros não atacavam ninguém.

Como conseguiram seguir os mesmos cães durante meses, sem mantê-los presos para as filmagens?
L.P.: Parte disso foi sorte, mas parte vem das nossas pesquisas. Descobrimos que a maioria dos cães não transita por tantas áreas assim. Eles têm lugares específicos onde costumam descansar e dormir, onde parece mais seguro. Eles dão voltas, e às vezes tentam aumentar este território, mas voltam mais ou menos para o mesmo espaço. A gente sabia, para o filme, que as horas no início da manhã e de madrugada seriam mais interessantes para nós, porque eles têm mais espaço para explorar a cidade. Então normalmente a equipe acordava às 23h, começava a filmar entre 1h e 6h ou 7h. Na maior parte do tempo, eles estavam presentes, e então começávamos.
E.K.: Eles têm horários específicos. Estes cães costumam rodar a cidade por volta de 20h, depois voltam para “casa” às 22h e dormem até 1h. Então chegávamos a tempo de filmar os cachorros acordando, se espreguiçando e começando as rondas noturnas. Semana após semana, começamos a descobrir mais ou menos o circuito que eles faziam. Além disso, eles confiavam mais em nós depois de um tempo, e não se importavam com a presença da equipe. No começo, eles fugiam de nós.

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As imagens parecem obtidas com uma steadycam.
L.P.: Na verdade, não foi uma steadycam. A câmera representava uma questão importante para nós. Levamos dois anos até descobrir o sistema certo. Precisamos pensar em muitos aspectos: o peso da câmera era um fator determinante, além das objetivas… Encontramos uma câmera pequena, sem uma estabilidade perfeita, para imprimir movimentos um pouco mais bruscos e condizentes com o comportamento dos animais. Talvez a estabilidade perfeita da steadycam fosse perfeita para os cães do espaço – ou mesmo óbvia demais, vai saber -, mas para os vira-latas, a imagem não poderia ser excessivamente fluida. Conhecemos alguém que criou um pequeno dispositivo leve, portátil, com o horizonte sempre alinhado. Isso foi perfeito para nós.
E.K.: Nós filmávamos muitas horas seguidas. Testamos várias possibilidades de câmera, inclusive a Gimbal, mas nem sempre dava certo. Às vezes filmávamos os cachorros durante muito tempo dormindo, esperando pelo momento em que acordassem. Quando acordavam, era preciso estar pronto, e a steadycam precisa ser montada, o que não permite tanta agilidade. Era preciso poder correr na hora, e estar pronto a qualquer minuto.

Em que medida havia um roteiro preconcebido, já que tantas ações ocorreram por acaso?
L.P.: Uma coisa muito importante para nós foi assistir a As Mil e uma Noites (2015), de Miguel Gomes, quando estávamos começando a escrever durante o Festival de Viena. Saímos da sessão e descobrimos que era possível pensar de maneira mais ampla, sem ficar muito restrito à história. Poderíamos ir além, e determinamos que Cães do Espaço seria uma fábula moderna. Estava claro que brincaríamos com outros animais, e quando começamos a filmar, estávamos cheios de histórias sobre o espaço, lendas e outras histórias. A estrutura nasceu na montagem.
E.K.: Na verdade, ironicamente o resultado não é tão diferente do roteiro que escrevemos antes. Durante a pesquisa, vimos muitos cachorros brigando, cruzando, vimos filhotes… Sabíamos que seria interessante ter um pequeno cachorro crescendo. Tínhamos a ideia de incluir o nascimento de filhotes, mas durante as filmagens, encontramos o oposto: a morte de filhotes. Na hora da filmagem, claramente esquecemos das pressões e aproveitamos o que estava disponível. Na montagem, reduzimos todas essas possibilidades a uma estrutura só.

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Por que decidiram incluir outros animais, como macacos e tartarugas? Neste momento, vocês parecem criticar o uso dos animais enquanto espetáculo.
L.P.: Eu acredito sinceramente que o papel do programa espacial enquanto espetáculo é subestimado, tanto nos Estados Unidos quanto na Rússia. Isso era importante para nós: quanto mais pesquisávamos, mais descobrimos a transformação dos cães espaciais em popstars. Parte considerável desta iniciativa consistia na intenção de fazer com que cada criança acreditasse na possibilidade de também se tornar um herói um dia e dedicar a sua vida ao programa espacial. Decidimos não usar o material mais famoso sobre a Laika, mas extrair das imagens do macaco e das tartarugas esta ideia de entretenimento no tempo presente. Então procuramos por macacos de festa em Moscou. Mas a mensagem que queríamos passar através deste documentário era a necessidade de olhar o que existe por trás do espetáculo, tanto na História quanto nos dias de hoje.

