Camilo Tavares chama a si próprio de nômade. Nascido na Cidade do México em 1971, passou a infância na Argentina e veio para o Brasil somente em 1979, para morar no Rio de Janeiro. Isso tudo por causa do pai, o jornalista Flávio Tavares, que esteve todo esse período exilado do país por causa da Ditadura Militar. Já adulto, Camilo passou tempos nos Estados Unidos e na Inglaterra, e agora mora em São Paulo, onde é sócio da Pequi Filmes, produtora cinematográfica que assina o documentário O Dia Que Durou 21 Anos, seu primeiro longa-metragem. Foi sobre esse projeto, baseado nas lembranças do pai dele e em suas pesquisas sobre o Golpe de 31 de março de 1964, que o diretor conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
De onde veio a inspiração para o projeto O Dia Que Durou 21 Anos?
A ideia inicial foi a partir dos livros do meu pai, Memórias do Esquecimento e O Dia em que Getúlio matou Allende, além de uma vontade natural de saber mais sobre o Golpe Militar de 1964. Apesar de ter estudado sobre o assunto nos livros de história e de ter nascido no exilio, percebi que não sabia nada sobre o que tinha acontecido de fato com o nosso país. Foi somente lendo os livros dele que fui entender, ter uma visão mais global e profunda sobre estes fatos. Isso foi o start, mas durante a pesquisa para o documentário surgiu a necessidade de ir à Casa Branca, aos Estados Unidos, para saber o lado dos americanos que estiveram envolvidos. Ficamos por lá procurando documentos e materiais a respeito por dois anos, de 2004 até 2006, e durante este período levantamos muitos arquivos confidenciais e que somente agora estão disponíveis. Além disso haviam muitos papeis com meu pai, telegramas da época. Esse material, junto com o que estavam sendo colocado à público nos EUA, foi o que nos levou a mudar o nosso foco original. Entre outros temas, fomos atrás das atividades do embaixador dos EUA no Brasil naquela época. Selecionamos crônicas também crônicas, textos publicados pelo meu pai. Foi essa pesquisa que mudou tudo.
Como foi o acesso aos documentos mostrados no filme?
Demoramos, no todo, uns quatro anos juntando material, entre o período que passamos nos EUA e o trabalho desenvolvido no Brasil. Tínhamos bons pesquisadores em Washington, investimos muito dinheiro contratando-os. A gente ia pedindo mais e mais, e esse material está lá, disponível à espera de alguém que vá atrás. Fomos muito bem recebidos, até a Marinha americana acabou cedendo imagens. O interessante é que a pesquisa foi árdua para encontrar os caminhos certos, mas uma vez identificados centros como o Lyndon Johnson e a Kennedy Biblioteca, tudo facilitou. Em contraponto com o que aconteceu no Brasil, que foi mais difícil. Tivemos um retorno muito melhor dos americanos do que dos brasileiros.
Como foi feita a pesquisa de imagens e arquivos?
No Brasil esse material veio basicamente do Arquivo Nacional, em Brasília e do Rio de Janeiro. De Porto Alegre tivemos algumas participações do jornal Última Hora, conseguimos acesso ao acervo que hoje está em São Paulo e alguma coisa da Zero Hora – que foi o único jornal da época que defendia o Jango. Nos guiamos pelas manchetes. A cinemateca de SP colaborou bastante também, com arquivos pessoais do Silvio Tendler e de outras figuras que nos ajudaram em termos mais imagens do João Goulart e do Brizola. Essas cenas, em sua maioria, foram perdidas, ou destruídas – é como se quisessem eliminá-los da história oficial. Houve uma perda desse material, muito complicado encontrá-los, por isso a demora. E depois de encontrados era preciso ainda digitalizar para HD. Foi feito um verdadeiro garimpo nacional.
Você acredita ser possível se repetir uma influência como a que o Governo Americano possuía no Brasil do início dos anos 1960?
