Diretora e roteirista, Déa Ferraz é formada em Jornalismo. A paixão pelo cinema, no entanto, a levou a se especializar em Documentários na Escuela Internacional de Cine y TV de Cuba. Após se aventurar pelo universo dos curtas e médias-metragens, estreou no formato longa com Sete Corações (2015), sobre os mestres de frevo. Agora, volta às telas com um tom bem mais político e urgente. Câmara de Espelhos (2016) estreou no Festival de Brasília, e percorreu um abrangente roteiro de festivais pelo Brasil e exterior, até ganhar o circuito comercial nacional agora, no final de 2017. E foi aproveitando este lançamento que conversamos com a cineasta, para saber um pouco mais sobre seu novo filme. Confira!
Câmara de Espelhos estreou em Porto Alegre, mas vai ter um lançamento progressivo. Aos poucos ele começará a ser exibido em outras cidades do país. Por que ir aos poucos, e não fazer um lançamento nacional, como é mais comum?
Pois então, esse processo foi decidido pela distribuidora. Porto Alegre foi a primeira capital, no dia 23 de novembro. Depois vem Natal, com uma sessão especial de pré-estreia, e no dia 30 entraremos em outras cidades. Acho que foi uma decisão de agenda, mesmo. É um lançamento pequeno, afinal, e faz sentido ir de cinema em cinema. É sempre muito difícil lançar documentários em salas de cinema. Os números não são os mais animadores, e por isso o boca a boca é um caminho, com certeza. O trabalho de articulação em torno do filme, no entanto, tem sido muito grande. Além das salas mais tradicionais, estamos exibindo em faculdades, coletivos, grupos diversos. O filme tem essa chegada, e precisamos aproveitar isso. Queria muito ter ido a Porto Alegre, adoro essa cidade, tenho amigos muitos queridos lá. A acolhida foi muita grande. Mas não tenho conseguido. Vou estar presente nos lançamentos de São Paulo, Rio de Janeiro, Natal e Belo Horizonte. Nestas cidades teremos sessões comentadas, debates, conversas com o público. E sempre com mediadores locais. Essa troca é muito importante para mim.
No material de divulgação, Câmara de Espelhos é descrito como resultado de quinze anos de estudos sobre a abordagem do “filme-dispositivo”. Poderia explicar o que esse termo significa?
Isso foi um engano. Há quinze anos tenho desenvolvido uma pesquisa neste tema, mas o filme Câmara de Espelhos só começou a ser pensado há dois, três anos. Trabalho há quase vinte anos com audiovisual e cinema, e quando comecei a pensar no Câmara de Espelhos percebi que minha abordagem viria do estudo de filme-dispositivo, em como tratar desse formato, através de muitos diálogos. O longa se desenvolve nessa possibilidade, como resultado dessa minha vontade de trabalhar dentro dessa perspectiva. É como um tabuleiro, com suas regras, um verdadeiro jogo. Não sabemos o que poderá acontecer. Ou seja, ainda que seja um dispositivo muito controlado, ao mesmo tempo há um descontrole sobre o que pode acontecer dentro da sala, naquele ambiente. Que tipo de assunto poderia nascer naquelas conversas? Confesso, em alguns momentos tive muito medo do que poderia acontecer. Aqueles homens estavam diante de vários estímulos diferentes, então qualquer coisa poderia resultar dali. Era uma vontade minha trabalhar com isso, mas também foi um risco muito grande.
Câmara de Espelhos representa vários desafios, até em sua realização. O que te motivou a assumir essa responsabilidade?
Tive uma experiência muito interessante com o meu longa anterior, o Sete Corações (2015). Naquele projeto fui convidada, então agi meio que como tradutora. Era um filme autoral? Talvez. Não sei se, caso fosse só meu, se teria sido como fiz. Agora, com o Câmara de Espelhos, sim, é só meu. Ele nasceu de uma angústia, com questões muito minhas. É um filme que diz respeito ao que sou, como quero entender o mundo, resultado dessa pesquisa e das minhas próprias inquietações. Foi como filmar o inimigo, sabe? Estava próximo ao adversário. Esse foi o maior desafio do filme, trabalhar sob o regime de adversidade, e não da conformidade. Trabalhei muito, troquei bastante com eles, e até revi certos pontos de vista.
Em algum momento você temeu não ser compreendida?