Vocês trabalham bastante a dissociação entre som e a imagem: quando ouvimos o narrador no início, não vemos nenhuma presença humana, e quando entram as imagens de arquivo dos cães espaciais, o som é retirado. Por que fizeram esta escolha?
E.K.: No caso da Laika, existem poucas imagens dela antes de ser enviada ao espaço. É engraçado que não tenham captado tantas fotos de uma figura heroica como Laika, mas depois descobrimos o material da cadela entrando na atmosfera. Tentamos colocar a narração junto do material de arquivo, então voltamos ao vídeo bruto, que não tinha som algum, e era uma gravação inédita, jamais vista. Ficamos tão comovidos com essa imagem que tentamos acrescentar trilha sonora, ruídos e narração. Mas o impacto nunca era o mesmo. Então decidimos trabalhar com uma camada sonora abstrata, sem voz alguma. Assim, nós olhamos de maneira mais profunda à cadela em si, ao invés de imergir num imaginário do espaço.
L.P.: Queríamos muito retirar este vídeo do contexto, e deixando-o sem som, o resultado era muito mais potente. Desde o começo, sabíamos que a ideia era nos afastar o máximo possível da reportagem.

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Este é um projeto bastante especial em termos imagéticos e narrativos. Como foi o caminho para produzi-lo e exibi-lo fora do circuito de festivais?
E.K.: Na verdade, este é o nosso primeiro longa-metragem depois da faculdade de cinema. Na escola, também fizemos curtas-metragens muito estranhos, e os professores nos diziam que projetos com essa linguagem jamais seriam financiados. Felizmente, a Áustria tem um sistema de financiamento voltado para projetos como esse, e eles incentivam filmes muito diferentes da média. Então tentamos financiamento em diversos programas existentes. Acabamos fundando a nossa própria produtora, para eventualmente poder fazer nossos filmes do jeito que queríamos, com independência e estrutura financeira suficiente. Estamos acostumados a ouvir muitos conselhos sobre como deveríamos filmar, mas temos confiança suficiente nas nossas ideias, e assim procuramos um lugar seguro para desenvolvê-las. Então nasceu a nossa pequena produtora. Além disso, mantivemos Cães do Espaço dentro de um orçamento restrito. Obviamente, possíveis investidores tinham dúvidas quanto ao filme, e nos perguntavam o tempo todo: “Como podem garantir que esses cachorros não vão fugir de vocês, não vão apenas dormir o dia inteiro?”. Mas fizemos bastante pesquisa para provar que era possível. Nós tínhamos tanta confiança que acreditaram na gente.
L.P.: Hoje em dia, para novos diretores na Alemanha e Áustria, pede-se que os documentários tenham um roteiro completo antes de filmar. Nós sempre criticamos isso, mas descobrimos que gostamos de escrever as nossas ideias, então conseguimos jogar este jogo, sem sentir que estamos comprometendo nossa visão artística. Não foi um grande sacrifício, porque trabalhamos bem juntos.
E.K.: Além disso, o roteiro é uma boa oportunidade para trocarmos ideias sobre como vamos dirigir em dupla. Quanto mais você escreve, mais é obrigado a conversar e debater intenções. Na hora da filmagem, não existe mais tempo de discutir pontos de vista. Então o roteiro teve esta vantagem.
L.P.: Foi como uma agência de viagem: terminamos com um grande livro, grosso, cheio de fotos impressionantes, não escuras demais, nem abstratas demais. Até dissemos que esta seria uma “grande jornada” oferecida ao espectador. Depois fechamos o livro e nunca mais olhamos para ele. Mas obviamente, para os patrocinadores, é prático ter algo do tipo em mãos.
E.K.: Para a distribuição, teremos lançamento comercial na Áustria e na Alemanha, porém sabemos que não será fácil colocar este filme no circuito clássico. Muitos exibidores têm medo de se arriscar. Mesmo assim, através dos festivais, descobrimos que mesmo o público não-cinéfilo gostou bastante de Cães do Espaço. Alguns acharam muito violento, ou lento demais, mas a maioria gostou de descobrir estes cachorros heróis. Ainda estamos em negociações para outros mercados, sabendo que precisaria ser um circuito muito específico para abraçar este projeto.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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