Acho que talvez seja mais difícil algo assim hoje em dia pelo acesso à informação, mas penso também que ainda há muita coisa feita diariamente que ainda não sabemos. Os EUA seguem nos influenciando muito, principalmente pelo modelo econômico, com as multinacionais, o investimento na agricultura, sempre é com investimento americano. A conclusão a que chegamos é que tudo que aconteceu foi motivado por dinheiro, mais do que uma questão ideológica. Na época tinham também as refinarias, o capital privado. Essa forma capitalista realmente ganhou, e até hoje demonstra seus reflexos na política, na construção civil. Mas espero que esse cenário nunca mais se repita! Hoje temos mais defesas, ou ao menos acredito nisso. Os americanos estavam fazendo uso dos militares, até tinha um certo deboche nisso. Creio que não somos mais tão ingênuos.
Qual a responsabilidade do cinema em resgatar eventos como esses que marcaram a história nacional?
Acho fundamental, até para que as gerações mais novas conheçam essas histórias. São poucos os estudantes interessados e com uma real noção destes fatos. E é importante também que não se contentem com as versões oficiais, daqueles que deram o golpe. É importante ver o outro lado. O Dia Que Durou 21 Anos tem uma função social importante. O momento social de agora nos leva de discutir a verdade, a refletir, e assim todos só temos a ganhar. Tanto a esquerda quando a direita não conheciam a dimensão da participação americana. Serve como objeto de reflexão.
Como foi definido o formato e o roteiro de O Dia Que Durou 21 Anos?
Essa era a minha grande preocupação. Havia muito conteúdo histórico, e precisava ser apresentado de modo atraente. A trilha sonora foi fundamental, fizemos uso também de um pouco da arte gráfica, esse conjunto ofereceu algum dinamismo. Utilizamos também um pouco de animação nas fotografias. Com essa estética almejamos realizar algo que fosse ágil e interessante, curioso, que prendesse a atenção. O filme tem um ritmo tenso, quase como um thriller, um suspense. Queremos prender o espectador, e acredito que a gente tenha conseguido.
O Dia Que Durou 21 Anos foi pensado primeiro para a televisão ou desde o início já se imaginava uma versão para o cinema?
O que aconteceu é que o projeto cresceu. Iniciou como uma série de televisão, e depois evoluiu para o longa-metragem. Vieram alguns prêmios de finalização, do Governo do Estado de São Paulo, que nos motivaram a fazer o filme. E havia também muito material acumulado. A série de tv foi o início, mas depois a produtora e o filme cresceram juntos, resultando no longa. Foi algo natural. São duas obras diferentes, e ao mesmo tempo complementares.
Como foi o trabalho com o seu pai, o jornalista Flavio Tavares, que é um dos coprodutores do documentário?
Ele teve três funções bem definidas: conduzir as entrevistas, selecionando os depoentes, e com um ingrediente muito legal pois fomos atrás também dos militares que haviam apoiado o golpe; fez também a produção executiva, conseguindo alguns contatos para viabilizar o projeto e levantando fundos e apoios; e participou de todo o processo como consultor geral, até para termos a certeza de um rigor histórico. Ele desempenhou o seu papel de jornalista do início ao fim, e também na ilha de edição. O roteiro evoluiu, partindo de algumas crônicas dele para ir para a história do envolvimento dos EUA. Isso era algo que ele também não conhecia, e foi descobrindo ao nosso lado, junto com o desenvolvimento do filme.
Chegando agora aos cinemas quase 50 anos após os episódios narrados, qual a relevância desse projeto para o público de hoje?
É muito importante. Todos os jovens devem conhecer essa história, e os adultos que viveram essa época também irão se surpreender, tem muito material inédito que nunca havia sido exibido no Brasil. As pessoas vão perceber que desconhecem o que estamos narrando. O Dia Que Durou 21 Anos tem um conteúdo muito rico. É importante também até para termos uma postura mais adulta e madura sobre o assunto, assumindo as feridas do passado, como já foi feito na Argentina, no Chile. E está super propício pelo momento em que a sociedade brasileira está passando de olhar para trás e discutir um assunto como esse, que tanto nos influencia até hoje.
(Entrevista feita por telefone desde São Paulo no dia 21 de março de 2013)