Sempre fico pensando: o que estamos buscando? No caso do Câmara de Espelhos, a questão era muito minha. Este é um projeto muito pessoal. As primeiras cenas foram filmadas em 2013, e já traziam questões sobre feminismo, gênero, coisas que estamos discutindo até hoje, mas que vêm de muito antes. Ou seja, não é modismo. Quando comecei a me incomodar com isso, foram em conversas de mesa de bar, piadas entre amigos, reuniões familiares, que me peguei pensando nestas coisas que todo mundo fala, mas ninguém reflete a respeito. Afinal, que lugar o mundo coloca a gente? Comecei, portanto, a pensar sobre isso. A partir dessa angústia muito minha. O que queria, e isso é muito louco, era tratar de um machismo subliminar, desse discurso que ouvimos o tempo todo, no dia a dia, e que muitos pensam ser natural, e por isso vão levando. No filme, presenciamos falas tão absurdas, coisas descaradas, sobre o cotidiano da mulher, sem entender a violência que está por trás daquilo. Não sei se tinha um objetivo de engajamento, até mesmo de militância politica? Era muito pessoal. Queria que o filme servisse como instrumento de reflexão social. A conversa, afinal, funciona como um disparador sobre esses lugares da fala.
Como você tem percebido as diferentes reações do público?
O filme bate de formas bem diferentes entre homens e mulheres. Neles se percebe um desconforto muito grande, quase de negação, mesmo. Já entre elas, o que vemos é que algumas, que ainda não estão pensando nisso, começam a destampar o ouvido. Mais ou menos o que aconteceu comigo mesma, algo que senti quando filmei. Contava apenas com a minha intuição, mas não daquele jeito, ou com a mesma intensidade. Este foi um processo muito intenso. Nós ficávamos ali, ao lado deles, porém escondidos, só ouvindo, escutando tudo, sem poder reagir. Quando acabou, fiquei com medo de andar na rua, como se tivesse assaltado uma loja. Por mais que tivesse uma ideia a respeito da situação, foi um choque ver o quão grave era, de fato, o que poderia ser revelado. O filme faz isso com algumas mulheres. Tá difícil ouvir certas coisas. Na tela do cinema ganha outra dimensão. Não sei se cumpri o objetivo, pois não sei qual era. Mas cumpriu um papel, e isso foi importante.
Em relação aos aspectos técnicos, Câmara de Espelhos foi muito difícil de ser feito?
Pelo contrário. Foi tranquilo até. Contamos com a ajuda de uma arquiteta, que desenvolveu todo aquele ambiente, com as paredes, os espelhos. E tudo muito simples. Não tínhamos muita grana, de qualquer forma. Tivemos uma consultoria interna, do espaço, e fomos atrás de quem podia nos apoiar. A intensão era construir um sala de estar, como a que está na casa de todo mundo. Ainda que de diferentes maneiras. Toda sala tem uma televisão. O que está sendo jogado nessas casas? Aquele ambiente tinha a função de estimular esse debate interno. Como é a família de hoje, qual a influência dos meios de comunicação, como está sendo construída a imagem dessa mulher? Fomos atrás de uma forma simbólica da elaboração dessas imagens sociais. E não só mulher, mas de todas as minorias.
Câmara de Espelhos percorreu um longa cronograma de festivais, desde seu lançamento no Festival de Brasília de 2016. Como você avalia todo esse percurso?
Acho que, hoje, temos uma cadeia muito produtiva de exibição. Os festivais ajudam, pois são bem diversos. Alguns são menos comerciais, outros mais autorais, e este é um caminho pelo qual precisamos passar. Em alguns casos, é o único até. Esse formato de distribuição mais alternativa pode ser a solução para muita gente, os pequenos, como nós, quem está começando. Precisamos pensar o sistema de distribuição, pois nem todos os filmes são iguais. E tem outra questão: nem todos os bons filmes necessariamente estão em festivais. Como descobri-los, então? Por outro lado, fiquei muito feliz com toda essa atenção que o Câmara de Espelhos recebeu. Enquanto realizadora, os festivais são um espaço de troca, de reavaliação. É onde podemos identificar nossas fragilidades, rever o que fizemos, observar melhor o caminho de cada filme. Gosto muito dessa possibilidade de ouvir as pessoas. As conversas são o melhor, pois fazer cinema é um processo, e cada filme tem o seu caminho.
(Entrevista feita na conexão Porto Alegre/Recife em novembro de 2017)